28/04/13

O QSLT e a sentença de morte política

Têm chovido, na rede digital, nos jornais e na vida real, os comentários de crítica, aborrecimento e até indignação perante o comportamento do QSLT.1 Parece estar em curso uma espécie de declaração de guerra.


Desgraçadamente esta coisa do QSLT está a criar azedumes que voltam a estilhaçar a esquerda e podem levar décadas a ser adoçados.


Para quem não sabe: o QSLT é uma organização política que, sob uma capa unitária e frentista, convocou a manifestação de 2 de Março de 2013 e tem desenvolvido intensos contactos com outras organizações e movimentos sociais europeus. Tem também promovido outras iniciativas, algumas delas interessantes e imaginativas.

As raízes do problema



Na raiz do desconforto gerado nos meios militantes e em diversos movimentos sociais está o facto de o QSLT ser uma organização fechada e claramente hegemonizada por determinados partidos, com todas as consequências clássicas que a hegemonia partidária acarreta. É uma organização onde se entra por convite pessoal – como na maçonaria ou nos partidos – mas que, no entanto, pretende mascarar-se de frente unitária; presume estar em condições de representar um vasto leque de movimentos sociais e de falar em nome de camadas da população que procuram uma saída para a crise política, social e económica – o que, obviamente, é muito desconfortável para esses movimentos sociais, quer eles partilhem ou não das opiniões propaladas pelo QSLT. Em suma, comporta-se como um partido mas afirma-se como uma frente. Não é possível deixar de ver neste tipo de atitudes os mesmos vícios do poder e das organizações institucionais, quando falam em nome de todos os portugueses – enfim, a velha escola perpetua-se e declama no Restelo.

Por outro lado, na raiz da atitude do QSLT encontramos uma total incompreensão, por parte das pessoas e organizações aí presentes, dos tempos que vivemos e do carácter inovador da movimentação social de há dois anos para cá. E, que fique isto bem claro, ao dizer «incompreensão» estou a fazer uma escolha de palavras o mais simpática possível.

Como poderíamos caracterizar, em breves palavras, o essencial dos acontecimentos políticos dos dois últimos anos no que se refere à movimentação social?
  1. Pela procura de novas fórmulas de democracia participativa, de base, rompendo com gerações de participação delegada, ou seja, da treta da democracia burguesa. Nesse sentido, os movimentos sociais nascidos no pós-12-Março-2011 são a coisa potencialmente mais revolucionária que temos visto desde o fim da década de setenta em Portugal.
  2. Pela criação de acontecimentos e estruturas organizativas que funcionam como uma autêntica escola de militância política, após décadas de desprezo pela formação política de militantes e quadros de base.
  3. Pelo respeito político mútuo, claramente expresso no uso obsessivo duma ideia de «consenso» – entenda-se, neste caso particular, por «consenso»: a procura de não excluir ninguém na tomada de decisão e acção (pelo menos é assim que eu entendo essa obsessão).
  4. Pela tentativa de encontrar novas fórmulas de trabalho frentista, num país onde a ideia de trabalho frentista tem sido absolutamente nula nas últimas décadas.

O marketing político da venda com brinde
3 massajadores pelo preço de 1

Creio poder deduzir que os escassos independentes que ainda participam na secretíssima estrutura maçónica do QSLT foram seduzidos pela imagem mirífica do encontro entre BE, PC e até alguns sectores mais próximos do PS dentro da estrutura do QSLT. Para quem está sedento de um encontro de vontades e convívios entre os partidos da esquerda institucional, o QSLT tornou-se irresistível.

Compreendo, mas não subscrevo. Para quem, como eu, não dá um tostão furado por organizações políticas que apostam tudo na representação institucional, intermediada, dos eleitores postos em bicha perante uma urna de votos ou uma cabeça de manifestação (e depois mandados para casa, quietinhos e caladinhos, para que não se saiba o que pensam realmente), o produto nem brilha nem seduz. Pelo contrário, tende a ser visto como um perigoso inimigo do crescimento progressivo da movimentação social – e de facto os primeiros resultados produzidos pelas manobras do QSLT apontam nesse sentido: a paralisia e quebra de um certo tipo de movimentação social nos últimos meses, e precisamente quando havia razões para que ela recrudescesse.

