23/06/11

Adenda à sociometria do Rossio

Tendo constatado alguns deslizes no texto do meu artigo sobre a sociometria (caseira) da assembleia do Rossio, introduzi-lhe alterações na secção de notas e interpretações pessoais dos dados.
A todos aqueles que fizeram citações, reproduções e comentários, chamo a atenção para essas alterações.

Além da correcção de erros ou excessos de interpretação, foi acrescentada uma correlação que me tinha passado despercebida: o somatório dos desempregados e dos precários (ou seja dos desempregados efectivos) nas secções «cartão de crédito» e «dívidas aos bancos» é igual ou superior a 50%.
Este dado é da maior importância, pois revela a degradação das relações e do mercado de trabalho nos últimos anos. É evidente que quando as pessoas receberam empréstimos e cartões de crédito ainda podiam dar garantias de estabilidade financeira aos bancos.

Estes dados levantam uma questão essencial: a instabilidade do mercado de trabalho, tão querida e exigida pelas instituições financeiras e pelos políticos neoliberais, contém em si o descalabro do sistema de crédito financeiro – em especial num país como Portugal, onde a dívida interna ganhou um peso desmesurado por iniciativa das próprias instituições financeiras.

20/06/11

His master's voice

[artigo em fase de construção, adiantando-se aqui o rascunho pela urgência do tema e por falta de tempo para o concluir duma assentada]

Com um misto de alívio, angústia e esperança, vejo um número crescente de pessoas descobrirem que a comunicação social, hoje em dia, não passa de uma máquina de propaganda ao serviço do regime, exactamente no mesmo sentido em que o era durante os tempos do fascismo – ou, se preferem, do Estado Novo –, embora o faça por vias completamente diferentes.

Alívio, porque a tomada de consciência do papel manipulador, mitómano, engajado, da Voz do Dono representa um avanço notável da consciência política individual.

Angústia, porque este salto qualitativo da consciência é correlativo ao crescendo monstruoso da reacção do poder político, financeiro e neoliberal à contestação popular. O poder instituído muscula-se, baixa a máscara, chama às armas todas as forças militarizadas (dentro do coração das democracias mais «avançadas» do mundo!) e ideológicas para reprimir e iludir o descontentamento popular.

Mas, sejamos realistas, na maioria dos países europeus o descontentamento e a fúria populares não atingiram ainda uma massa crítica que permita falar dum processo revolucionário em curso. No entanto, este processo está à vista, parece iminente, aflora pontualmente em certas regiões que constituem um rastilho para toda a Europa. O poder dominante procura a todo o custo evitar que o público seja informado do que se está a passar na Espanha, na Grécia, na Islândia e noutros lugares da Europa. A Voz do Dono da Europa, no seu tradicional chauvinismo eurocêntrico, que pressupõe uma distinção abissal entre «nós» e «eles», ainda admitiu durante algum tempo que o público tomasse conhecimento dos pormenores desse acontecimento «exótico» que são as revoluções democráticas do Norte de África; mas agora até isso é silenciado.

O mecanismo da Voz do Dono


Como funciona essa transformação da informação em propaganda do regime? Como é possível que haja censura e que os mecanismos de informação se tenham transformado em máquinas de propaganda do poder instituído, numa sociedade oficialmente pluralista e sem gabinetes de censura?
Tentarei explicar este fenómeno resumidamente – não através de sofisticadas retóricas e filosofias, mas sim através da experiência pessoal e directa.

O ambiente das redacções
Há cerca de duas ou três décadas, a redacção dos jornais tornou-se um lugar repleto de jovens estagiários (que, diga-se de passagem, trabalham como escravos mal pagos 9-12 horas por dia), donde foi expulsa a massa de profissionais seniores que costumava lá estar a vigiar e ensinar uns poucos estagiários.

Por conseguinte, temos em primeiro lugar que o complexo trabalho técnico, profissional e ético dos jovens jornalistas deixou de ter tutores. O estagiário encontra-se aparentemente entregue a si próprio.

Em segundo lugar, vemos um local de trabalho cheio de jovens ainda pouco seguros de si mesmos, maleáveis, fáceis de controlar e influenciar, desejosos de ganharem currículo a todo o custo, para poderem fazer carreira num mercado de trabalho cada vez mais superlotado. A cada trimestre as escolas produzem dúzias de formandos, e cada um destes é uma ameaça fatal ao jovem jornalista estagiário que já conseguiu uma cadeira em frente duma secretária soterrada em pilhas de recortes de jornal e terminais de computador.

Em terceiro lugar, a corrosão economicista das empresas de comunicação levou a que o jornalista deixasse de ser repórter, passando a ser mera correia transmissora de «notícias» e «verdades» provenientes duma misteriosa caixa negra, situada algures em parte incerta. O redactor (chamem-lhe jornalista ainda, se quiserem, mas de facto ele já não passa de relator) é um funcionário multitask que permanece sentado horas a fio diante de um teclado de computador, escrevendo e fazendo consultas na Internet, ao mesmo tempo que comunica frenética e ininterruptamente por telefone, nunca tirando o auricular do ouvido durante o dia inteiro.
Através desse telefone, as «fontes» bombardeiam-no com «notícias», recados, encomendas, «dicas». Sondam-no, e ele sonda-as. Fazem-no crer-se um eixo da maior importância na rotação do mundo. Negoceiam, aliciam-no, seduzem-no, trocam notícias por favores e favores por notícias. E o nosso jovem jornalista venera essa «fonte» como se dela jorrasse a palavra divina, todo-poderosa, omnisciente e vingativa.

Este estranho trato de veneração das «fontes» chega ao ponto produzir cenas como esta: o jornalista sai à rua, dirige-se a uma praça onde um conjunto de pessoas se manifesta e discursa através de altifalantes; o jornalista está lá, pode ouvir o discurso se quiser; mas no preciso instante em que o discurso começa, o jornalista vira costas ao acontecimento e dirige-se a um canto mais sossegado, onde recebe o telefonema de alguém que lhe descreve a «realidade» do que está ali acontecer. A notícia que leremos no dia seguinte é um relato da «fonte», nunca o testemunho dos olhos desse mesmo jornalista (e dos nossos).

