07/06/12

A esquerda do sapato roto

Apoiar ou não o Syriza na etapa actual da luta dos povos europeus contra a dívida e a austeridade é uma decisão que pode traçar o destino de toda a Europa por muitas décadas. É uma decisão que, conforme o sentido, pode levar a um enfrentamento decisivo de classe ou, inversamente, a uma derrota tão duradoura como foi a da guerra civil de Espanha.
A confiança abstracta e de longo prazo que se possa ter ou não no Syriza não é para aqui chamada. Chamá-la-ão à baila aqueles que, acobardando-se perante o enfrentamento e o risco, necessitem de desculpas.
Vem aqui a propósito a história rocambolesca do meu vizinho.

O meu vizinho é desconfiado por natureza, booleano no pensamento e mesquinho de carácter. Necessitando ele de duas coisas distintas ao mesmo tempo – arranjar os sapatos rotos e encontrar forma de guardar as suas economias algures – e chegando à conclusão de que não confia no sapateiro do bairro quanto baste para lhe depositar nas mãos as suas economias, numa cabriola elíptica concluiu que também não deveria entregar-lhe os sapatos para conserto.
Tenho-o visto andar por aí de sapato roto. Tudo leva a crer que muito em breve os buracos das solas lhe deixarão os pés em sangue, reduzindo-o à imobilidade definitiva. Acabará certamente por morrer de inanição e aborrecimento, de forma lenta e triste de se ver.

A atitude de variadíssimos sectores da esquerda europeia em relação ao Syriza na conjuntura actual assemelha-se bastante à triste história do sapato roto. Prevê-se, ao menos metaforicamente, a sua morte iminente e entediada.
Sendo certo que o Syriza é de momento o porta-estandarte dos anseios da maioria dos gregos (suspensão da dívida, revogação das medidas de austeridade, das leis eleitorais iníquas, da inimputabilidade dos cargos políticos; refundação duma Europa democrática, instauração duma justiça fiscal europeia, etc.), razão pela qual segundo as últimas sondagens colhe a maioria das intenções de voto; sendo certo que não existe de momento nenhuma outra força política grega que coincida em todos esses anseios; sendo certo que a história do Syriza é única como experiência de unidade na acção política, reunindo mais de uma dúzia de organizações da fragmentária esquerda grega – sendo certo e factual tudo isto, uma parte da esquerda europeia recusa o apoio ao Syriza porque: 1) sendo uma coligação instável de variadíssimas tendências, nada nos garante que mantenha amanhã as mesmas posições de hoje; 2) nada nos garante que o Syriza não seja «comprável» num futuro próximo, passando então a fazer o jogo dos actuais poderes dominantes.

Eu, pelo contrário, embora certamente não confie no sapateiro para depositar as economias (que aliás, honestamente e aqui para nós que ninguém nos ouve, nem sequer existem, tratando-se portanto de uma questão descaradamente falsa), não hesito em entregar-lhe os sapatos. E com isso garanto a minha caminhada.

A confiança não é uma condição booleana; não se reduz à mesquinha alternativa entre zero e um, verdade ou falsidade. Muito pelo contrário, é um processo dialéctico. Acumula-se por graus. E o somatório quantitativo de sucessivos graus de confiança pode (ou não) produzir um dia um salto qualitativo. Adivinhar o futuro é tolice sem valia, mas as leis da dialéctica garantem uma coisa: o salto qualitativo só não acontecerá de certeza absoluta, se não assumirmos qualquer espécie de risco; se não estivermos dispostos a oferecer e acumular sucessivos graus de confiança. Esta oferta de pequenos e sucessivos graus de confiança deve ser avaliada passo a passo, caso a caso, e não com base num suposto título de garantia futura. De títulos de garantia estamos nós fartos e endividados até ao pescoço.
Quando um dia, finalmente, as contas da história forem feitas, veremos quem foram os cobardes (essa estirpe de colaboracionistas envergonhados) e os valentes (esses tais de que reza a história); quem assumiu riscos e quem ficou sentadinho no recato do sofá.

Entretanto, a história está razoavelmente recheada de momentos cruciais da luta de classes, momentos de tendência claramente revolucionária, em que a mesquinhez política levou muitas organizações a retraírem o seu apoio a quem lutava de armas na mão. Essa mesquinhez política não é coisa pouca – condenou à morte física e à derrota política milhares de revolucionários e resistentes em diversos momentos da história. E tudo isto porquê? Porque os ditos combatentes não apresentaram previamente título de garantia e não prometeram juros políticos a quem os apoiasse.

Quereremos uma nova derrota à espanhola? Uma revanche franquista? Com todos os povos europeus de costas voltadas para a luta do povo grego?
Estamos a viver um momento histórico de enfrentamento decisivo. E se calhar é isso que uma certa esquerda ainda não percebeu.

Talvez o Syriza não seja de inteira confiança – dou de barato; aliás: estou-me nas tintas. O que está em curso é uma guerra de vida ou morte – dos gregos, dos portugueses, dos espanhóis, de todas as populações europeias, contra o capital e os ditames da finança, contra o endividamento dos povos, a austeridade, a miséria e a barbárie. Estamos todos na mesma trincheira. E eu considerar-me-ia o maior tolo do mundo se, preocupado com saber se daqui a 5 horas o meu companheiro de trincheira irá ou não desmaiar de medo, se irá acobardar-se e desertar para o inimigo daqui a 2 dias, e ainda que qualquer das duas coisas seja muito provável, me pusesse a cismar e, traindo esse companheiro que neste preciso momento se bate ombro a ombro comigo, baixasse a guarda e deixasse assaltar a trincheira. Não há-de ser por cobardia minha que esta trincheira será vencida. Façam vocês como entenderem.

Uma organização de esquerda que não apoia um processo potencialmente revolucionário por não pertencer à mesma tendência, ao mesmo congresso internacional ou ao mesmo clube de futebol, ou por não poder obter garantias em proveito próprio, é tão de esquerda como o meu leitor é uma minhoca trapezista. Não passa de uma empresa de interesses privados que procura ter por capital a garantia das acções alheias, sem com isso gastar um tostão nem assumir qualquer risco. É um parasita perfeitamente equiparável ao capital financeiro.

Por fim, para completar a colecção, temos aqueles que dizem apoiar o Syriza, mas depois atacam as propostas de pôr fim ao endividamento e suspender a dívida, militando pela renegociação. Renegociação de quê? Que pretendem ao certo? Um bocadinho menos de dívida? Uma austeridade mais redondinha e menos bicuda? Uma exaustão dos recursos públicos pintada com cores mais alegres? Estarão eles honestamente convencidos de que podem renegociar o inferno? Ou andarão simplesmente a gozar-nos na cara?
Feitas as contas finais, estes «apoiantes» dúplices do Syriza e da renegociação acabarão por ser tão perigosos como os banqueiros. As suas doces canções, iludindo a inevitabilidade do enfrentamento contra a ditadura financeira, servem essencialmente para embalar e adormecer as populações europeias – e, sorrateiramente, para isolar e derrotar as propostas que o Syriza agora subscreve. «Apoiantes» destes são «amigos de Peniche». Passamos melhor sem eles.

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