30/05/11

Carga policial contra protestos de rua no Magrebe

Quando os protestos populares afirmam claramente que já basta, abandonando as meias palavras e os compromissos dóceis, o poder revela com igual clareza não abandonará sem fazer sangue.


Manifestantes no Norte de África, espancados pelas forças da repressão.

A praga fatal dos grupelhos

Declaração à assembleia popular do Rossio de Lisboa

100 anos após as primeiras revoluções do século XX, os grupelhos sectários continuam a não conseguir perceber uma questão crucial na acção política e de massas – forçar uma assembleia (ou um povo inteiro) a aprovar coisas que ainda não estão ao alcance da consciência colectiva, equivale a apontar uma pistola à assembleia e matá-la logo ali.

Estas seitas e grupelhos vivem num eterno estado de infantilismo político; sofrem duma menoridade mental que os incapacita de compreender que o que faz avançar o mundo não é a política nem a economia, mas sim a ideologia, quero eu dizer, as ideias e a cultura; não entendem que a golpada mata a revolução, porque a golpada é uma coisa intrinsecamente contra-revolucionária. Como se comprova historicamente, não adianta nada pedir a um camponês analfabeto que assine de cruz um manifesto revolucionário, cujos termos ele não entende.

É o que está a acontecer nesta assembleia popular do Rossio, em Lisboa.

Temos aqui um conjunto antagónico de grupelhos apostados em fazer aprovar posições que a assembleia ainda não pode alcançar.
No sábado, 28 de Maio de 2011, um grupelho de infantes birrentos aproveitou-se duma situação que nunca devia ter existido (uma assembleia deliberativa a seguir a uma manifestação emocionalmente exaltada, que erro crasso!), e forçou a aprovação duma proposta de solidariedade internacional.
A solidariedade internacional é uma causa justa, porque o opressor do meu vizinho e o opressor da minha terrinha natal são uma e a mesma coisa. Só há um problema: ao forçarem a aprovação desta declaração, os grupelhos dispararam uma bala que iria pôr a assembleia popular do Rossio num estado catatónico. Estava anunciada a sentença de morte da assembleia.

No dia 29 de Maio de 2011, outro grupelho conseguiu desferir o golpe de misericórdia: trouxeram para a assembleia uma discussão estéril e idiota sobre consenso e unanimidade; arrastaram a discussão durante 4 horas, e transformaram-na num massacre desmobilizador, que reduziu a assembleia a cerca 140 pessoas, das quais apenas cerca de 70 votaram.
Este grupelho é constituído sobretudo por jovens espanhóis apostados em impor uma agenda política importada de Espanha, que nada tem a ver com o sentimento local.
Estes colonizadores de ideias são tão sectários, que, embora tentem impor um regime político baseado no «consenso», nem sequer conseguem entender que a palavra «consenso» deriva de «sentimento comum»; confundem «consenso» com debate colectivo e exercício democrático; dizem-se revolucionários mas apostam num regime de pensamento único (porque confundem pensamento lógico com sentimento); baralham «consenso» com «unanimidade» (que é um acidente casual no debate de ideias, excepto nos casos em que seja um golpe sistemático e fascistóide). Estes colonizadores vindos do neolítico da política conseguiram esmagar com uma força troglodita todo o entusiasmo inocente e esperançoso que deu origem a esta assembleia.

Os grupelhos sectários de todos os tipos são meus inimigos políticos há 35 anos. Creio que chegou para mim o momento de abandonar esta assembleia esterilizada, imobilizada, reduzida ao pensamento único e à golpada sectária. Mas mesmo depois de eu sair desta assembleia com morte anunciada, eles permanecem meus inimigos figadais, continuam a ser alvos a abater sem dó nem piedade, em pé de igualdade com todas as correntes defensoras do pensamento único, da opressão, e do autoritarismo monolítico. Ganharam mais esta batalha. Parabéns. Mas eu sei que um dia serão definitivamente vencidos pelo progresso da consciência colectiva.



Nota a posteriori:
Publiquei este artigo sob o efeito duma enorme desilusão sobre a maturidade política duma parte das pessoas que têm acorrido aos debates do Rossio de Lisboa, esse local súbita e maravilhosamente transformado em ágora clássica. E também para fazer jus ao título «bilioso incondescendente» deste lugar.

O artigo tem uma relevância limitada e bastante subjectiva. Nada que se compare ao interesse dos artigos cuja publicação considerei urgente e de interesse público – ou seja, os artigos com informação, documentação e referências documentais sobre a crise, a dívida e a experiência dos países do Terceiro Mundo, da qual se podem extrair valiosos ensinamentos.

Para meu grande espanto, ao olhar para as estatísticas desta semana, constato que as páginas contendo informação útil tiveram 20% dos visionamentos, ao passo que o artigo quezilento  sobre «grupelhos» arrecada 70%.

Que espantosa radiografia do país!

26/05/11

O pânico da auditoria

Não faço a mínima ideia de quais seriam os resultados duma auditoria integral e independente às contas públicas portuguesas.

Ou melhor: não fazia; esta semana, perante a avalanche de declarações de responsáveis do PSD, afirmando todos eles que não faz falta nenhuma um inquérito às contas, que os responsáveis já estão sobejamente identificados, que a única coisa necessária é ir o povo às urnas rapidamente, começo a ter uma ideia aproximada: uma auditoria integral iria muito provavelmente arrasar com a larga maioria dos responsáveis políticos de todos os partidos do poder, tanto a nível central como autárquico. Seria uma espécie de genocídio, de massacre político.

O pânico é demasiado evidente. Aliás, estas figuras políticas ligadas ao «arco do poder» cuidam de contornar cautelosamente a expressão «auditoria integral», chamando-lhe «inquérito» (que é outra coisa bem diferente) – não lhes convém meter ideias perigosas na cabecinha das pessoas.

Acontece que a chamada democracia representativa contém em si uma perversão terrível: quando o cidadão vota sobre uma determinada matéria (ou, o que vai dar ao mesmo, sobre um representante, gestor e porta-voz para essa matéria), é suposto saber do que se trata. Seria descabido pensar que o povo é soberano em matérias que desconhece.
Ora, se o público for mantido sistematicamente na ignorância, a perversão da democracia torna-se evidente.