O relator da Voz do Dono tornou-se um relais. Vazou os seus próprios olhos em benefício da «fonte», qual condutor de autocarro do Outono em Pequim.

As novas formas de organização da propaganda política
A célula partidária clássica organizava-se mais ou menos assim: os membros de confiança da célula reuniam-se; discutiam politicamente o que se passava lá fora; chegavam a conclusões políticas, decidiam linhas de acção política; produziam um conjunto de instrumentos de propaganda (jornais, panfletos, contactos pessoais, etc.).
Estes instrumentos de propaganda não podiam (e jamais poderão) ser dúbios, pela sua própria natureza. Um instrumento de propaganda, seja ele de um partido, de um governo ou de uma pasta de dentes, não pretende alcançar a verdade, mas sim convencer o público e criar uma fidelidade.

Este tipo de instrumentos de propaganda tornou-se bacoco; foi votado ao ridículo das velharias. Aliás, a própria célula tornou-se coisa bacoca. O que se usa, hoje em dia, é ser «fonte» de alguém, algures.

Para ser mais concreto: o tarefeiro da célula clássica, aquele militante habilidoso, capaz de escrever um texto inflamado a mando da direcção partidária, capaz de pintar um cartaz, de imprimir um folheto numa máquina de stencil movida à manivela, foi transferido para a redacção de um jornal. Perdeu o cartão partidário. Passou a ser um profissional «independente» ao serviço da máquina do poder no seu conjunto.

Mas então esse relator, que vaza os seus próprios olhos em benefício da «fonte», é o paradigma da desonestidade?, perguntará o leitor atónito. Não. O relator é fiel à sua «fonte» – e portanto honesto, desse ponto de vista...

Prioridades políticas

Criar um órgão de comunicação independente do poder institucional
Os partidos portugueses à esquerda do PS parecem ter perdido por completo a capacidade mais essencial a toda e qualquer organização política que pretenda sobreviver: a capacidade de identificar a questão principal (ou determinante, para usar o conceito dialéctico) de cada momento histórico e, consequentemente, definir as prioridades.

Toda e qualquer propaganda política apenas pode assentar em duas coisas: a fidelização, se ela já existir; não existindo fidelização prévia, torna-se indispensável uma campanha intensa de informação; sem informação, toda a propaganda está condenada ao cesto dos papéis.

Ora os nossos supostos resistentes ao poder instituído tentam fazer passar a sua informação através da Voz do Dono – logo, jamais chegam a fazer-se ouvir; cada tentativa é distorcida e revertida a favor do Dono; muitas vezes a Voz do Dono apenas lhes dá voz por prever que o discurso resultará ridículo e contraproducente junto do público, seja por inépcia, seja por falta de informação prévia que o sustente.

Por outras palavras: quanto mais propaganda quisermos fazer através da Voz do Dono, mais contribuiremos nós próprios para propagandear o Dono.
A resistência portuguesa (ou os movimentos políticos e sociais de esquerda, se preferirem chamar-lhes assim) ainda não percebeu esta coisa básica:
  • «propaganda» = «voz»,
  • «poder instituído» = «dono»,
  • «Voz do Dono» = «propaganda do poder instituído»
Não é possível qualquer resistência sem um órgão de comunicação alternativo e independente do poder instituído!

Custa-me a crer, por vezes, que a resistência portuguesa actual nada tenha aprendido com a luta contra o fascismo, contra a censura, contra a mordaça. Mas este é o triste facto.

Qualquer resistente da velha guarda antifascista sabia que a informação (nesses tempos feita às escondidas, com perigo da própria vida) era a condição prévia a todo e qualquer tipo de resistência.

É definitivamente impossível apontar caminhos novos, alternativos, quando as pessoas a quem nos dirigimos estão embebidas duma visão totalmente mitómana da realidade, duma reinvenção orwelliana dos factos concretos e históricos.

Actualmente não há uma só palavra dos jornais e da televisão que corresponda à verdade dos factos sociais, políticos e económicos. Tudo é mentira. E quem quiser repor a verdade dos factos terá de ser irremediavelmente cego para pensar que pode fazê-lo através da Voz do Dono. Seria o mesmo que pretender obrigar um rabino a rezar missa em latim.

[ao longo da próxima semana forneceremos aqui um link onde se poderão consultar exemplos da total e completa mitomania em que vive a Voz do Dono]

Todos aqueles que lutam contra a farsa da democracia representativa que hoje sofremos, todos os resistentes contra a injustiça social, contra o défice democrático, têm de se unir – não nos seus respectivos projectos e objectivos políticos, porque eles são naturalmente divergentes e porque isso não tem qualquer importância de momento, mas sim na construção de órgãos de comunicação e informação independentes do poder instituído. Não pôr isto como prioridade política é equivalente ao suicídio político.

Lutar com unhas e dentes pela independência e liberdade da Internet

A diferença de vulto entre os tempos da resistência antifascista e os tempos actuais é a invenção da Internet. De resto, a força da propaganda e da mitomania do regime é exactamente igual.

Dar prioridade à construção de órgãos de informação alternativos significa, por arrasto, lutar com unhas e dentes pela independência e liberdade da Internet.

Esta liberdade está hoje perigosamente posta em causa. Numerosos sites europeus de resistência já foram bloqueados e perseguidos policialmente. É urgente desenvolver acções políticas de defesa da Internet. E, pelo sim pelo não, preparar desde já redes digitais alternativas, visto que o próprio parlamento europeu já tentou várias vezes decretar o controle da liberdade na rede digital. Disso falaremos em futuro artigo.

07/06/11

Assembleia popular do Rossio - breve sociometria caseira

Comunicação social = Voz do Dono

A comunicação social, que aliás deve passar a chamar-se «A Voz do Dono», tudo tem feito para silenciar alguns dos acontecimentos mais importantes não só da actualidade portuguesa mas também da história mundial. E quando não cala, mente.

No caso da Grécia, a Voz do Dono transmite diariamente os recados do FMI, da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu. Em compensação, há 12 dias que esconde da opinião pública um facto essencial da vida política grega e até europeia: a Praça Syntagma, em Atenas, encontra-se há duas semanas pejada de gente que expressa a sua fúria e grita «basta». É «apenas» meio milhão de pessoas que não arreda pé; a gritaria dessa massa de gente é brutal; as imagens e os sons da praça encontram-se on-line, como já noticiei anteriormente aqui; mas a Voz do Dono permanece surda, cega e muda.

