21/03/13

Sobre o frentismo (parte 5)

Depois de estabelecermos um quadro teórico provisório sobre frentismo e movimentos sociais, vamos testá-lo em 3 casos concretos. A escolha desses casos não obedece a outro critério além do razoável conhecimento do autor deste texto sobre o que lá se passou.


[actualizado em 26/03/2013.
Depois da correcção de alguns erros graves nas secções 1-4,
esta secção teve de ser corrigida em conformidade.]




5. Aplicação do quadro teórico proposto a 3 casos passados

Tentemos testar o nosso quadro teórico em 3 casos concretos. A escolha desses casos não obedece a outro critério senão o meu razoável conhecimento sobre eles.

Uma análise rigorosa necessitaria de uma extensa documentação, resultando em dezenas ou centenas de páginas – é um trabalho que não cabe aqui, por isso opto por apresentar uma sinopse pessoal dos acontecimentos. Ganha-se assim em síntese e espaço, mas também em subjectividade. Espero que o resultado possa ser útil, apesar de tudo.

As assembleias populares do Rossio de Lisboa

Após a manifestação de 12/Março/2011, multiplicaram-se em Lisboa as tentativas de formar grupos de debate político. As assembleias populares do Rossio de Lisboa surgem nessa sequência, ao fim de algumas semanas, com uma característica que marca a diferença: realizavam-se numa praça pública, de forma totalmente aberta, e eram acompanhadas de uma atitude de ocupação do espaço público, com um acampamento (ou acampada, para usar o termo castelhano em voga).

A composição das assembleias variava de dia para dia e não se baseava em nenhum interesse imediato1 comum (laboral, local ou outro) – quem chegasse e se sentasse era bem-vindo, podendo tomar a palavra e propor os temas que lhe desse na real gana. A proveniência social, regional e profissional dos elementos presentes em cada dia era heterogénea.2

O objectivo central da assembleia nunca foi fixado. Debatia-se livremente tudo o que viesse à baila, sem ordem nem estratégia. Por outro lado a assembleia tornou-se o lugar privilegiado de expressão duma corrente que pretendia apurar métodos de debate e decisão democrática (o método do consenso, importado de Espanha). Organizaram-se algumas acções (manifestações sempre circunscritas ao círculo de pessoas presentes nas assembleias), aprovou-se uma ou outra declaração política a propósito de assuntos políticos correntes, escolhidos ao gosto do grupo dominante em cada dia.

Na prática, esta assembleia tornou-se uma valiosa escola para muitos participantes que nunca na vida tinham aprendido a trabalhar em assembleia, que não faziam a ideia do que fosse um «ponto de ordem à mesa», nem sequer como deve funcionar a mesa, a assembleia e a ordem de trabalhos.

Feitas as contas, verificamos que o nosso modelo teórico falha na classificação deste fenómeno – não se trata de um movimento basista, por não ter objectivos imediatos nem uma composição homogénea; não se trata de uma frente, por não haver um entendimento comum nem objectivos mediados, nem um entendimento entre grupos ou correntes (que nunca se quiseram assumir como tal, sentindo que reinava um clima hostil às organizações políticas). Seja o que for que lhe queiramos chamar, temos de reconhecer que o nosso modelo teórico é omisso na integração deste fenómeno.3

A plataforma 15 de Outubro (15O)

Esvaída a assembleia popular do Rossio, poucas semanas depois foi necessário criar um organismo capaz de dar resposta a um apelo para uma manifestação internacional. Nasceu assim o 15O. Desta vez, tudo parecia apontar para a constituição de uma frente. Estavam presentes algumas organizações e associações preexistentes – associações de género, os Precários Inflexíveis (PI), etc. –, representantes de assembleias de rua como a do Rossio e a dos Indignados, uma boa quantidade de independentes provenientes da assembleia do Rossio agora sem pouso, etc. Por junto, todos abarcavam várias partes da região da Grande Lisboa. Os partidos e organizações políticas continuavam timoratas em assumir-se claramente como tal, mas começavam a dar mostras de querer controlar o processo – com destaque para o Bloco de Esquerda (BE) e o futuro Movimento Alternativa Socialista (MAS).

Passada a manifestação, este germe de frente unida teimou em manter-se activa. O problema, porém, é que mais uma vez a comunhão de interesses e o objectivo eram indefinidos. Havia, no entanto, algumas agendas partidárias escondidas (por exemplo, a criação da futura IAC, a iniciativa para uma auditoria cidadã) que justificavam o empenho dos partidos presentes, à pesca de «independentes» cooptáveis e de chapéus unitários que legitimassem a iniciativa. Fizeram-se umas purgas (a começar pelos que demonstravam um pensamento independente e aguerrido), desgastaram-se uns quantos activistas que deixaram de aparecer (a começar pelos de fora de Lisboa), algumas franjas próximas do PC desiludiram-se de poder ali fazer alguma coisa e debandaram. Assim se iniciava o estreitamento, sem que isso incomodasse ninguém nem fizesse arrepiar caminho. Por fim, tornou-se evidente que a frente estava morta, faltava apenas enterrá-la.

