07/03/13

Porque não se radicaliza a luta política em Portugal?


«O que esses senhores temem não são as ideias que vagueiam no ar, que são escritas no papel, impressas ou transmitidas verbalmente. O que eles temem é a organização, a acção organizada, as tentativas organizadas de realizar essas ideias.» – Ernest Mandel.

«O mal verdadeiro, o único mal, são as convenções e as ficções sociais, que se sobrepõem às realidades naturais – tudo, desde a família ao dinheiro, desde a religião ao Estado. […] Empregar todo o nosso desejo, todo o nosso esforço, toda a nossa inteligência para implantar, ou contribuir para implantar, uma ficção social em vez de outra, é um absurdo, quando não seja mesmo um crime, porque é fazer uma perturbação social com o fim expresso de deixar tudo na mesma.» – O Banqueiro Anarquista, de Fernando Pessoa.
[actualizado em 9/03/2013]

A comparação entre as lutas sociais em Portugal e o que se passa em vários países da Europa induz uma conclusão e uma pergunta. Conclusão: a luta de resistência em Portugal é comparativamente recuada e infantil. Pergunta: se estamos submetidos às mesmas medidas de exploração e austeridade que os demais países do sul, como se explica esse recuo?

A resposta reside em dois lugares principais (além de outros secundários): 1) a situação material de vastos sectores das classes trabalhadoras portuguesas; 2) a acção pacificadora dos partidos à esquerda do PS.


O engarrafamento dos remediados

Para tomar decisões políticas, é preciso ter uma quantidade óptima de informação sobre a realidade social. Nem é preciso ser nenhum Lenine para perceber isto.

Ora o método de trabalho nacional consiste em qualquer coisa deste calibre: vai-se almoçar com uns amigos em círculo fechado, inventam-se uns bitates sobre a situação política para manter a conversa à boa maneira latina, esses bitates penetram, quais espermatozóides, os canais auditivos dos comensais do lanche da tarde que se segue a esse almoço, e por fim no telejornal das 9 e nas tertúlias televisivas da meia-noite os bitates transformam-se miraculosamente na imagem da realidade, com base na qual no dia seguinte os militantes dos partidos partem para a acção. Este é um método universal, que não olha a cores políticas nem a graus de inteligência. Por isso tanto vemos o Miguel Sousa Tavares como qualquer colunável de esquerda afirmarem os maiores disparates em oposição frontal aos dados objectivos da realidade nacional e internacional, criando na televisão extraordinários momentos de delírio mental.


Estes momentos de delírio alastram depois a todo o país, cimentando nas cabeças uma imagem completa da realidade que nada ou quase nada tem de comum com ela. Isto mesmo justifica a residência permanente em Portugal, há várias décadas, de um romancista estrangeiro que afirma o seguinte: o povo português é do mais inspirador que pode haver para um autor de ficção, pois vive duas realidades distintas ao mesmo tempo: aquilo que é e a imagem daquilo que julga ser.

Assim se tornou comum o mito de que mais de 70% dos portugueses têm casa própria; ou de que a esmagadora maioria dos trabalhadores portugueses já não aguenta mais a austeridade, estando pronta ou a morrer de fome ou a explodir com um cravo na mão. Ouvimos esta formidável «verdade» solenemente afirmada no telejornal por um porta-voz qualquer de esquerda; logo a seguir vemos uma reportagem com provas visuais de que a greve dos transportes levou centenas de milhar de pessoas a irem de carro para o emprego, o que, além de ser inesperadamente incongruente com a imagem dos esfomeados, provoca objectivamente engarrafamentos com vários quilómetros de extensão em toda a zona da Grande Lisboa; e logo a seguir vem um senhor da Caritas dizer que o povo português está a morrer de fome, como toda a gente sabe excepto o primeiro-ministro e o ministro das Finanças.

Eu diria, bem pelo contrário, que entre as poucas pessoas que têm uma visão rigorosa do que se passa no país encontramos o primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o banqueiro Ulrich, quando afirma que o povo português (na realidade, uma parte dele) consegue aguentar ainda muito mais austeridade. É ultrajante, mas é verdade. Só não o admitirá quem não quiser admitir quanto custa manter um carro durante um ano, mesmo que não seja utilizado e fique estacionado à porta de casa, a descarregar a bateria. Largas camadas da população portuguesa não foram ainda empurradas para aquele extremo de miséria e exploração em que apenas lhes restam duas opções: ou se radicalizam, ou morrem. É verdade que lhes apertaram os calos, que lhes roubaram rendimentos, que lhes aumentaram o custo de vida, que lhes deram uma cacetada na cabeça quando foram a S. Bento protestar, que... mas o carrinho lá vai andando, e como tal... mais vale bater a bolinha baixa.