É aqui que entra a recusa categórica da auditoria integral. Para manter a farsa da democracia representativa é preciso manter a ignorância das contas públicas.

Perante o pânico anti-auditoria integral, não tenho grandes dúvidas, repito, em concluir que a larga maioria dos dirigentes políticos deste país seria condenada politicamente (e se calhar em muitos casos judicialmente). Ver-nos-íamos curiosamente destituídos de classe política dirigente, a nível central e autárquico.

Sendo assim, talvez a auditoria integral independente viesse a revelar-se a faísca capaz de despoletar como efeito colateral um processo de regresso à democracia participativa, ou até, quem sabe, mecanismos de poder popular.

25/05/11

Pequeno calendário da revolução equatoriana

Dezembro-2007

O Equador declara a sua decisão soberana de se retirar do CIRDI (Centro Internacional para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos).
É um acto soberano, legal, inatacável, que produz efeitos jurídicos internos e externos.
Resulta deste passo político que o Equador se subtrai à alçada jurídica e política do FMI e do Banco Mundial.
É preciso sublinhar que a retirada do CIRDI não deixa o país indefeso do ponto de vista internacional – pode continuar a recorrer para os tribunais internacionais competentes para declararem ilegítima, odiosa ou ilegal uma parte da dívida.

25-Julho-2008

O Equador conclui a elaboração de uma nova constituição, como já referi em artigo anterior.
Pela primeira vez na história mundial das repúblicas a dívida pública passa a ser regulamentada, auditada ou mesmo proibida em numerosas circunstâncias.
Pela primeira vez na história da Humanidade, a Natureza passa a ser sujeito de Direito, com prevalência sobre as funções sociais, políticas e económicas.
Bem-vindos ao novo Equador. Bem-vindos a um país que tem por moeda o dólar americano mas estabelece como base condicionante das relações económicas o bem-estar comum. Bem-vindos a um país onde o Estado se compromete a regular efectiva e directamente (ou seja, sem parcerias público-privadas, ao contrário de Portugal e do Brasil) os recursos naturais, o petróleo, a água, as telecomunicações, as estradas, os transportes públicos, a educação, a saúde... Bem-vindos ao «socialismo do século XXI».

Setembro-2008

O Equador, enquanto Estado soberano, decide criar uma comissão de auditoria da dívida, a fim de se pronunciar sobre a sua legitimidade ou ilegitimidade.
Esta decisão é um acto interno, soberano; produz automaticamente efeitos jurídicos nacionais e internacionais. À semelhança de qualquer outro país, o Equador não tem de consultar os seus credores externos para tomar esta decisão.
Ao tomar esta decisão, o Equador, se quisesse, poderia ter suspendido o pagamento da dívida até às conclusões da comissão de auditoria. Não o fez (o que é discutível), mas poderia tê-lo feito em conformidade com a legalidade interna e externa.
A posição do Equador (ou de qualquer outro Estado soberano) nesta matéria foi declarada justa e intocável à face da lei internacional, pelo 1º Encontro Internacional de Juristas, realizado em Quioto (8-9 Julho 2008).
Não há que ter medo – a lei internacional está do lado de quem paga, de quem é explorado, de quem busca o bem-estar das populações em primeiro lugar, não do lado da agiotagem financeira.
Por outro lado, uma das questões cruciais da batalha contra a dívida reside na composição da comissão de auditoria e nos seus objectivos:

Membros da Comissão de Auditoria Integral do Crédito Público
Representantes oficiais
  • Ministro de Economía y Finanzas
  • Procurador de la Nación
  • Contralor General (En calidad de Asesor)
  • Presidente de la Comisión de Control Cívico de la Corrupción
Representantes nacionais de movimentos sociais
  • Jubileo 2000, Red Guayaquil
  • Centro de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (CDES)
  • Acción Ecológica
  • El Consejo Latinoamericano de Iglesias (CLAI)
  • La Confederación Nacional de Indígenas del Ecuador (CONAIE)
  • Red de Mujeres Transformando la Economía (REMTE) 
Representantes internacionais de movimentos sociais
  • Lucia Fattorelli y Alejandro Olmos de  la Red Jubileo Sur
  • Federación Luterana Mundial
  • Gail Hurley y Jürgen Kaiser de la Red Europea de Deuda y Desarrollo (EURODAD) y Jubileo Alemania
  • Oscar Ugarteche y Eric Toussaint  de la Red Latinoamericana de Deuda, Desarrollo y Derechos (LATINDADD ) y Comité por la Anulación de la Deuda del Tercer Mundo (CADTM)

Funções da CAIC – ver doc – essencialmente trata-se de listar todos os documentos pertinentes, criar uma base de dados pública, colocar toda a informação encontrada ao dispor de todos os cidadãos. A seguir os cidadãos tomam democrática e soberanamente a decisão que acharem mais conveniente.

Novembro-2008

O presidente do Equador, Rafael Correa, anuncia a suspensão do pagamento de 30,6 milhões de US$ referentes a títulos de dívida «Global 2012», que venceriam em 15-11-2008. Esta declaração assenta nas conclusões da auditoria (ver documentação em Auditoria Cidadã da Dívida, entre outros). Os títulos da dívida em causa elevavam-se a 250 milhões de dólares, a um juro de 12%.
«Até 15 de Dezembro decidiremos se continuamos a pagar ou se iremos para os tribunais, porque as renegociações da dívida foram um autêntico hold-up para o país», anunciou o chefe de Estado Rafael Correa, acrescentando que «existem provas sérias da nulidade dessa dívida».