No caso da «acampada» e assembleia popular do Rossio, a Voz do Dono decidiu ignorá-la, com raras excepções. No entanto as excepções foram mais prejudiciais que benéficas, porque os jornalistas nem se deram ao trabalho de lá ir sondar e publicaram toda a sorte de aldrabices, provavelmente emprenhados de ouvido pelos seus/suas amantes políticos que constantemente enviam recados seminais por telefone, como bem sabe quem já trabalhou numa redacção de jornal.

A assembleia foi classificada pela Voz do Dono (e por alguns blogs igualmente mitómanos) como uma cambada de freaks em festa.

Tenho pena dos historiadores do futuro – ver-se-ão impossibilitados de sondar e avaliar os últimos 35 anos de história portuguesa, deparando-se com milhares de páginas e telejornais carregados de palermices adversas à realidade. A comunicação social tornou-se um castelo de mitómanos. O historiador do futuro ver-se-á perante um hiato de barbárie pré-histórica, visto que não pode confiar na crónica escrita.

Em benefício do público actual e dos historiadores vindouros, aqui vai um pequeno retrato sociométrico das pessoas presentes na assembleia do Rossio.

Retrato sociométrico (caseiro) da assembleia popular do Rossio de Lisboa

A amostra foi concebida e realizada pelo Bilioso Incondescendente, no sábado, 4 de Junho de 2011, durante os trabalhos da assembleia. Esta não foi das mais concorridas, mas ainda assim a amostra é de 169 pessoas (mais de metade dos presentes nesse dia, creio eu), escolhidas propositadamente entre as que se encontravam mais perto da mesa da assembleia, de forma a eliminar os curiosos de passagem.

O inquérito anónimo abarcava: género; idade; nacionalidade, residência; actividade escolar (estudante ou não); situação laboral (empregado, desempregado, precário, reformado); profissão; alguns índices de propriedade (casa própria, carro); laços com a banca (empréstimos bancários, cartão de crédito). O preenchimento não foi assistido, e daí derivaram alguns erros, como se verá adiante.

Género: Em primeiro lugar constatamos que a paridade entre mulheres e homens é perfeita.
Surge um inquirido de sexo indefinido e um transexual.

Nacionalidade e residência:  79% dos membros da assembleia são portugueses; 10% são espanhóis; encontraram-se casos isolados de 1 a 3 pessoas doutras nacionalidades (it, cv, br, fr, mx, ar, hu, be, de, sn). A maioria reside em Lisboa (78%); outros, nas linhas de Sintra, Cascais e Setúbal; algumas pessoas de Castelo Branco para sul, até ao Algarve; há residentes (raros) noutros países. É provável que boa parte dos residentes estrangeiros (nomeadamente os espanhóis) sejam estudantes Erasmus, mas não nos lembrámos de introduzir atempadamente esse factor no inquérito.

Vejamos agora dois factores que deitam por terra as mitomanias da Voz do Dono:

Dados etários:
média das idades = 29 anos
média de 90% da população (retirando os extremos) = 32 anos
mediana das idades = 29 anos
moda (idade mais frequente) = 28 anos

Como se pode ver no gráfico por grupos etários, não se trata de forma alguma de um bando de «putos» em férias, mas sim de uma distribuição variada de idades, à excepção dos grupos etários acima dos 61 anos.

Profissões: também neste aspecto as mitologias da Voz do Dono caem por terra.
A profissão mais recorrente (moda estatística) é a de docente, bolseiro ou investigador.
Contámos 67 profissões diferentes que não iremos discriminar aqui para não tornar isto enfadonho, mas que incluem os mais diversos sectores; fraca representação operária e agrícola, mas ainda assim presente; grande representação do mundo audiovisual, cineastas, fotógrafos (não de passagem); bastantes arquitectos e paisagistas; 2 jornalistas.
Apenas 1 médico e 1 advogado, o que me parece muito típico da ausência de envolvimento destas categorias profissionais na vida política portuguesa, ao longo de quase um século – é praticamente impossível encontrar um advogado na vida cidadã e democrática, a não ser que lhe ofereçam um cargo político.
27% dos inquiridos estudam (não distinguimos aqui entre estudantes trabalhadores ou não). Como se vê, nem pouco mais ou menos a assembleia do Rossio se parece com uma RGA (reunião geral de alunos).


Situação no mercado de trabalho:
desempregados: 18%
precários: 33%
reformados: 1%
estudantes:  27%
trabalhadores-estudantes: 7%

Propriedade e finanças:

Convém lembrar que o facto de o preenchimento do inquérito não ter sido assistido introduz algumas dúvidas de que falarei adiante.


estudantes precários desempregados
cartão de crédito 33% 27% 29%
empréstimo bancário 13% 30% 16%
carro próprio 13% 25% 23%
casa própria 26% 39% 16%

Considerações pessoais

[versão revista em 23-06-2011]

Género:
A paridade entre homens e mulheres é perfeita. Mas... não se entusiasmem – esta realidade pertence apenas à assembleia popular do Rossio, não pode ser linearmente extrapolada para outros ambientes socioculturais de Portugal.
Tenho de reconhecer que coloquei mal a questão, do ponto de vista das ideologias e moralidades actuais – perguntei pelo sexo e não pelo género. Entretanto convém referir que classifiquei como género indefinido uma resposta deixada em branco na secção «sexo»; outra, assinalada com um «T» na mesma secção, interpretei-a como «transexual».

Relações laborais:
Muitas pessoas deram respostas múltiplas, apresentando-se como desempregadas e precárias. Inseri estas respostas na categoria «desempregado». Adopto portanto o princípio de que um precário pertence à categoria dos «desempregados efectivos». Esta posição é contrária à do último Census, que encaixou os precários na categoria das pessoas com emprego (o que me parece indefensável, técnica e politicamente).

Importa notar o seguinte: desempregados e precários juntos totalizam 51% dos inquiridos.
Considero este dado significativo; mas não esqueço que estas pessoas são as que naturalmente têm mais disponibilidade e motivação para comparecerem às assembleias populares.