A traição é que está a dar – compre agora a sua poltrona

Reparem que eu não afirmei que as camadas da população que se sujeitam a ficar sentadas dentro do carro durante duas horas de engarrafamento, em vez de entrarem pelo seu pé no Terreiro do Paço e ocuparem o Ministério das Finanças, são maioritárias. Acontece que, por diversas circunstâncias políticas e históricas, são determinantes – não, rectifico, são dominantes – na relação de forças em luta, independentemente de serem maioritárias ou minoritárias.

Segundo as contas e os critérios da UE e da OCDE, cerca de um quarto da população portuguesa vive neste momento abaixo do limiar de pobreza. Se a estas contas subtrairmos os subsídios sociais, deixando apenas à vista o real rendimento dessas famílias [Maria João Costa, 2013, no prelo; Maria do Carmo Tavares, entrevista PI, 25/02/2013], então cerca de 46% da população portuguesa vive abaixo do limiar de pobreza – isto é, passa efectivamente fome. Perante estes factos, coloca-se nova pergunta: mas esse gigantesco exército de esfomeados tem estado presente nas grandes manifestações e protestos? Esteve presente no 2 de Março último? Aqui é que a porca torce o rabo – não sabemos. O BE, o PC, o MAS, a CGTP, os Verdes, os investigadores das ciências sociais, ... ou não sabem ou não querem dizer – não temos dados sobre a realidade. Aqueles tipos que aparecem com um capacete na tola nas manifs da CGTP são operários da construção civil com um salário de 800€/mês, ou desempregados, ou call girls, call boys, call centers pagos a 200-300€/mês, ou lumpen dos bairros de lata? Sabe-se lá! Ninguém quer saber da realidade para nada, estamos todos a viver num filme de Orson Welles.

Para todos os efeitos, quem domina o processo de protesto social parecem ser as camadas de trabalhadores terciários ainda na zona de conforto e os partidos cuja agenda não é a luta social radicalizada, com montras de bancos partidas, supermercados assaltados nos bairros pobres, boicotes organizados à canalização das companhias privadas de água, derivações clandestinas das companhias privadas de electricidade, ocupação de fábricas, hospitais e escolas, paralisação dos transportes de mercadorias, destruição das edições e antenas dos meios de propaganda (também chamados, por erro, «meios de comunicação social»), mas sim a conquista de mais umas poltronas no parlamento. Não digam nada, eu sei, conquistar meia dúzia de poltronas no parlamento só por si não significa nada, não representa nada para além da ficção social, não fornece qualquer poder (negocial ou outro), é apenas uma monumental estupidez, ou uma manada de pedantes a correr para um beco sem saída, mas que querem vocês, nem sequer é minha intenção ofender seja quem for, limito-me a observar a realidade.

De resto, a campanha de amansamento da fera social nem sequer foi feita pela direita! Foram os nossos queridos companheiros dos partidos de esquerda que tomaram os púlpitos dos órgãos de propaganda para criar um clima psicológico e programático que condena em absoluto toda a revolta veemente, toda a resposta vigorosa à violência exercida sobre a população. São as próprias direcções supostamente da luta que repetem, textualmente, os argumentos da direita vertidos a jorros no pós-25 de Novembro de 1975 para acalmar os ânimos das massas! São eles que chamam à concertação pacífica, à renegociação da dívida que nos esmaga! São eles que criam hoje o ambiente psicológico que lhes permite no dia seguinte vir dizer que o povo português tem uma índole pacífica (não, não estou a citar Salazar), e que prefere morrer de cravo na mão e bolsinha de urina enfiada nas calças, a dar um murro na mesa.

Perante isto, resta-nos procurar na Internet – visto que esta é mais uma realidade que não existe nos órgãos de propaganda – imagens da convulsão que grassa noutros países, para refrigério da nossa alma oprimida.

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