Junho-2009

O Equador anuncia a sua decisão soberana de anular uma parte da dívida, representada pelos «Títulos Global 2030 e 2012» – são 85% da dívida externa comercial do Equador, ou seja, da dívida externa perante os bancos privados internacionais... que «curiosamente» são os mesmos responsáveis pela crise financeira internacional.
91% destes credores aceitaram uma redução de mais de 65% do valor nominal do stock dos títulos de dívida (cerca de 2000 milhões de US$).
Esta atitude representa um precedente para o mundo inteiro, demonstrando que é possível os governos defrontarem a questão da dívida de forma soberana.
2900 milhões de US$ em títulos de dívida foram retirados do mercado internacional.
Assim o Equador economiza nos próximos 21 anos 7280 milhões de US$; ou seja 330 milhões por ano; ou seja 30 milhões por mês.
«Revoltámo-nos contra um sistema que impõe dívidas odiosas, injustas, ilegais, imorais, contraídas de forma irregular, sem o consentimento explícito do nosso povo», afirmou o presidente Rafael Correa.

Porque são estes acontecimentos desconhecidos da opinião pública mundial? Como é possível que a comunicação social portuguesa não lhes tenha dado eco?
Primeiro, porque a decisão soberana do Governo equatoriano constitui o maior golpe de todos os tempos no poderio económico e político da finança mundial. É um precedente «perigoso», um incitamento à revolta de todos os outros povos. O poderio financeiro vê-se encurralado e reage silenciando as redes de comunicação social.
Segundo, porque a comunicação social portuguesa (à semelhança de muitas outras) não passa hoje, na sua generalidade, de uma «voz do dono» obediente e acéfala.
Terceiro, porque os militantes das redes de comunicação digital em Portugal sofrem de algumas maleitas semelhantes às dos órgãos de comunicação social: não vêem nem estudam mais longe que a pequenez das suas fronteiras.

Março-2010

A exploração petrolífera do parque de Yasuní poderia render ao Estado equatoriano entre 5 e 6 mil milhões de dólares. Mas esta exploração, além dos prejuízos que provoca a nível global e do agravamento do efeito de estufa, implica a destruição de parte da floresta amazónica equatoriana. Por isso o Equador põe como condição para a exploração petrolífera no território (se esta não puder ser impedida) a retribuição de pelo menos 50% dos lucros de exploração, a fim de combater os estragos provocados na biodiversidade amazónica e na vida social.
(Ver docs e pormenores desta iniciativa revolucionária.)

Fevereiro de 2011

O Equador bate todos os recordes mundiais em matéria de indemnizações impostas a empresas multinacionais que provocaram estragos sociais e ambientais – a Chevron Texaco foi dada como culpada nos tribunais internacionais pelos prejuízos causados entre 1964 e 1990 e terá de pagar 9500 milhões de dólares.
É um precedente legal histórico, tanto pelo conteúdo como pelo montante.


Trago aqui este resumo muito genérico e breve dos acontecimentos no Equador com algumas intenções:
  1. Ajudar as assembleias populares em curso em diversos pontos de Portugal a reflectir sobre a questão da dívida soberana. Não pretendo impingir soluções, apenas fornecer alguns dados baseados em factos reais e o exemplo de outras lutas semelhantes levadas a cabo com sucesso.
  2. Embora seja compreensível o medo das populações perante a ideia da auditoria, da renegociação da dívida ou mesmo da sua anulação, este medo sem razão evidente resulta da propaganda oficial das correntes neoliberais, e da propaganda oficiosa, aparentemente «neutra», veiculada pela «voz do dono», isto é, pelos órgãos de comunicação social. Disto já falei em artigo anterior. No entanto o exemplo do Equador prova que as opções soberanas, sejam elas quais forem, são possíveis, não são utópicas mas sim eficazes, não implicam o fim do mundo mas sim um maior bem-estar das populações.
  3. É absolutamente indispensável criar redes independentes e honestas de informação, baseadas em redes digitais (e portanto mais facilmente independentes do poder económico).
  4. Olhando atentamente para os documentos disponíveis sobre os últimos 8 anos de história do Equador, verificamos que, para além da coragem imensa desse povo e de alguns dos seus dirigentes políticos, a solidariedade internacional desempenhou um papel indispensável. Sem as acções de solidariedade internacional, a revolução equatoriana poderia ter sido irremediavelmente esmagada. É necessário que os activistas e as redes sociais portuguesas se liguem às redes internacionais, estudem os processos de outros países, abandonem as fronteiras ridículas do seu Portugal dos Pequeninos e apelem ao auxílio solidário das redes e movimentos sociais internacionais através de objectivos e propostas concretas de acção.

nota: algumas horas depois da publicação deste artigo reparei que outro, complementar, foi publicado aqui.

fontes:

Geral, sobre a anulação da dívida em todo o mundo: CADTM.
Primeiros resultados da auditoria da dívida no Equador.
Suspensão do pagamento dos juros da dívida no Equador.
http://www.ilmanifesto.it/oggi/art48.html.
Decisão soberana de declara a anulação da dívida do Equador.
Auditoria Cidadã da Dívida, lista de documentos sobre o Equador.
A Iniciativa Yasuní ITT.
Indemnização pelos prejuízos ambientais e sociais causados no Equador.
O Equador como novo modelo constitucional em matéria de dívida.

14/05/11

Opacidade, corrupção e dívida

Ao longo de várias semanas de declarações, debates, frente-a-frentes, entrevistas, mesas redondas, os porta-vozes televisivos da esquerda não têm dado resposta eficaz ao embuste que pretende fazer crer que  um país cai em desgraça quando impõe a renegociação da sua dívida; nem às trafulhices que ocultam as razões pelas quais a UE nos cobra juros mais altos que o FMI. Estranho silêncio.

Sobre a questão da Argentina, já aqui apontei elementos para uma resposta à campanha neoliberal. Ver também CADTM e ATTAC.

Na ausência duma explicação convincente sobre a questão dos empréstimos aos Estados dentro da União Europeia, passei uma semana a escavar na Internet. É bem possível que eu tenha percebido tudo às avessas – o sistema europeu é opaco. Por isso, se me enganei, espero ansiosamente que algum iluminado me esclareça.