L'innocence. Je t'aime moi non plus. A corrupção política

Recebi hoje uma carta de convite para participar numa iniciativa do QSLT. Trata-se do convite à participação numa iniciativa local integrada numa iniciativa internacional. A carta foi enviada nitidamente a título pessoal – não pela própria organização. O remetente merece-me a maior consideração, mas tenho (e mais uma vez escolho as palavras com a maior simpatia de que sou capaz) de ver nesse convite uma inocência infantil. De facto, o convite à participação é enviado quando já tudo foi decidido, quando já foram feitos inúmeros contactos internacionais às escondidas, monopolizando e hegemonizando esses contactos, bloqueando e pondo fora da vista os contactos internacionais que têm opções políticas pouco convenientes à linha hegemónica do QSLT (p. ex., suspensão e anulação da dívida pública, lançamento de processos de democracia participativa e aberta, etc.). A inocência é tanto maior quanto esquece que hoje em dia, graças à Internet, tudo se sabe em questão de segundos...

Na sua inocência, o remetente do convite não se apercebeu que o seu acto contém uma ofensa política e pessoal grave, por ser dirigido a quem defende a nova cultura de movimentação popular – é um convite à corrupção política. E, ironia das ironias e casualidade das casualidades, o texto do convite, onde avulta o apelo ao consenso, é enviado dois dias depois de o governo ter feito exactamente o mesmo, no mesmo tom, em relação à oposição – já decidimos o que fazer, agora queremos que vocês nos dêem o vosso «consenso». Obrigadinho.

Esta identificação com os processos do poder não é casual – deriva duma identidade de naturezas.

Uma sentença de morte a prazo

Na fase política actual, as organizações políticas que insistem em hegemonizar à força, que teimam em usar simulacros de frentes unitárias e populares como fachada partidária, estão condenadas à morte. Ou melhor, sejamos mais rigorosos e menos voluntariosos: ou essas organizações são condenadas à morte, ou sobrevivem à custa de condenarem à morte a movimentação popular genérica – tal como acontece com os medicamentos: ou apostamos no produto de marca, ou no genérico. Não existe meio termo possível: ou uns ou outros.

A resposta às manobras de sobrevivência deste tipo de organizações tem de ser do mesmo tipo. Infelizmente, também aqui não há meio termo possível, por muito que isso nos custe. Mas existe ainda outro problema, uma lei incontornável da realidade política e social: perante uma massa informe ou anárquica de movimentos, as forças organizadas tendem sempre a vencer e impor a sua lei. Deixo aqui um apelo a todos os activistas dos movimentos sociais para que ponderem seriamente este dado da realidade e procurem encontrar soluções, se não querem ser sujeitos à extinção.

Depois de uns meses a apanhar bonés, o produto de marca consegue marcar uns quantos pontos

As organizações partidárias de esquerda foram apanhadas de surpresa pelos acontecimentos da movimentação social nos dois últimos anos. Deram-se mal com eles, claro está. Foi-lhes desagradável ter de lidar com um conjunto alargado de pessoas e assembleias que tudo punha em causa, que tudo queria discutir, que não aceitava a autoridade dos iluminados e das «vanguardas» organizadas como uma dádiva de deus.

De facto, eu próprio me passei dos carretos muitas vezes com algumas das intermináveis discussões (a meu ver incorrectas ou de lana-caprina muitas das vezes) que tivemos de aturar nessas assembleias. Mas é indispensável reconhecer um dado da maior importância: essas assembleias e organizações frentistas (onde se destaca particularmente esse extraordinário momento que foi o 15O na sua origem) formaram uma escola essencial ao movimento de resistência e luta. Muitos dos presentes nas assembleias do Rossio de 2011, que nessa época não queriam ouvir falar de direita e de esquerda, de dívida, de capital, de trabalho, etc., são hoje alguns dos activistas mais notáveis na criação de iniciativas políticas. Não foi preciso muito tempo para que quem se queixava das referências aos conceitos de trabalho e capital como sendo uma coisa despropositada e de antanho, compreendesse que há conceitos indispensáveis à análise política2 rigorosa sem os quais permaneceremos toda a vida na fase do gugu-dadá.