Existe actualmente um regresso a certos conceitos medievais – o precário, dentro do regime político e económico em que vivemos, encontra-se em posição semelhante à do jornaleiro que todos os dias às 7 da manhã tinha de ir bater à porta do latifundiário para saber se nesse dia tinha trabalho ou não.
Também ficamos sem saber se alguns professores precários (anuais) se terão declarado como empregados ou como precários.
Reconheço que não introduzi no inquérito uma opção importante: a dos que, por vontade própria (e não imposta pelo mercado de trabalho) trabalham intermitentemente por conta própria, a recibos – situação que conheço muito bem por ser a minha há longos anos.

Várias pessoas, na secção «profissão», declararam-se «estudante»; a seguir, verificando que existia uma secção «estudante», riscaram (ou não) a resposta anterior e assinalaram a situação de estudante. Temos aqui uma interessante confusão entre os conceitos de profissão e de estudo; por outras palavras: entre a noção de vínculo laboral no mercado de trabalho e a de aprendizagem da disciplina de trabalho. Para mim, a escola moderna é sobretudo um local de aprendizagem da disciplina do trabalho e do mercado (e só acessoriamente um local de aquisição de conhecimento).
Conheço casos de pessoas que fizeram da situação de estudante uma arte permanente de viver, trabalhar e sustentar-se (beneficiando de bolsas durante décadas a fio), mas são casos raros.

Habitação:
Na secção «casa própria» constatei problemas de entendimento. A expressão «casa própria» opunha-se no passado a «casa arrendada» – estabelecendo a distinção de laços específicos de propriedade e mercado. Creio que muitos jovens confundiram a expressão, pensando que lhes estávamos a perguntar se viviam em casa dos pais ou se eram independentes (dos pais). Admito que tenha havido aqui erro meu – deveria ter escolhido uma expressão menos dúbia.
Resultado: temos de duvidar dum dos dados que mais saltam à vista no quadro estatístico: a elevada percentagem de estudantes com «casa própria».

Fica também clara a falta que faz aqui o esclarecimento sobre os níveis de rendimento e propriedade da família – mas neste aspecto particular foi opção minha não importunar os inquiridos com perguntas desse tipo.

Além das fraquezas e erros evidentes do próprio inquérito, o conjunto de equívocos nas secções de emprego, profissão e propriedade também deixa em aberto a hipótese de um défice de consciência política e pessoal.

Propriedade e finanças:
As perguntas sobre as relações com as instituições financeiras tinham um fito: verificar o grau de enleamento das pessoas com as instituições financeiras.
Este fito nasceu da minha perplexidade, ao longo dos debates, perante a ilusão demonstrada por muitas pessoas segundo as quais a Troika (ou pelo menos o FMI) é boazinha e vem ajudar a gente.
O meu objectivo seria o de indagar a consciência da correlação entre a manietação pessoal imposta pelas instituições financeiras, e a manietação do país imposta pelas mesmas.
A expressão «ditadura financeira», formulada no projecto de manifesto, expressa esta manietação – mas note-se que esta parte do manifesto suscitou alguns pruridos numa parte da assembleia.
Tenho de reconhecer que não criei instrumentos de inquirição suficientes para esclarecer a dúvida.

Salta à vista o seguinte:
  • desempregados efectivos (desempregados+precários) com cartão de crédito: 56%
  • desempregados efectivos com dívidas aos bancos: 46%
Se considerarmos que os bancos não cedem empréstimos sem garantias (hipoteca de outras propriedades, emprego/salário estável, etc.), temos a clara medida da decadência do mercado de trabalho nos últimos anos – muitos dos trabalhadores que ainda há poucos anos podiam dar garantias aos bancos foram empurrados para situações de grave instabilidade financeira. Temos aqui uma prova clara de como a política neoliberal exigida pelas empresas financeiras (nomeadamente na hiperliberalização do mercado de trabalho) concorre para a bancarrota das mesmas.

Muita coisa fica por inquirir. Por exemplo, não se pode aqui detectar a correlação entre o tipo de propostas apresentadas à assembleia e a origem social e grupo etário dos proponentes – coisa que a mim, particularmente, me interessava inquirir objectivamente, pois nem sempre o expectável coincide na realidade, como se viu.

Muitas correlações gostaria de indagar. Mas eu não sou investigador nem bolseiro, não domino a ciência estatística nem tenho uma equipa de precários a trabalhar nos dados estatísticos... portanto quem quiser ofereça-se.

Finalmente, o interesse suscitado por este inquérito levanta outra pergunta: alguém se terá dado ao trabalho de fazer inquérito semelhante nos outros países (Espanha, Grécia, etc.) onde a população ocupa as ruas em pé de guerra?

04/06/11

Balanço provisório da assembleia popular do Rossio de Lisboa

[Nota: este artigo começou por ser publicado em 4/6/2011, página autónoma deste blogue, e em 18/11/2012 foi transformado em artigo normal, por não se justificar metodologicamente o seu destaque em página especial]
[artigo em construção progressiva]

Origens

A assembleia popular do Rossio e a «acampada» (conceitos que mantenho separados por razões que se esclarecerão adiante) parece ter origem num movimento popular nascido na Espanha sob o lema «democracia real já!».
Este lema em si mesmo é esclarecedor – releva da insatisfação quanto ao estado actual da democracia representativa. 
A tradução portuguesa é desastrada: «democracia verdadeira» remete mais para o juízo de valor do que para a acção directa. Adiante.

As assembleias populares do Rossio de Lisboa tiveram início no dia 19 de Maio de 2011. Não estive presente, mas presumo que a iniciativa de um grupo de militantes espanhóis vindos a Lisboa tenha sido determinante. Consta que os portugueses fizeram parte da logística e da mesa da assembleia desde o princípio.
Uma análise atenta de diversos blogs espanhóis revela a existência de um movimento constituído por militantes espanhóis que percorre o mundo inteiro, tentando fundar «acampadas» por toda a parte.

Composição de classe, etária, tribal, etc.