Conclusões específicas:

  1. O BCE (Banco Central Europeu) proibiu-se de emprestar dinheiro directamente aos Estados. (Esta parece ser a questão central que dá origem ao debate patético sobre «solidariedade» entre Estados europeus; patético porque o que está em causa não é solidariedade, mas sim saber quem arrecada juros da miséria alheia.)
  2. No entanto, o BCE não se proibiu de emprestar dinheiro aos bancos privados a uma taxa fixa de 1,25% (em 2010 a taxa era de 1%). Esta operação permite à banca privada fazer negócio com dinheiros que não possui. Entretanto, supõe-se que a maior parte do dinheiro do BCE venha do bolso dos contribuintes europeus. Por outras palavras, os contribuintes estão a emprestar dinheiro à banca privada, sem nunca serem consultados e sem jamais receberem os respectivos juros.
  3. Com o dinheiro que não tinham e foram pedir emprestado ao BCE, os bancos privados emprestam dinheiro aos Estados (comprando títulos de dívida, participando em investimentos públicos, etc.). 
  4. Estes empréstimos rendem juros variáveis, visto que os bancos centrais tiveram o cuidado prévio de se demitirem da regulamentação e fiscalização destas operações da banca. Em suma: quando se empresta à banca privada, o juro é fixo e regulado; quando se empresta ao público contribuinte, o juro é variável e pode subir até à estratosfera.
  5. Embora o BCE se tenha proibido de emprestar dinheiro aos Estados, não se proibiu de comprar títulos de dívida no mercado financeiro – ou seja, não se proibiu de fazer negócios no mercado financeiro privado, à custa do dinheiro dos contribuintes.
  6. Por isso, a seguir, o BCE compra uma parte dos títulos de dívida existentes no mercado, aos bancos privados a quem emprestou dinheiro. Obviamente o BCE irá acrescentar um novo juro (o seu lucro) a esses títulos de dívida.
  7. Finalmente, alguém terá de pagar toda esta trafulhice, como convém a uma boa sociedade capitalista. O devedor terá de pagar o somatório de: montante inicial do empréstimo; mais o juro primário de 1,25% cobrado pelo BCE à banca privada; mais o juro secundário dos bancos privados (variável); mais o juro terciário do BCE (variável). Aí está porque os juros da «ajuda» europeia saem mais caros que os do FMI – no caso do FMI a trafulhice parece não implicar tantos intermediários.
  8. Existe uma salgalhada de FEEF [1], EFSF, ESFS, etc. Alguns destes organismos europeus foram dotados de fundos na ordem das centenas de milhar de milhão de euros, podendo chegar ao bilião. Estes fundos serviriam para comprar dívida dos países europeus no mercado primário. A ideia seria pôr em marcha um sistema financeiro de solidariedade. Mas, mal foram conhecidos os fabulosos montantes dos fundos, as instituições financeiras privadas ficaram com os olhos em alvo e atacaram em força, procurando servir-se deles. Neste momento existe grande discussão interna, muitas reuniões (anunciadas ao público como bondosos debates sobre a solidariedade financeira), e ainda não se sabe bem onde tudo isto vai dar. Apesar de nada se saber sobre o futuro de todas estas siglas, elas já andam abundantemente na boca dos políticos, a propósito do resgate da dívida portuguesa... Enfim, tudo isto é simultaneamente kafkiano e orwelliano.
  9. Os bancos não precisam de se preocupar demasiado com a possibilidade de um dos países devedores entrar em incumprimento – o BCE serve de escudo e garantia.
  10. Algures na penumbra dos gabinetes europeus existem desde 2010 (ou antes?) documentos dando conta da incapacidade deste sistema europeu de empréstimos em círculo vicioso aguentar mais de 4 anos sem estoirar com a Eurozona. Estes documentos foram produzidos nas mesmíssimas reuniões que decidiram criar o modelo de resgates da dívida em curso e a tal barafunda de siglas e fundos. Ora os referidos documentos preveem a restruturação das dívidas externas da Grécia, Portugal e Irlanda (e quem sabe futuramente a Espanha e outros países) no prazo de 2 a 4 anos, como forma de impedir in extremis o estoiro da Eurozona. Assim, a restruturação da dívida, apresentada por José Socrates como o diabo na Terra, está afinal... oficialmente prevista como solução final!
  11. A maior parte dos títulos da dívida dos países periféricos da UE é detida por banqueiros europeus. Em 2008 48% dos credores da dívida portuguesa eram bancos franceses e alemães. A situação da Espanha e da Grécia é semelhante.
    Isto significa que os principais credores da dívida portuguesa não vêm dos EUA, do FMI, da China, ou de Marte, mas sim dos países hegemónicos dentro da própria UE.
  12. A origem, natureza e instrumentos da dívida externa deveriam ser minuciosamente conhecidos por todos aqueles que têm de pagá-la (ou seja o povo).


    Espanha Portugal Grécia
    dívida externa


    em milhões de euros 1.779 381 385
    em % do PIB 169% 233% 162%








    por devedor


    governo 299   17% 98   26% 206   53%
    empresas financeiras 823    47% 210   55% 112   29%
    outros 645    37% 73   19% 68   18%

    Espanha Portugal Grécia

    Como se vê, segundo as contas do Research on Money and Finance (baseadas nas do Banco de Portugal), em «The Eurozone Between Austerity and Default», 55% da dívida externa portuguesa não diz respeito aos interesses colectivos do país, mas sim ao endividamento das instituições financeiras privadas.[6] É portanto ilegítima.[1]  Segundo o FMI, essa parte é «apenas» de 21,76%.
  13. É imprescindível realizar uma auditoria integral à dívida soberana portuguesa.[4] Doutra forma poderíamos gastar os próximos 200 anos a discutir os factores da dívida – tudo não passaria de uma grande ficção telenovelesca.[3]

Conclusões gerais:

  1. A União Europeia tornou-se uma torre de marfim assente num labirinto infernal. Este labirinto encontra-se em crescimento constante – todos os meses se criam novos corpos administrativos e financeiros concorrentes entre si, produzindo uma nuvem opaca impenetrável à perspicácia do cidadão comum. Nesta altura dos acontecimentos a profusão de instâncias e siglas é tão grande, que diversos analistas e até governantes laboram em erros crassos, confundindo siglas, instrumentos financeiros e processos.[2]
  2. Não é possível aceder a projectos, apoios, subsídios e gabinetes da UE sem recorrer a processos corruptos em sentido genérico, ou sem uma equipa milionária de advogados, acessores e peritos. Pertencer à UE significa hoje estar sujeito a uma máquina de corrupção inelutavelmente contagiante, que arrasta para dentro do seu póprio pus todo o pensamento e acção de cada cidadão, que cria uma cultura generalizada de corrupção prática e intelectual.
  3. A máquina burocrática da UE tornou-se um paradigma da caixa negra de Vilém Flusser aplicada à política. Funciona por si mesma, alimenta-se de si mesma, é independente da vontade do utente.
  4. A questão da solidariedade dentro das instituições da UE, que a esquerda democrática naturalmente pretende ver posta em marcha, é uma batalha perdida. A máquina burocrática da UE está toda ela feita para reforçar o poder antidemocrático e o domínio dos interesses financeiros hegemónicos (e privados) de dois ou três países dentro da Europa. Tudo o mais são doces miragens ideológicas.
  5. O constante crescimento labiríntico da máquina da UE acabará por fazê-la implodir. O melhor que os militantes democráticos podem fazer é contribuir para acelerar esse processo, provocando a implosão da UE o mais depressa possível, de modo a que possamos todos voltar a um salutar exercício da democracia.
  6. Independentemente da batalha perdida pela democracia [5], não pára de aumentar o número de analistas e economistas que concluem pelo fracasso total da Eurozona.




Notas:

[1] No caso português parte da dívida é no mínimo ilegítima – e, na nossa opinião, é batota não levar em linha de conta as parcerias público-privadas, o estranho caso do negócio dos submarinos e dos carros blindados, as pontes, bibliotecas, escolas, deitadas abaixo para dar lugar a novas construções exactamente para o mesmo efeito e no mesmo lugar, etc. No caso grego é quase certo que uma parte da dívida externa seja odiosa. Se calhar alguns leitores pensarão que o termo «dívida odiosa» é um epíteto de propaganda política. Nada disso; trata-se de um conceito jurídico consagrado na lei internacional. Ver definição oficial aqui e aqui [fr] ou aqui [en]. Os precedentes jurídicos internacionais indicam que a parte odiosa das dívidas não deve ser paga

[2] O nosso presidente Cavaco Silva adora mencionar o FEEF, não perde uma oportunidade, mas provavelmente também está enganado na sigla. Nem quero imaginar como serão as aulas de economia deste senhor.

[3] Seria interessante perceber, por exemplo, como é que a Alemanha, a Bélgica e a Espanha gastam 1,1 a 1,4% do seu PIB em armamento, enquanto Portugal gasta 2,0% – bem me parecia que estávamos em guerra... Neste capítulo a Grécia é campeã com 4% – fujam, que vêm aí os Turcos!

[4] A comissão de auditoria não pode ser de natureza apenas parlamentar (esta proposta, apresentada por António Barreto na semana corrente, é um pouco inocente... equivale a instalar a amante do ladrão na cadeira do juiz...); deve ser uma comissão mista: representantes das instituições democráticas portuguesas, representantes dos movimentos sociais, e entidades independentes, como se fez no Equador.

[5] Exemplos evidentes: o desprezo pelos referendos em França e na Irlanda; o desprezo expresso de Merkel pelos parlamentos nacionais.

[6]  A ideia de que este jogo de endividamento da banca privada faz bem à economia portuguesa é certamente mais outro logro, mas não se pode esclarecer tudo duma assentada num simples artigo.

O exemplo equatoriano (1)

O povo português tem sido levado a acreditar que certas dependências e sujeições ao poder económico-financeiro são inevitáveis; que as soluções alternativas são irrealistas, impraticáveis ou mesmo pueris.

Nada mais falso. Iniciamos aqui a publicação duma série de resumos informativos destinados a contribuir para a reflexão sobre vias alternativas.

A nova Constituição equatoriana (2008)
O Equador aprovou em 2008 uma nova Constituição que apresenta aspectos radicalmente inovadores.

Entre as inovações dignas de nos deixarem verdes de inveja, destacamos os capítulos relativos à dívida pública e à protecção da natureza.

Para consultar mais documentação sobre o tema, ver CSI (em português) e CADTM (em francês).

A questão da dívida pública no direito constitucional equatoriano
A secção «Endividamento Público» reza assim:
Art.º 290 – O endividamento público ficará sujeito às seguintes regras:
1. Recorrer-se-á ao endividamento público apenas quando a receita fiscal e os recursos provenientes da cooperação internacional sejam insuficientes.
2. Velar-se-á que o endividamento público não afecte a soberania nacional, os direitos humanos e o bem-estar e preservação da natureza.
3. O endividamento público servirá exclusivamente para financiar programas e projectos de investimento de infraestruturas, ou capazes de gerarem reembolso. Só será permitido refinanciar a dívida pública externa quando as novas condições sejam mais vantajosas para o Equador.
4. Os acordos de renegociação não deverão conter nenhuma forma tácita ou expressa de anatocismo [=juros sobre juros, ou juros compostos] ou usura.
5. As dívidas declaradas ilegítimas por órgão competente serão impugnadas. Em caso de ilegalidade declarada, exercer-se-á o direito de indemnização [pelos prejuízos causados].
6. O direito de acção judicial contra actos de responsabilidade administrativa ou civil decorrentes da gestão da dívida pública nunca prescreve.
7. É interdita a «estatização» de dívidas privadas.
(...)
Art.º 291 – Os órgãos competentes, determinados pela Constituição e pela lei, realizarão análises financeiras, sociais e ambientais prévias do impacto dos projectos que impliquem endividamento público, a fim de determinar a viabilidade de financiamento. Estes órgãos realizarão o controle e a auditoria financeira, social e ambiental de cada fase do endividamento público externo e interno, tanto na fase de contrato como na de gestão e renegociação.
[tradução de Rui Viana Pereira; fonte: Constituição do Equador, versão de bolso, em castelhano]

Brevemente publicaremos um artigo sobre o resultado prático da política equatoriana para a dívida externa.


