25/08/12

A RTP e o fim do Estado de direito


Artigo 38.º da Constituição:
5. O Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão.

Artigo 288.º (Limites materiais da revisão):
As leis de revisão constitucional terão de respeitar:
f) A coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção;

Artigo 82.º (Sectores de propriedade dos meios de produção):
2. O sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas.
3. O sector privado é constituído pelos meios de produção cuja propriedade ou gestão pertence a pessoas singulares ou colectivas privadas, [...]

No reino da imbecilidade

Como em qualquer reino, encontramos aqui senhores e servos. Comecemos pelos senhores.

O governante autoritário e confuso

Por regra, um candidato a ditador inteligente constrói toda uma filosofia e teoria política, tão coerente quanto possível, tendente a justificar a sua tomada do poder. Consegue assim minorar custos e energias repressivas. De todas as forças repressivas, a mais poderosa é a que envolve a razão, único meio de convencer os outros a deixarem-se manietar de livre vontade. Uma brigada de choque pode vencer mil manifestantes; mas um bom arrazoado arrasta milhões.

Um candidato imbecil mas na posse plena dos meios necessários ao apoderamento, não conseguindo lançar mão de meios tão sofisticados como a razão e a persuasão, ou se limita a dizer «quem manda aqui sou eu» ou, quando a imbecilidade chega ao extremo de lhe subtrair a consciência das suas limitações, debita uma cornucópia de palavras que ele próprio não entende, que usa de forma distorcida e macaqueada, numa tentativa fetichista de convencer os outros da sua «razão». O perfeito imbecil é uma pessoa que sabe que era suposto fazer uso da retórica, mas nunca chega a conseguir dominar a própria língua materna.

A imbecilidade dos actuais governantes fica patente quando tentam justificar o saque dos bens públicos representados pela RTP e respectivo serviço público. Podiam privatizar simplesmente por acto de poder, sem mais; mas não, tentam justificar. Afirmam eles que um serviço público pode ser prestado por uma entidade privada e que tudo vai dar no mesmo ou melhor ainda. No meio desta confusão linguística sobre os conceitos de «público» e «privado», é de recear que venham um dia a exercer a confusão em sentido oposto, oferecendo os respectivos cônjuges para actos públicos de satisfação sexual, convictos com isso de que estão a reforçar o acto privado. Prevejo que a curto prazo os subutilizados estádios e salas de espectáculo por esse país fora venham a servir como templos onde esses cônjuges são usados para gozo e uso público, proclamadamente em benefício privado da outra parte conjugal. Até porque quanto mais dura a tirania, mais grandioso o circo. [Se o meu leitor ficou confuso com este «raciocínio», ainda bem – é sinal de que não é imbecil e portanto não encontra a lógica desta confusão entre público e privado.]

Curiosamente, acontece que os redactores da Constituição portuguesa foram tão previdentes que até acautelaram de antemão o assalto dos imbecis à coisa pública, dando-se ao trabalho de explicarem no artigo 82.º, qual dicionário, o sentido elementar de «público» e «privado». Essa tirada explicativa de conceitos básicos ao alcance de qualquer criança poderia parecer patética, não fora a realidade encarregar-se de provar que mesmo esse esforço não foi suficiente para vencer a imbecilidade política.

O servo pobre e mal-agradecido

Em certos sites que se têm debruçado sobre a questão da televisão como serviço público, encontramos os mais espantosos comentários – numerosos leitores defendem a privatização da televisão pública, porque segundo eles a RTP nada faz de jeito, nada nos dá, e está cheia de escroques que sugam os dinheiros públicos.

Chama-se a isto ser pobre e mal-agradecido. Ainda que criticável, a RTP tem sido um oásis no deserto – umas vezes mais viçoso, outras menos. A RTP2 (não esqueçamos que existem vários canais RTP, cada qual com um serviço especializado) deu-nos durante décadas um serviço de cinemateca que fazia inveja a todos os europeus que por cá passavam – várias gerações foram instruídas na história do cinema graças à RTP. Ter acesso à RTP2 era o equivalente a morar na porta ao lado da Biblioteca Nacional todos os dias do ano. A mesma RTP2 dá-nos programas internacionalmente louvados e premiados pela sua qualidade científica, informativa e jornalística, como é o caso de «Biosfera». Quando é necessário fazer uma campanha de formação cívica, lá está a RTP, a custo zero. Quando é necessário dar voz às partes em confronto, lá está a RTP. Quando é necessário entreter as criancinhas por falta de escolas públicas, lá está a RTP. Etc.