Não tivemos ainda ocasião de concluir um inquérito de campo. Entretanto, a olho nu, a esmagadora maioria das pessoas que reunidas no Rossio de Lisboa parece provir do meio académico: estudantes, professores, investigadores, intelectuais de gabinete; alguns, poucos, artistas; um ou outro emigrante africano; um ou outro bêbado ou sem-abrigo ou lumpen que, ao passar por ali, aproveita o calor humano para regressar à humanidade.

A mediana etária deve andar entre os 20 e os 28 anos. 

A quase totalidade dos comentadores exteriores à acampada/assembleia (jornais, TV, blogs) estigmatizou a população ali reunida como uma cambada de «freaks» e «hippies». Este disparate merece tanto crédito como o julgamento aflito da minha avó ao ver aproximar-se um sujeito com calças de ganga coçadas e dreadlocks: «vamos atravessar para o outro lado da rua, que vem aí um gandulo». Esta acusação, baseada numa imagem estática das modas, é sintoma claro de conservadorismo – totalmente inadequada à situação no Rossio.

A presença regular de meia dúzia de militantes activos do Bloco de Esquerda é evidente, embora não seja nada evidente que estejam determinados a dominar a assembleia. 
Julgo que existe um observador do PC (por iniciativa própria). Não consegui ainda apurar se o partido proibiu os militantes de comparecerem, como sucede muitas vezes neste tipo de situações
Em suma, não encontro provas concludentes, até à data, de que os militantes partidários sejam maioritários ou sequer dominantes. No entanto a questão da presença partidária tem gerado polémica, como se houvesse ali um batalhão agressivo de militantes partidários infiltrados. Disto falaremos noutra secção.

Os espanhóis constituem um grupo especial – declaram-se antipartidários, mas chegam aqui coesos, com um programa de acção determinado, como se obedecessem às directivas de um comité central. Tanto quanto pude perceber dos relatórios abertamente expostos em blogs – que publicam como meio de comunicar entre si e elucidar os seus camaradas doutras partes do mundo –, organizam-se em missões de cerca de 10 dias em cada país [ver, p.ex., ElBurdelDelDelirio]. Nas fotos e vídeos das assembleias populares de todo o mundo podemos ver cartazes escritos em espanhol e ouvir gritos em espanhol, numa atitude chauvinista que lhes é característica.
Negam ter uma agenda política. Queixam-se que a assembleia de Lisboa desvirtua o «movimento». Acusam os oponentes de pertencerem a «partidos infiltrados»; propõem a sua expulsão.
Baralham amiúde conceitos básicos [por ignorância ou por má-fé?]; semearam na assembleia uma enorme confusão entre a noção de partido e a de movimento social. Encontro fortes indícios de que a assembleia tenha afugentado a aderência de movimentos sociais, ao alinhar nestas manifestações hostis a tudo quanto seja movimento cívico preexistente à própria assembleia.

Alguns movimentos sociais ofereceram espontaneamente à assembleia apoio político tácito, apoio material e logístico, que a partir de 29 de Maio começou a ser retirado. [Não tenho meio de saber objectivamente se esta retirada se deve às atitudes hostis da assembleia ou não.]

Certos grupos organizados portugueses não escondem a sua presença: um grupo de solidariedade com os povos árabes oprimidos [não os conheço, mas deduzo que sejam o equivalente actual do velho CIDAC]; um grupo de discussão política organizado em torno da revista Rubra; alguns militantes do Bloco de Esquerda, não muito ostensivos; nos últimos dias (a partir de 30 de Maio) começou a sentir-se a presença de membros da ATTAC Portugal.

Orgânica

Como já referi, distingo entre «acampada» e «assembleia popular».

Acampada
A «acampada» é um conceito e uma palavra espanhola importada. Tem sido apontada pela imprensa maledicente e curta de vistas como uma «festividadefreak»; mas o espírito das «acampadas» é muito claramente o de afirmar uma posição política: as ruas são do povo, o povo propõe-se ocupá-las – é uma acção política, semelhante aos acontecimentos recentes do Magrebe. Que seja além disso uma festa ou não, isso apenas depende do carácter da cultura local. [O povo português é mais sisudo e menos festivo que o espanhol ou o berlinense, por exemplo.]

Apesar da falta de meios materiais e financeiros, a «acampada» parece ter-se organizado logisticamente de forma eficaz. Pouco tempo depois da sua implantação já possuía uma cozinha, turnos de vigilância, um balcão de informações, etc. [Desconheço a forma como decorreram estes trabalhos, porque não fiz parte.]

Ao fim de 12 dias de esforço intenso para manter a «acampada» viva e organizada, os seus membros exaustos (sempre os mesmos, 16-30) propuseram o fim da «acampada». Esta proposta ocupou a assembleia em discussões mais ou menos psicanalíticas durante cerca de 3 horas e por fim concluiu o óbvio: não havendo pessoas em número suficiente para garantir a logística e a segurança, a «acampada» estava encerrada independentemente do voluntarismo da assembleia.

Assembleia

A assembleia assenta no conceito de debate público totalmente aberto, de apelo à participação popular no debate e na tomada de decisão políticas – afirma a luta pela democracia directa, por novas formas de soberania popular.

A assembleia adoptou rapidamente um conjunto de procedimentos: rotação diária da mesa e dos moderadores; abertura diária às 7 horas da tarde; moderação do debate com base no bom-senso; aceitação de pequenos abusos do uso da palavra, em prejuízo duma atitude controladora/manipuladora da mesa; etc. Ver memorando interno de funcionamento no site do movimento.

Este procedimento (bem como alguns aspectos do regime político que adiante abordaremos) funciona à maravilha; mas alguns elementos, na sua ânsia de tudo regularem e mostrarem que tudo ali é aberto e rediscutível a todo o instante, tendem a actuar [involuntariamente, creio] como boicotadores dos trabalhos da assembleia, repondo sistematicamente à discussão o que já foi consensualmente adquirido como óptimo. 

A assembleia tem sido sempre um lugar de palavra livre, sem outras limitações além do respeito mútuo.
Apesar de se procurar aprovar um manifesto, é quase impossível produzir seja o que for numa assembleia com ordens de trabalhos um pouco disfuncionais do ponto de vista da produção, generosamente aberta à introdução diária de todos os temas, todas as propostas e todos os transeuntes dispostos a tomar a palavra.