A Natureza como sujeito de Direito na Constituição equatoriana
Na sua secção VII, a Constituição coloca a natureza como sujeito de direitos. É a primeira constituição na história mundial a adoptar esta abordagem, estabelecendo os seguintes princípios:

O meio ambiente é considerado como sujeito de Direito ao qual se devem subordinar as funções económicas e sociais.
A água, além de ser considerada um mero recurso natural, passa a ser vista como um «bem nacional de uso público» e «estratégico», «essencial para a vida humana».

O Direito da natureza inclui não só a sua preservação, mas também a sua restauração.

10/05/11

Da natureza da dívida e da natureza da política

Da natureza da política

Tenho constatado que existe uma enorme confusão acerca da natureza da política.

O que distingue a política de todas as outras disciplinas é que para ela a pergunta «isto é bom ou mau?» não faz sentido nem pode jamais ter lugar. Talvez o filósofo, o profeta, o sacerdote possam fazer essa pergunta; mas o político lúcido jamais poderá fazê-la, sob pena de se desencaminhar imediatamente. Em vez disso, o político faz duas perguntas concretas: «Isto é bom para quem? Isto é mau para quem

Sem esta pergunta fundamental não é possível pôr em marcha qualquer acção política.

Assim, por exemplo, em filosofia a tributação (impostos, taxas, etc.) poderá ser considerada uma coisa justa ou injusta em si mesma. Em política esta questão não faz o mínimo sentido. A única coisa que interessa ao político é saber para quem será justa uma determinada tributação, ou para quem será ela injusta. Há sempre duas faces antagónicas, de modo que o que é justo para uns será injusto para outros.
Por exemplo: será justo permitir a livre flutuação dos juros de empréstimo, em vez da sua fixação inicial definitiva? É claro que os juros flutuantes são justos para o agiota, sendo injustos para quem tem de pagá-los.

À política não compete encontrar verdades absolutas e abstractas. O político é alguém encarregado de encontrar propostas concretas e linhas de acção em benefício de outrem (ou de si próprio...). É por isso que existem diferentes campos, diferentes partidos – porque existem diferentes interesses opostos entre si. Expressões como a «luta de classes» podem não estar hoje na moda, ou não fazer o mesmo sentido que faziam nas sociedades de há um século; podem até causar repugnância a muito boa gente. Mas o que não se pode ignorar é a existência constante, omnipresente, de interesses antagónicos que atravessam toda a sociedade e até a sociedade das nações, isto é, todo o mundo.

Da natureza da dívida

Antes de saber para quem é justa ou injusta uma determinada coisa, obviamente é necessário saber que coisa é essa. Exemplo: antes de saber se uma determinada tributação camarária é boa ou má para os habitantes desse lugar, é preciso saber sobre que objecto incide a tributação, a quanto monta, quem a paga, para que fim se destina, etc.
Conhecida a coisa, é então necessário perguntar: mas isso é bom (ou mau) para quem?
Se a pergunta não for feita, não há política.

O problema com que nos debatemos a propósito da dívida nacional, e dos meios para lidar com ela, é que não sabemos claramente do que se trata, a quanto monta, como se constituiu, a quem aproveita; aliás, nem sequer sabemos com clareza a quem estamos a pagar, nem sequer o que estamos a pagar.

Por outras palavras: sejam quais forem as medidas propostas para solver a dívida, já há muito tempo que não se está a fazer política democrática. Assim se compreende a tirada da senhora Merkel, quando desclassificou com um puxão de orelhas as decisões da assembleia soberana portuguesa, a propósito do chumbo do PEC IV; e a negação em pânico do senhor Presidente da República quando lhe foram sugerir uma auditoria à dívida – aliás, Cavaco Silva é candidato à figura mais bronca da história do estadismo português, o que permitiria compreender a sua incompreensão acerca da natureza da dívida – ao contrário, por exemplo, dos presidentes da Islândia e do Equador.

Por conseguinte vemo-nos perante uma questão inicial ainda não resolvida: é forçoso realizar uma auditoria integral às contas públicas, incluindo a dívida, sob pena de ninguém fazer a mínima ideia do que está a falar (incluindo o primeiro-ministro, como tem sido sobejamente provado).

Só depois é possível perguntar quais as medidas à nossa disposição e para quem são elas justas ou injustas.
Por outras palavras, só depois da auditoria integral é possível começar a fazer política.
Antes disso apenas podemos obedecer ou rebelar-nos cega e inutilmente contra o exercício brutal de uma ditadura aparentemente apolítica (ou seja aparentemente sem campo ou partido ou beneficiário) que nos é imposta do exterior, através de cães de fila internos.

03/05/11

A Troika e a estratégia do medo

«Podemos dizer que esta foi uma crise financeira. Mas também podemos dizer que foi, fundamentalmente, uma crise democrática. Quando decidi colocar a questão em referendo, disse que ao olhar para todas as análises fiquei, no fim, com uma escolha: entre as exigências dos mercados financeiros, por um lado, e a democracia, por outro, eu tenho de escolher a democracia. Porque a democracia é muito mais fundamental para a nossa sociedade do que os mercados.»
[Presidente Islandês Ólafur Ragnar Grímsson, PhD em Ciência Política, em entrevista para a Revista Visão, 28-Abril-2011]

A teoria da inevitabilidade

A comunicação social portuguesa tem sido o artilheiro de serviço numa barragem de fogo patrocinada pelas duas chamadas «Troikas» – a externa (FMI+Banco Central Europeu+Comissão Europeia) e a interna (PS+PSD+CDS).
A todas as horas do dia e da noite os órgãos de comunicação transmitem a tese da inevitabilidade da intervenção externa, deixando o público aterrorizado perante a ideia de que a Troika possa amuar e ir-se embora sem deixar cá uma «ajudinha».

A intervenção da Troika e a especulação financeira são-nos apresentadas como uma espécie de catástrofe natural inelutável, à semelhança dos terramotos, dos furacões, das cheias – e não como opções políticas tão passíveis de ser aceites ou rejeitadas como outras quaisquer.