A RTP e a RDP sozinhas já fizeram mais por diversas vertentes da cultura do que todas as outras emissoras juntas. E, quanto a mim, a única parte de má programação a apontar à RTP e à RDP é aquela que pretende macaquear a dos privados, para as mãos dos quais há quem pretenda agora precisamente atirá-las.

E assim regressamos ao tema da imbecilidade. Primeiro, porque no caso de um serviço público podemos sempre protestar a programação e a falta de isenção na gestão, ao passo que no caso das televisões privadas, por direito e pela lógica, é comer e calar. Segundo, porque se porventura existem escroques nas administrações das televisões (coisa que está por provar nos referidos comentários), no caso do serviço público podemos protestar e até tomar iniciativas políticas, jurídicas e fiscalizadoras, ao passo que no caso dos privados é comer e calar.

Quem defende o fim do serviço público da RTP por causa da programação e dos gastos não pode disfarçar o seu amor pelos talk shows de chacha, as telenovelas de pacotilha, os concursos do tipo orienta-me aí um microondas, os intervalos de 20 minutos de anúncios e outras manobras de destruição cerebral maciça, e os salários abusivos dos gestores. Mais descarado não é possível ser-se.

A questão principal: o fim do Estado de direito

A questão da privatização das emissoras públicas é apenas um acidente de passagem no meio de um desastre mais vasto: o fim do Estado de direito.

Começo por dizer que, por esgotamento de paciência, desisto de argumentar, como tenho feito até aqui, contra as tendências de esquerda que teimam em ver no que se está a passar o normal funcionamento duma «democracia burguesa». Se não conseguem distinguir entre conceito e acto, superstrutura e estrutura, amanhem-se, que eu tenho mais que fazer.

Para os restantes leitores relembro o seguinte, de forma sucinta: um Estado de direito é aquele em que as regras do poder não dependem da palavra e da boa vontade de um suserano, mas sim de um mecanismo institucional de responsabilidade colectiva.

Ora, uma coisa é saber-se se o mecanismo está em determinado momento a funcionar bem ou mal; outra coisa é os poderes instituídos fazerem sistematicamente tábua rasa da lei, a propósito de tudo e de nada, tomando decisões em sentido manifestamente contrário à norma previamente estabelecida, produzindo decisões e regulamentos circunstanciais que violam garantias hierarquicamente mais fortes (por exemplo, a Constituição e outras leis genéricas), que desmentem o espírito e a letra do que eles próprios ainda ontem tinham decidido.

Este tipo de comportamento político, em tudo semelhante ao medieval, onde o senhor dos servos estava acima da lei, representa pura e simplesmente o fim do Estado de direito e vem a consolidando-se há já algum tempo – por isso mesmo talvez muitas pessoas, em especial as gerações mais jovens, considerem «normal» que as leis de um Estado de direito sejam sistematicamente violadas por quem detém o poder. Não se trata de um regime que tenha sido instaurado de uma assentada, como acontece no caso dos golpes militares, tornando-se com isso clara e evidente a sua iniquidade. Ele foi-se instalando paulatinamente; a sua instauração passa relativamente despercebida; os súbditos desta ditadura podem permanecer em doce ilusão por várias décadas.

Quanto àquelas pessoas, organizações e partidos de quem seria de esperar clarividência, denúncia e resistência, vamos encontrá-las... defendendo a regularidade do regime em curso! Estas correntes políticas que, por cegueira ou por interesse, consciente ou estupidamente, objectiva ou subjectivamente, alinham no jogo da anulação do Estado de direito são tão responsáveis pela instauração do actual regime como aqueles que o criaram directa e activamente.

Num Estado de não direito, isto é, num Estado em que a palavra da lei (ou qualquer outra) já não tem vigor nem valor, todos os males imagináveis e inimagináveis que possam acontecer ao cidadão comum acontecerão de facto, mais tarde ou mais cedo, contra todas as expectativas anteriormente garantidas. Este desastre aflitivo, este destroçar violento das vidas e das expectativas comuns, pode apesar de tudo vir a ter uma consequência interessante. É que um dos problemas da democracia, tal como a conhecemos desde o século XVIII, advém da sua capacidade de embalar a esmagadora maioria da população (os trabalhadores) na doce ilusão da equidade. Mas como o regime assenta essencialmente no conceito de Estado de direito, no momento em que finalmente se torne clara para toda a gente a abolição desse conceito, ou à milésima actuação da imbecilidade autocrática, pode ser que o cidadão comum desperte e vá às armas.