O contraponto à improdutividade desta salutar abertura são os grupos de trabalho temático. 
No entanto a constituição destes grupos tem sido lenta, a sua produção parca – as pessoas parecem ter uma apetência preferencial pelo calor da massa da assembleia, ao ponto de por vezes esta fazer lembrar a terapia de grupo, e como as assembleias se arrastam noite fora em largas discussões, provavelmente não sobra muito tempo e energia para o trabalho concreto. Destacam-se dois grupos com debate teórico focado e acções de campo: o da solidariedade com as revoluções árabes e o da dívida pública.

A assembleia aprovou um manifesto provisório que continua a ser discutido e melhorado. Promoveu uma manifestação, dia 28-05-2011; palavras de ordem principais: «Democracia verdadeira já!», «Quem deve dinheiro aqui é o banqueiro», «Portugal, Irlanda, Islândia, Grécia, a mesma luta», etc. [faltam-me aqui alguns dados... ou memória...]

Objectivos políticos

Democracia verdadeira, já!

Como já referi, esta palavra de ordem (mal vertida para português) foi importada do movimento espanhol, contém uma crítica clara aos pecados da democracia representativa e parlamentar, aponta um caminho político ainda a ser construído.

Não restam dúvidas de que esta bandeira reuniu à partida o consenso de toda a gente e verteu-se num salutar espírito de tolerância. O único problema reside na concretização prática dos objectivos subsequentes, como se verá de seguida.

Regime político do movimento

É aqui que nasce o busílis, para grande desespero dos camaradas espanhóis. É patente (nos referidos blogs) que estes, tipicamente desconhecedores das especificidades de outros povos e culturas, jamais sonharam deparar-se com um povo que «não sabe governar-se nem se deixa governar», como foi já escrito há mais de mil anos.

Os espanhóis chegaram aqui com uma vontade determinada, organizada, apontada, quase germânica por assim dizer, e vêem-se confrontados com uma população que faz da desorganização um modo de viver e de inventar.

Ideário adoptado pela assembleia:
  1. Abertura total – Toda a gente pode e deve participar da discussão e da tomada de decisões. Este ponto corresponde a um sentimento prévio generalizado, por isso obteve fácil unanimidade.
  2. Regime político propriamente dito – decisões por maioria qualificada de dois terços (contando com as abstenções); rotação dos moderadores e das mesas das assembleias e grupos; rotação de responsáveis; propostas que não obtêm uma maioria qualificada ou que obtêm grande peso de abstenções são abandonadas ou retomadas no dia seguinte ou baixam aos grupos de trabalho, conforme a razão da abstenção resida na falta de esclarecimento dos membros da assembleia ou na sua indiferença quanto ao tema; liberdade total de constituição de grupos de trabalho; liberdade individual ou de grupo para apresentar projectos e propostas. Quando os grupos de trabalho aprontam um projecto, tendem a procurar a sua aprovação na assembleia; mas os debates têm deixado claro que, independentemente de subscrever ou não, legitimar ou não, a assembleia não pretende coarctar ou reprimir os grupos e indivíduos.
Estes métodos encontram-se em confronto aceso com as propostas dos militantes espanhóis. O desespero destes é bem patente quer nas conversas que têm entre si, quer nos textos dos blogs.

Segundo a proposta espanhola, todas as decisões devem ser tomadas por consenso. [2]

Olhando para a aplicação desta proposta em Espanha, vemos que ela se aproxima do conceito de soviete (organizando-se em camadas sucessivas: as assembleias locais reúnem toda a gente, sem olhar a corporações; a assembleia local envia para a regional, esta para a distrital, esta para a nacional, etc.), temperado pelo método do consenso; apresenta um carácter organizativo mais próximo das experiências sul-americanas de poder popular do que do sovietismo russo.

E aqui precisamente se abre a primeira grande fractura da assembleia, que praticamente a paralisou a partir de 29 de Maio: a maioria dos portugueses não quer admitir o consenso como regime político (apesar de muitos terem sido conquistados pela ideia); alguns intervenientes não hesitaram em referir a conotação totalitária (ou mesmo salazarista) da noção de consenso como pragma organizativo; ainda ninguém teve a coragem de provocar ofensa involuntária, comparando a tentativa de imposição do consenso normativo à constituição do partido de União Nacional no Estado Novo, mas se a discussão continuar, lá chegarão.

Sendo certo que o sentido verdadeiro de consenso é o de «sentimento comum», a maioria dos portugueses presentes na assembleia não consegue perceber que outro sentido pretendem os militantes espanhóis referir. [Gostaria de esclarecer o leitor acerca do sentido proposto pelo grupo espanhol, mas eu próprio não o entendo.] [3]

Debates da assembleia

Regime político

Como já referi, confrontam-se duas linhas bem distintas quanto à forma como se devem montar novas formas de democracia participativa. Dum lado a tese espanhola (obrigatoriedade do consenso); doutro lado uma proposta (não sei quem a apresentou e pôs em marcha) centrada na maioria qualificada incluindo as abstenções. Nenhum dos campos dá mostras de querer ceder – como é natural, visto que se trata de uma questão política de fundo. [4]

Havia uma terceira posição a favor da decisão por maioria simples, mas que cedeu gentilmente à vontade maioritária.

Ninguém se arriscou ainda a propor a condenação terminante e solene da democracia representativa e parlamentar. Mas parece-me claro que a própria existência da assembleia o grita. O manifesto, na sua formulação provisória actual, diz: «Pretendemos assumir o controlo das nossas vidas e intervir efectivamente em todos os processos da vida política, social e económica. Estamos a fazê-lo, hoje, nas assembleias populares reunidas. Apelamos a todas as pessoas que se juntem, nas ruas, nas praças, em cada esquina, sob a sombra de cada estátua, para que, unidas e unidos, possamos mudar de vez as regras viciadas deste jogo.» É portanto uma declaração mais ou menos clara de como se deve (e de como se não deve) construir a democracia.

No entanto a maior parte da versão actual do manifesto dedica-se a outra questão que trataremos de seguida.

O FMI e a dívida

A questão do FMI está a ser um pouco forçada dentro da assembleia por vários grupos de activistas.