A eficácia desta campanha assenta um princípio simples: uma mentira repetida até à exaustão acaba por tornar-se verdade na cabeça do ouvinte.

Apesar de haver alternativas à intervenção da Troika, os comentadores ou não as mencionam ou referem-se a elas com sorrisos de esguelha, como se fossem coisa pueril e desprezável.

A teoria do crime e castigo

A propaganda pró-ingerência da Troika externa, a que a Troika interna chama graciosamente «ajuda externa», atingiu na semana passada um novo nível qualitativo com a campanha lançada pelo PP-CDS.

Segundo os porta-vozes centristas, os cidadãos que «defendem o não pagamento da dívida» (assim se referem as Troikas a qualquer um que não apoie o FMI) seriam perigosos irresponsáveis, e a Argentina e o Brasil seriam exemplos de países sujeitos ao colapso económico por terem supostamente recusado o pagamento da dívida, colapso esse acrescido de fome, caos, arruaça, perda de bens e saque da propriedade privada. Enfim, um autêntico Armagedão.
Ainda por cima, segundo Paulo Portas, esses países teriam sido finalmente obrigados a pagar a dívida externa em dobro.

Ou seja, à teoria da inevitabilidade soma-se agora a teoria do crime e castigo.

Poderíamos desprezar este tipo de mentiras e votá-las ao esquecimento, se não fosse o caso de a comunicação social ter a capacidade de lhes emprestar uma força que não têm; uma força que, não sendo atalhada, pode mesmo acabar por levar de vencida toda a inteligência das coisas e do público, e isso mesmo justifica a minha insistente referência ao papel da comunicação social neste processo.

A teoria do papão interno

Segundo Paulo Portas, «são irresponsáveis perigosos aqueles que defendem a recusa de pagamento da dívida externa» (cito sinteticamente).

Em primeiro lugar, o pressuposto é desonesto – ninguém propôs semelhante coisa. Paulo Portas está a inventar inimigos internos que não existem, cria um ambiente de imaginação paranóica, agita papões que não possuem qualquer sustentação na realidade.

Não existem opositores à intervenção (leia-se ingerência) financeira externa que tenham defendido o incumprimento das responsabilidades perante a comunidade internacional – exactamente na mesma medida em que nunca houve democratas de esquerda a comerem criancinhas ao pequeno-almoço ou a fazerem orgias báquicas dentro das igrejas e a cuspirem nos santinhos, para citar a paranóia propagandística do regime de Salazar.

A necessidade de uma auditoria integral

Em segundo lugar, a tirada de Paulo Portas é uma manobra de diversão típica do marketing político (já sobejamente explicado em «Estratégias de Manipulação Mediática» e noutros artigos de Noam Chomsky); destina-se a desviar as atenções de um conjunto de questões eminentes postas por vários partidos e movimentos de cidadãos dentro da sociedade portuguesa. Relembremo-las sumariamente:

  1. Antes de estabelecer quaisquer acordos internacionais, antes mesmo de iniciar quaisquer negociações, é imprescindível fazer uma auditoria integral às contas públicas e à dívida externa e interna, a todas as contas actualmente metidas no saco da dívida. Estabelecer as condições de pagamento de uma dívida sem saber ao certo quais os seus montantes, a sua origem, a matéria a que diz respeito, isso sim, é uma irresponsabilidade aflitiva. Nenhum banqueiro na perfeita posse do seu juízo admitiria encetar um negócio privado ou renegociar uma dívida sem conhecer o objecto da negociação – então como admitir que este procedimento seja adoptado para a coisa pública?
  2. Dentro do «saco» da dívida externa existem muitos tipos de dívidas. Umas provêm dos pedidos directos de empréstimo ao Estado, outras dizem respeito à banca privada; umas resultam de actos de especulação financeira, outras de despesas necessárias ao conjunto da sociedade; umas resultam de actos normais da administração, outras de actos de corrupção, favoritismo pessoal, má gestão e ganância. Uma parte da dívida é privada ou mesmo ilegítima; não é da responsabilidade do colectivo dos contribuintes, e portanto não deve ser paga pelos contribuintes, mas sim por aqueles a quem diz respeito.
  3. Se houve má gestão política e financeira do país e das contas públicas, paciência, está feito – é assim que funciona a democracia. O que há a fazer é chumbar os representantes incompetentes na próxima oportunidade eleitoral e substituí-los por quem saiba da poda. Mas há casos em que o erário público foi desbaratado em benefício de interesses pessoais ou negócios privados (nacionais ou estrangeiros), sem que possa ser demonstrada a necessidade pública desses actos – esses casos não podem ser aceites como má gestão pública, porque objectivamente trata-se de gestão em proveito próprio, corrupção, atentado ao bem público. O lugar das dívidas daí resultantes não é a mesa de negociações da dívida soberana, mas sim os tribunais nacionais e internacionais. A parte privada ou ilegítima da dívida deve ser retirada do caderno de encargos e da mesa de negociações; deve ser retirada da administração financeira e transferida para o lugar que lhe compete: a administração da justiça.
    Acontece que alguns dos responsáveis pela parte ilegítima da dívida nacional são muito provavelmente... os próprios credores – e nesse caso sim, pôr-se-ia muito naturalmente a questão de não pagarmos essa parcela da dívida. Se, por exemplo, as investigações internacionais em curso acabarem por demonstrar a promiscuidade de interesses entre as agências de notação (rating) e as instituições financeiras que beneficiam da escalada de juros da dívida, então pagar juros inflacionados seria, mais do que condescendência, conluio de agiotagem.

Velhos métodos obscurantistas

Paulo Portas acrescenta novo andar ao seu castelo de alucinações paranóicas afirmando que, nos países em que foi exigida a reestruturação da dívida (nas palavras de PP: «recusaram pagar a dívida»), em particular na Argentina, seguiu-se a convulsão social, o caos, o roubo da propriedade privada, e por fim o pagamento forçado e duplicado da dívida – é a teoria da inevitabilidade cumulada de crime e castigo.
Este tipo de desonestidade intelectual assenta numa salgalhada de factos históricos distintos, ocorridos em países diferentes, em épocas diferentes, sob regimes diferentes [adiante se explicará em que consiste a salgalhada]. É como se, ao analisarmos o período político que vivemos hoje em Portugal, nos puséssemos a falar da acção nefasta da Pide – não só não faz sentido, como chega a ser ofensivo.

