20/01/12

A imperfeição em todo o seu esplendor

Aqui há dias meteu-se-me na cabeça escrever-vos acerca da característica mais marcante da nossa época: a capacidade de produzir e tolerar múltiplas mundivisões, perspectivas e modelos. Não era minha intenção falar-vos desses assuntos, que são enfadonhos, mas sim da sua consequência prática: se esperavam poder alcançar um dia a perfeição, tirem daí a ideia - a perfeição assenta no modelo único; portanto, numa sociedade caracterizada pela multiplicidade de modelos, a ideia de perfeição torna-se uma coisa sem sentido.

Este projecto sofreu alguns impedimentos inesperados.

Em primeiro lugar, uma mão omnipresente e imaterial (também chamada fado) avariou todas as minhas máquinas de escrever; como há muitos anos eu desaprendi de escrever à mão, e como na nossa era a escrita está intimamente ligada ao pensamento, fiquei impossibilitado de escrever, logo, de pensar.

Em segundo lugar, a tal mão omnipresente e imaterial fez-me tropeçar numa série de acontecimentos que me revelaram uma coisa inesperada: a multiplicidade de mundivisões, perspectivas e modelos da nossa época afinal é apenas um ideal.
É um ideal no mesmo sentido em que, na época medieval, o cavalheirismo, louvor e serviço da dama foram um ideal nunca cumprido. Na prática, demonstrada através das provas históricas da vida quotidiana, as mulheres eram tratadas com um desprezo, uma brutalidade e uma desumanidade tais, que se pode concluir que ideal e realidade constituíam uma antítese perfeita.
O mesmo se poderia dizer do ideal burguês de amor romântico, e por aí fora; em cada época encontramos a expressão peremptória de ideais que, por antítese, nos apontam liminarmente a realidade - digam-me quais eram os ideais da época, dir-vos-ei qual seria a realidade dessa época, por antítese.

Vivemos numa época de ideais constante e obsessivamente propagandeados: a democracia, a pluralidade de atitudes, de modelos, de pontos de vista e opções, etc. Não é difícil, portanto, adivinhar qual a realidade em que vivemos.

Afinal a perfeição, essa coisa baseada num modelo único da realidade, ainda pode existir - o que me deixa bastante desconfortável.

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