Dentro da assembleia há quem tenha claro que existe uma ligação directa de causa e efeito entre a dívida externa e a falta de democracia real.
Há quem tenha claro que vivemos um regime de ditadura financeira.
Há quem pense que a ideia de «ditadura financeira» é um disparate sem pés nem cabeça, inventado pelos activistas de esquerda para manipularem a assembleia. [5]

O grupo espanhol fica possesso sempre que o FMI é mencionado, por achar que a questão nada tem a ver com o problema da «nova» democracia.

Há quem diga que... pois, o FMI, está muito bem... mas não seria melhor calar o assunto para captar as massas? Esta versão tipo português-suave, venham as massas para nos aquecer que está muito frio, com os seus silêncios «socráticos», é documentada em vários comentários da página electrónica do 1º manifesto.

Solidariedade internacional

O grau de consciência política quanto à importância da solidariedade internacional é flutuante. A relação de forças entre opositores e apoiantes da solidariedade internacional varia aleatoriamente de dia para dia. Há sempre vozes a dizerem que a questão pode fracturar a assembleia e que de resto não é assim tão importante. Quanto aos espanhóis, opõem-se acerrimamente nos blogs e na assembleia.

Outras questões

Várias questões de actualidade política têm sido levantadas, mas sem gerarem grande debate político ou propostas de manifesto:

Presença regular de um cego activista da causa dos deficientes, que tem intervindo a propósito da situação dos deficientes em Portugal.

A questão da Natureza, da «permacultura», do monopólio agrário moderno (questão das sementes e das novas normas restritivas da UE) tem sido levantada de quando em quando.

A questão genérica das intervenções militares foi levantada pelo Grupo da Dívida, mas não suscitou grande interesse – menos ainda que a questão dos submarinos (que no fundo é a mesma).

Grupos de trabalho

Grupos iniciais: Manifesto, Acção Directa, Coordenação Interna, Manifestação, Logística, Grupo de Debate e Comunicação.
Grupos mais recentes: Permacultura, Economia, Meio Ambiente, Recolha de Informação sobre países onde actuou o FMI, Soberania Alimentar, Urbanismo e Habitação, Género. 
[Parece haver mais grupos que me escapam]


Grupo da Dívida

Este grupo nasce de um grupo de discussão política preexistente. Por isso mesmo arranca com um capital prévio de discussão sobre o tema bastante considerável – embora a quantidade de documentação e estudo patentes por esse grupo não seja muito impressionante. O núcleo promotor abriu-se bem à inclusão de novos elementos; embora tenha reunido muito poucas vezes para discussão política (2 vezes, salvo erro), incorporou bem todas as contribuições e diferendos – o núcleo inicial adoptou uma atitude conciliadora e abdicou de bastantes conclusões que já trazia cimentadas.
O grupo reportou regularmente à assembleia, de forma mais ou menos organizada.
Organizou em 24 horas uma manifestação, acção e arruada junto do Banco de Portugal. Tema: «Paguem o que nos devem», expondo publicamente uma série de itens da dívida e das contas de Estado que podem ser considerados parte ilegítima. Esta acção teve lugar dia 1 de Junho, participando cerca de 40 pessoas.
Não existe consenso ou acordo dentro do grupo acerca de algumas questões essenciais: 
Uma parte defende o «não pagamos» tout court.
Outras partes defendem (com algumas variantes) um conjunto de medidas e acções que incluem: auditoria integral independente e cidadã; suspensão do reembolso da dívida até se alcançar uma conclusão baseada na divulgação pública da auditoria; seguida de possível anulação de uma parte maioritária da dívida e renegociação dos juros e condições de pagamento da parte restante.
Tanto dentro do grupo como na generalidade da assembleia nota-se falta de conhecimento acerca de tudo o que diz respeito à dívida: história da luta dos países do Terceiro Mundo (desconhecida ou eivada de mitos); instituições internacionais envolvidas, tanto a nível da sociedade das nações como a nível dos movimentos sociais; legislação nacional e internacional; produção teórica recente; natureza de instituições como o Banco Mundial ou o FMI (que muitas pessoas na assembleia acreditam ser uma entidade benévola capaz de ajudar os povos de todo o mundo).

Grupo das revoluções árabes

Não tenho conhecimento do seu funcionamento. Promoveu uma manifestação de solidariedade que não testemunhei. Propôs uma declaração de solidariedade com o povo da Palestina que viria a ser aprovada, mas gerando grande indignação do lado espanhol e de alguns portugueses.

Grupo de apoio jurídico

Grupo de acção directa

Organizou a manifestação de 28 de Maio de 2011. E.... [aguardo informação]

Grupo do Manifesto

Grupo encarregado de preparar a redacção e discussão do manifesto.

Grupo encarregado de estudar formas de replicar o movimento

e de o levar a outras cidades portuguesas.

Grupo dos mandatos políticos

Com o objectivo de discutir a revogabilidade dos mandatos dos políticos e o fim da imunidade política.

Grupo de cinema 

que todos os dias projecta um filme escolhido pelos participantes [não sei se continua a funcionar depois de desfeita a acampada]




Anexos




1º Manifesto


[documento aqui o estado actual do manifesto, uma vez que esta versão pode desaparecer do arquivo onde está]