Tudo isto, para organizações com pretensões à partilha do poder mas onde o debate político verdadeiro é próximo do zero, constitui uma terrível ameaça.3 Dada precisamente essa proximidade do zero, não é preciso muito esforço em matéria de formação para que a generalidade das pessoas comece a perceber a nulidade política das organizações em questão e o seu compromisso com um sistema político que não nos convém, que nos trouxe até aqui e que perpetua a falta de democracia.4 Daí que elas, as organizações partidárias em causa, tudo façam (incluindo o recurso aos mais baixos truques) para impedirem o desenvolvimento da consciência política. O confronto é-lhes fatal, resulta numa autêntica sentença de morte.




1 Algumas das críticas e alertas contra o QSLT surgiram na forma de cartas anónimas, sem data. Não posso subscrever esse tipo de procedimento.

2 Não existe nenhum animal chamado «mamífero», nem nenhum sujeito chamado «capitalista». Objectiva e concretamente, eles não existem. E no entanto não é possível ultrapassar o limiar do pensamento lógico e científico sem recorrer a estes conceitos gerais. A rapidez com que muitos activistas compreenderam isto (2 anos, num país com um grau de politização próximo do zero, é uma velocidade relâmpago) demonstra a extraordinária importância dos novos movimentos sociais, o seu papel na formação política da população em geral e a escola de pensamento e debate que representam.

3 Apesar da natural fidelidade ao grupo, bastantes militantes partidários me têm confessado o desespero que sentem perante a nulidade (leia-se ausência) de verdadeiro debate e formação interna.

4 Já exprimi por diversas vezes, em diversos lugares, o meu conceito abreviado de política: tudo se resume a uma pergunta: para quem, de quem, com quem. Neste caso: democracia para quem? – para os trabalhadores, evidentemente.

6 comentários:

  1. Rui, subscrevo
    É sempre bom encontrar alguém na estrada que parece deserta e que segue na mesma direção e avalia a mesma paisagem como se fosse através dos nossos próprios olhos

    um abraço
    VL

    ResponderEliminar
  2. Blog altamente pedagógico, muito, mas mesmo muito obrigado!

    ResponderEliminar
  3. Não conseguem criar movimentos como o QSLT e ficam logo amuados.

    ResponderEliminar
  4. Rui, muito bem.
    É preciso recusar o dilema em que "nos" querem enquadrar: se não és a nosso favor, estás a dividir.
    Este texto ajuda a perceber os termos em que a questão verdadeiramente se coloca: é impossível lutar pela democracia com práticas antidemocráticas. Mais: quem o faz não tem (não pode ter, por definição) pretensões à verdadeira mudança. No caso presente apenas quer a substituição destes por outros que não vão fazer qualquer diferença em relação ao que nos oprime: falta de representatividade, pagamento da dívida, etc.
    Julgo que todos temos o desejo e o interesse em que a manifestação que se avizinha seja expressiva e por isso não deixaremos de ir, com faixas e palavras de ordem.
    A todos os activistas: vemo-nos lá.

    Mjoão costa

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caros comentadores Grazia Tanta e Homónima,
      agradeço as colaborações aqui prestadas, mas devo esclarecer um grande equívoco. Um equívoco que, além de provocar uma confusão desagradável de identidades em termos meramente pessoais, pode acarretar consequências graves de segurança: o autor deste artigo não é o Rui - é o Bilioso, que vive há bastantes anos na clandestinidade; o Rui é apenas o seu meio de contacto com o mundo exterior; e também o seu editor e gestor para este blog (de modo a não denunciar um IP de localização do Bilioso); e às vezes, raramente, é convidado a publicar aqui, assinando em nome próprio. Ao Rui agradeço imenso a camaradagem e o trabalho a que se dá em proveito da segurança da minha clandestinidade; lastimo tê-lo envolvido neste equívoco.
      Aos comentadores em questão agradeço que não repitam a confusão. Obrigado.

      Eliminar
  5. O Anónimo acima procede ao comentário típico de um qslt - zero de política e muito de preconceito elitista. Se não for isso é alguém que ainda não percebeu que o QSLT está na órbita do BE, é fechado, sectário, enganador e com proposta política reacionária - eleições - para ajudar o PS a ir para o poder gerir o memorando da troika

    ResponderEliminar