O caso argentino: resultados duma moratória

Vejamos resumidamente o que aconteceu na Argentina, já que Paulo Portas teve a bondade de a trazer à liça.

A partir de 2003, com a eleição do presidente Kirchner (e mais tarde com a presidenta Kirchner, até 2009), a Argentina entrou num rumo estrategicamente planeado, visando a reestruturação da dívida, o reforço do tecido produtivo e o desenvolvimento sustentado.
A moratória ao pagamento da dívida, imposta pela Argentina, não foi estabelecida por uma corja de irresponsáveis, como sugerem o CDS, o PSD e o PS, mas antes por um povo responsável e cioso do seu futuro. Foi precisamente esta seriedade que obrigou os credores a renegociarem em termos mais razoáveis.
Neste processo, neste país e nesta época a que nos estamos a referir, não houve caos; não houve perda de bens; não houve sangue nas ruas; concluído o processo, a Argentina não teve de pagar mais – ao contrário do que afirma o CDS, a dívida foi reduzida para cerca de metade do seu valor anterior.
Houve nacionalizações, sim, mas apenas daquelas empresas que, sendo necessárias à estruturação e impulsão da economia argentina, tinham sido indevidamente privatizadas em época anterior. Porque será que os centristas não mencionam este «pequeno» pormenor?
«A Argentina manteve a moratória por prazo indefinido e apresentou a seus credores um contrato de adesão, numa base take-it-or-leave-it. Sustentou a sua posição contra grande pressão do exterior. Suportou muitas ameaças e previsões sombrias. No final, a grande maioria dos credores resolveu take it. [...] A adesão dos credores acabou superando as expectativas, chegando a 76% da dívida em moratória. [...]
O PIB aumentou nada menos que 9% em 2004 depois de ter crescido 8,8% em 2003. [...] Para 2005, o FMI prevê crescimento de 7,5% na Argentina [...].
Apesar da rápida expansão da economia, a inflação foi razoavelmente controlada e o balanço de pagamento registou superavit em transacções correntes. Medida por um índice de preços ao consumidor, a taxa de inflação média anual na Argentina caiu de 25,9% em 2002 para 13,4% em 2003 e 4,4% em 2004.[...] a Argentina não teria alcançado esses resultados se estivesse seguindo as políticas preconizadas pelo FMI [...]. O FMI recomendou insistentemente que o governo argentino aumentasse as metas de superavit fiscal primário para níveis próximos, em termos de percentagem do PIB, às adoptadas pelo Brasil. O ministro da Economia, Roberto Lavagna, não aceitou. A Argentina fixa metas de superavit primário que ela considera compatíveis com o crescimento da economia e outros objectivos do governo. Esse foi um dos princípios que orientaram a bem sucedida reestruturação da dívida externa pública. [...]
A Argentina também não tem preconceito contra controles de capital. Restrições à entrada de capitais especulativos ou de curto prazo têm sido aplicadas com frequência para ajudar a conter a valorização do peso e reduzir a vulnerabilidade externa do país.»
[in Paulo Nogueira Batista Jr., Estudos Avançados, 19 (55), 2005, «Brasil, Argentina e América do Sul»]

Hoje (desde 2010), a Argentina volta a enfrentar algumas dificuldades – não em resultado das posições corajosas que tomou no passado recente, mas sim porque os lobbies financeiros e a oposição de direita conseguiram finalmente forçar o governo nomeado depois das eleições de 2009 a aceitar os interesses e condições propostos por uma pequena parte da banca norte-americana que não aderiu aos acordos de 2005. Este sector da banca andou durante vários anos pelo mundo fora a comprar títulos da dívida argentina, acrescendo-lhes juros para seu benefício próprio. (Ver artigo sobre a evolução dos acontecimentos em Les banquiers se réjouissent, entre outros disponíveis nas publicações do CADTM.)

Já que o CDS e restantes políticos portugueses do chamado «arco do poder» estão apostados em repetir à exaustão a palavra «responsabilidade», temos de sublinhar como no caso da Argentina, e de resto em todos os outros casos, se demonstra a forma irresponsável e desumana como a finança internacional (incluindo o FMI, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia) especula com a vida dos povos.
Em futuros artigos procuraremos analisar e tirar lições do caso de outros países – Brasil, Equador, etc.

O bom pagador e o credor ansioso

A tese do crime e castigo tem vindo a ser soletrada todos os dias, desde a campanha para as eleições presidenciais. Este artifício busca controlar o eleitorado por meio do medo.
O exemplo dos processos recentes ocorridos em diversos países (Argentina, Brasil, Equador, Islândia, etc.) demonstra precisamente o contrário:

A banca credora procura sempre especular abusivamente; serve-se dos políticos e dos governos neoliberais como cavalos de Tróia; mas quando estes governos se tornam independentes e impõem uma moratória para renegociação, a maioria dos especuladores imediatamente faz marcha atrás e acede a reestruturar a dívida.
O objectivo último de qualquer credor é, muito simplesmente, recuperar o dinheiro que investiu e obter algum lucro. Se não puder inflacionar esse lucro por meios sujos, paciência, contentar-se-á com o que puder agarrar. Neste aspecto, a lógica do agiota internacional de serviço não difere em nada da do merceeiro desonesto, quando este tenta aldrabar a lista de compras fiadas – mais depressa aceitará a correcção das aldrabices que procurou produzir, do que se sujeitará a não receber nada...

É certo que o agiota não sente qualquer escrúpulo em fazer um povo inteiro passar fome, como forma de punir e atemorizar. Mas preocupa-o muito mais a perspectiva de não recuperar o seu dinheirinho. Esta sim, é uma espécie de lei da natureza com a qual devemos contar antes de tomar qualquer decisão responsável.