Este Manifesto encontra-se em processo de elaboração e aberto a propostas. Não é um documento definitivo.
1º Manifesto do Rossio
Os manifestantes, reunidos na Praça do Rossio, conscientes de que esta é uma acção em marcha e de resistência, acordaram declarar o seguinte:
Nós, cidadãos e cidadãs, mulheres e homens, trabalhadores, trabalhadoras, migrantes, estudantes, pessoas desempregadas, reformadas, unidas pela indignação perante a situação política e social sufocante que nos recusamos a aceitar como inevitável, ocupámos as nossas ruas. Juntamo-nos assim àqueles que pelo mundo fora lutam hoje pelos seus direitos frente à opressão constante do sistema económico-financeiro vigente. Não somos contra a política mas não representamos nenhum partido ou sindicato.
De Reiquiavique ao Cairo, de Wisconsin a Madrid, uma onda popular varre o mundo. Sobre ela, o silêncio e a desinformação da comunicação social, que não questiona as injustiças permanentes em todos os países, mas apenas proclama serem inevitáveis a austeridade, o fim dos direitos, o funeral da democracia.
A democracia real não existirá enquanto o mundo for gerido por uma ditadura financeira. O resgate assinado nas nossas costas com o FMI e UE sequestrou a democracia e as nossas vidas. Nos países em que intervém por todo o mundo, o FMI leva a quedas brutais da esperança média de vida. O FMI mata! Só podemos rejeitá-lo. Rejeitamos que nos cortem salários, pensões e apoios, enquanto os culpados desta crise são poupados e recapitalizados. Porque é que temos de escolher viver entre desemprego e precariedade? Porque é que nos querem tirar os serviços públicos, roubando-nos, através de privatizações, aquilo que pagámos a vida toda? Respondemos que não. Defendemos a retirada do plano da troika. A exemplo de outros países pelo mundo fora, como a Islândia, não aceitaremos hipotecar o presente e o futuro por uma dívida que não é nossa.
Recusamos aceitar o roubo de horizontes para o nosso futuro. Pretendemos assumir o controlo das nossas vidas e intervir efectivamente em todos os processos da vida política, social e económica. Estamos a fazê-lo, hoje, nas assembleias populares reunidas. Apelamos a todas as pessoas que se juntem, nas ruas, nas praças, em cada esquina, sob a sombra de cada estátua, para que, unidas e unidos, possamos mudar de vez as regras viciadas deste jogo.
Isto é só o início. As ruas são nossas.
Lisboa,  22 de Maio 2011


Conclusões e notas pessoais

[1] Que a maioria das pessoas envolvidas num movimento popular (revolucionário?) na Europa seja de origem estudantil, académica, intelectual, pequeno-burguesa (para usar o facilitismo de um termo bacoco face à evolução da teia social), não espanta. Desde as tertúlias revolucionárias do princípio do século XX até ao PREC dos anos 70 em Portugal, passando pelo Maio de 68, seria tolo procurarmos elites e vanguardas revolucionárias constituídas maioritariamente por operários, empregados de balcão ou funcionários bancários (se calhar eu deveria abrir aqui uma excepção para alguns movimentos anarquistas).

A massa de militantes do Rossio apresenta as mesmas qualidades das vanguardas de antanho; e, dada a falta de evolução no pensamento e na consciência política nos últimos 30 anos, parece padecer das mesmas limitações de sempre – visão limitada de classe, nostalgia virtual de coisas que desconhecem, que não viveram, que não conseguem entender por mais que se esforcem (fome, miséria, falta de abrigo, acção revolucionária concreta, etc.), mas que veneram platonicamente e agitam totemicamente.

Sendo bastante jovens na sua maioria, padecem também de défice teorético e duma inexperiência inocente – qualquer pequena tarefa de organização colectiva se transforma num berbicacho para a assembleia, que se perde facilmente em 2 horas de discussão sobre coisas que por fim são resolvidas em 90 segundos.
Em compensação possuem uma vontade militante e uma energia difíceis de emular.

[2] Creio que a teimosia da proposta espanhola sobre o consenso (com a consequente regra de unanimidade) tem um carácter e uma origem emocionais; reflecte o cansaço e a descrença na democracia representativa e parlamentar, nos partidos do arco do poder, nas práticas de manipulação de massas (os espanhóis confundem partidos com sindicatos e movimentos sociais, como já referi), nas práticas instituídas (até socialmente, mas isso eles não vêem) de controle, desonestidade, corrupção, oportunismo, desvio dos interesses colectivos, etc.

Na sua inocência política, o movimento espanhol reinventou, por assim dizer, o germe do poder popular – mas não tendo disso a mínima consciência. A dita inocência é patente no facto de nunca, em intervenções de viva voz ou em textos escritos, eu ter encontrado a invocação dos antecedentes e referências históricas deste processo.

Esta inocência  faz-nos lembrar de forma arrepiante as confusões e o uso abusivo, em tempos idos, de palavras como «socialismo», e depois «nacional-socialismo», e por aí fora... Como se sabe, em período de crise e sofrimento (geralmente coincidente com as grandes crises económicas) é fácil arrastar grandes massas de gente para situações de autêntica barbárie. Em suma, esta obsessão do grupo espanhol preocupa-me.

[3] A propósito da dissensão à volta dos consensos, devo dizer que tenho visto a assembleia tropeçar e entrar em discórdias frequentes por mau domínio do português, por desconhecimento do significado de termos esclarecidos há décadas pelo pensamento científico, e pela ignorância de documentação sobre algumas questões fundamentais. A título de exemplo, ninguém parece ter uma ideia razoável do que seja dívida odiosa, dívida ilegítima, comissão de auditoria integral cidadã, FMI, Banco Mundial, as instituições jurídicas internacionais de que estes fazem parte, etc.; e até os conceitos de moção, proposta, ponto de ordem, maiorias simples, absoluta e qualificada, parecem envoltos numa bruma impenetrável.


[4] A tese da maioria qualificada, vencedora até à data, arrasta consigo uma série de considerações e procedimentos dos quais tirei grande proveito pessoal. É possível que uma democracia qualitativamente melhorada tenha de se colocar a questão do voto por maioria qualificada (onde ele seja praticável, evidentemente). A quantificação desta qualidade será sempre um problema subjectivo e consoante à natureza de cada assembleia. Mas não tenho dúvidas de que foi uma aquisição da assembleia suficientemente importante para a colocar na história dos movimentos sociais e de massas.

[5] É curioso que muitos dos defensores deste ponto de vista (o de que a ideia de «ditadura financeira» é um disparate) têm todo o ar de terem comprado casa e carro e estarem eles próprios manietados pelos bancos.

Também é curioso verificar o desconhecimento da assembleia quanto ao facto de, no preciso momento em que o debate ocorre na assembleia, o Governo ter assinado um protocolo com as instituições financeiras, no sentido de estas, à margem da autoridade curricular do Ministério da Economia, montarem aulas sobre operações e conceitos financeiros, logo a partir da escolaridade primária. 
Faz lembrar as aulas de religião e moral antes do 25 de Abril, não faz? E a falta de separação entre o Estado e a Igreja, não é?