Apesar de o processo não ter sido muito linear (sim, a realidade política e social é sempre bem mais complexa do que a abstracção simples dos modelos teóricos), parece razoavelmente claro que se tratou de uma iniciativa nascida com intenções frentistas (fracassadas, devido à falta de objectivos claros) que rapidamente descambou numa frente partidária.

No que se refere ao nosso modelo teórico, confirma-se uma regra proposta: uma frente comum que não nasce de (ou com) um objectivo claro está destinada a morrer à nascença.

O CADPP

Da assembleia do Rossio nasceram vários grupos de trabalho. Nalguns deles a existência de um interesse específico e comum produziu frutos. Um desses casos foi o tema da dívida pública, do qual viria a nascer o Comité para a Anulação da Dívida Pública Portuguesa (CADPP), no fim do Verão de 2011.

Este grupo logrou estabelecer objectivos claros: estudar o problema da dívida; divulgar as suas conclusões; mobilizar sectores da população à volta do tema; pugnar pela anulação da dívida; manter ligações a outros movimentos afins na Europa. Para mobilizar e alargar em torno destes objectivos era necessário um instrumento adequado, sob pena de o grupo continuar eternamente a estudar o problema mas nunca mobilizar a população nem criar nela uma consciência política. O instrumento escolhido foi a auditoria cidadã – a intenção inicial consistia em criar núcleos de auditoria cidadã em todo o país, de tal forma que, partindo de um trabalho local de auditoria, o movimento fosse crescendo e ganhando capacidade técnica para fazer uma auditoria cidadã nacional (forçosamente parcial, porque jamais seria viável ir mais além), mas isso não tinha importância na visão do CADPP, visto que se tratava sobretudo de criar um instrumento de consciencialização e mobilização.

Não creio que haja grandes dúvidas, perante este cenário, de que se tratava de uma frente comum, de acordo com a definição que propusemos anteriormente: tinha objectivos precisos e explicitamente declarados; mantinha diversidade de opiniões em relação a outros universos e até em relação a aspectos correlativos aos objectivos propostos; definia um rumo de acção e uma práxis coerentes com os objectivos; constantemente encontrava formas de conciliar divergências menores, num ambiente de grande tolerância e camaradagem, daí resultando regulares avanços teóricos e práticos.

Dois acontecimentos vieram perturbar este cenário. Primeiro, o aparecimento da IAC, uma outra iniciativa que também reivindicava a auditoria cidadã, embora com perspectivas totalmente diferentes sobre a dívida: o objectivo declarado da IAC desde o início era a renegociação da dívida. Além disso, ao contrário do CADPP, era um grupo fechado, elitista (no sentido de se considerar tecnicamente competente, com exclusão do resto da população) e avesso à mobilização e organização de massas. Estava no entanto em melhores condições de crescer e avançar rapidamente; apropriou-se do processo de auditoria (mais técnica que cidadã...) e subtraiu estrategicamente o terreno de acção ao CADPP, que assim ficou como que a flutuar no vazio duma abstracção – embora os objectivos do CADPP fossem claros, estavam praticamente inviabilizados. 4

Segundo, graças à atitude de tolerância e abertura, deu-se a certa altura a entrada no CADPP de elementos do MRPP e outros menos identificáveis que iriam causar uma convulsão interna. Estes elementos, tipicamente, não tinham qualquer noção do que seja um movimento frentista (nos moldes em que o definimos aqui) e tentaram ao longo de várias semanas forçar o CADPP a uma tomada de posições ideológicas que causou um enorme desgaste interno e o afastamento de numerosos membros – cansados, desgostosos e por vezes até ofendidos com o curso dos acontecimentos. Mais tarde a situação viria a ser resolvida com a saída daqueles elementos de pendor partidarizante.

Temos aqui uma amostra empírica de outro aspecto do modelo teórico proposto: a imposição programática exógena provoca fatalmente um estreitamento do movimento frentista.

Na terceira secção desta série, aborda-se o caso particular dos sindicatos.


Notas:

1 Nesta secção, como na anterior, «imediato» significa sempre «sem mediador», e é correlativo da noção de estrutura de base e superstrutura.

3 Esta falha era bastante mais grave na primeira versão do texto, quando ainda não se tinha separado o conceito genérico de movimento social da sua variante específica movimento basista.

4 Mais tarde o CADPP viria a encontrar uma solução para se subtrair a esse vazio de abstracção e regressar ao trabalho de mobilização, mas essa fase não interessa a esta análise.

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