13/05/13

O marketing político e a candura pública


[rectificado em 13/05/2013]
O marketing político e estratégico está razoavelmente documentado na Internet. Para a comunicação social portuguesa ele é um tabu, ou pelo menos uma realidade que deve ser silenciada, mas ainda assim pode ser consultado e investigado por quem tenha umas horas vagas (desempregados, por exemplo) e acesso à Internet. Um dos casos documentados é o da empresa de marketing político que recusou trabalhar na campanha do PS para o parlamento europeu, apesar de o PS ser seu cliente habitual. Em entrevista discretamente publicada, o director da firma justificou a recusa com um conflito ético de interesses: o prof. Vital Moreira (então candidato do PS) faz parte do lobby mundial das indústrias farmacêuticas; ora a empresa de marketing em questão tinha nesse momento como cliente a associação nacional de farmácias, que estava em guerra aberta com a indústria farmacêutica.



Encontramos bastante documentação relativa a casos concretos de marketing político e estratégico na América do Sul. No caso português, como disse, existe uma espécie de faz-de-conta que ele não existe. Mas ele existe e é muito poderoso – há muitos anos que, à semelhança de qualquer empresa de razoável dimensão, nenhum partido político institucional ousa partir para campanhas e estratégias políticas sem um conselheiro de marketing. Ainda que este facto não seja divulgado pela comunicação social, é bastante estranho que a maioria das pessoas com experiência de vida e militância política não se aperceba disso. Além de estranho, torna-se difícil distinguir entre a candura, a tontice e a cumplicidade. É o caso, recentemente, da porta-voz da APRE (associação de reformados), que aparentemente embarcou na telenovela montada por Paulo Portas e pelo Governo a propósito dos reformados.

É possível que por sovinice ou por falta de dimensão os partidos portugueses não tenham contrato permanente com as empresas de marketing – não possuo informação concreta suficiente – mas não restam dúvidas de que nos períodos de contrato terão aprendido algumas regras básicas que depois aplicam de forma sistemática, talvez pouco criativa, mas ainda assim eficaz.

É da maior importância identificarmos essas regras de marketing se queremos entender de que forma estamos a ser toureados quer pelos poderes públicos quer pela oposição institucional. Tentarei dar alguns exemplos.

Sempre que um político ou um partido, a propósito de coisa nenhuma, insiste em dizer que não fará uma coisa, isso significa precisamente que está a preparar o terreno para a fazer. Temos, como exemplo mais recente, as declarações de Paulo Portas, com pompa e circunstância, dando a entender que nem morto permitiria que os reformados fossem ainda mais esmifrados do que já são. Qualquer pessoa minimamente avisada, ao contrário da cândida porta-voz dos reformados, perceberia que as declarações de Paulo Portas foram despropositadas e forçadas – se o assunto fosse sério, teria sido resolvido à porta fechada dentro do Governo (com as respectivas consequências externas, claro está) e não na praça pública. O simples facto de ser trazido para a praça pública denuncia a existência duma campanha de marketing.

Outro caso que bandarilhou de forma brilhante a opinião pública (e dessa vez com o descarado conluio da oposição) foi a muito badalada proposta de redução da TSU. No preciso instante em que se faziam grandes debates, manifestações e declarações de vitória pelo recuo do Governo na redução da TSU, o mesmo Governo, pela porta do cavalo, fazia aprovar um diploma que permite às empresas (de uma dimensão razoável, entenda-se) solicitarem a devolução anual da TSU que entregaram ao Estado. Esta medida foi totalmente escamoteada pela imprensa, pelos partidos da oposição e pelo próprio Governo, de forma que, quando os seus efeitos desastrosos na sustentação da segurança social se fizerem sentir (daqui a um ano), a maioria das pessoas encontrar-se-á na total ignorância das suas causas.

Outro indício que nos permite perceber quando está em curso uma campanha de marketing é o facto de as declarações despropositadas como as que referimos acima deverem ser seguidas de uma autêntica telenovela, para produzirem efeitos práticos no público. Não basta produzir uma declaração extemporânea (por exemplo: «não aumentarei os impostos»), é necessário que a seguir se construa uma narrativa interminável, telenovelesca, a propósito do assunto – entrevistas contraditórias, críticas, opiniões avulsas, desmentidos, dúvidas veementes acerca das declarações, debates na televisão, ataques públicos entre políticos (que raramente são verdadeiros, trata-se de encenações). Por exemplo, no caso do «não aumentarei impostos», é necessário que surjam a seguir interrogações violentas do tipo «se não tenciona aumentar os impostos, onde vai buscar o dinheiro necessário para pagar aos funcionários públicos», «então como tenciona arrumar os dinheiros públicos disponíveis, face às necessidades existentes», etc. O público segue mesmerizado esta telenovela, focando-se na questão «central» do aumento ou não de impostos, sem se aperceber que durante semanas ou meses está a ser acostumado à ideia (totalmente desprovida de bases factuais) de que não existe dinheiro para pagar salários da função pública, ou de que é necessário tirar dinheiros do erário público de um lado para o aplicar noutro. Quando, finalmente, estas medidas são aplicadas, o pêndulo hipnótico da toada telenovelesca já produziu efeito suficiente para que a generalidade do público aceite como um facto estabelecido e de resolução urgente a fictícia carestia de fundos para pagamento de salários.


Terão reparado que usei a palavra «público» e não «povo», ou «trabalhadores», ou «os 99%» ou qualquer outra expressão equivalente, na moda do vocabulário político actual, de «as classes trabalhadoras». Não, não o faço por erro, por ignorância política ou por descaminho ideológico (como podem estar agora mesmo a pensar alguns). Faço-o porque estamos de facto em presença de um espectáculo minuciosamente encenado, em termos estritamente clássicos, com o público de um lado e os actores do outro, não faltando a cenografia nem por vezes a banda sonora, e culminando em aplausos e apupos por parte do público, como e de regra. Por isso mesmo todos os partidos da oposição têm levado a cabo, nos últimos meses, uma campanha desesperada para que o público não se transfigure em actor independente, quebrando as bases de aplicação teórica e prática do marketing político e estratégico.


Uma última observação antes de fechar, esta a propósito dos profissionais do marketing político. Trata-se, na generalidade dos casos, de técnicos altamente competentes. Fazem o seu serviço com brio profissional, e para aquilatar o orgulho que sentem numa campanha bem construída basta consultar (mais uma vez à disposição na Internet) a forma como redigem os seus currículos individuais ou de empresa. Em princípio nada temos contra essa coisa maravilhosa, e crescentemente rara hoje em dia, que é o brio profissional. Mas no caso vertente (ou seja, bandarilhar o público), com milhares de pessoas a padecerem e até a falecerem em virtude desta crise tão bem vendida pelo marketing, não pode deixar de nos vir à cabeça o exemplo do canalizador dos fornos crematórios nazis – também ele se gabava de ser profissionalmente impecável e nada ter a ver com tudo o resto. Cada um usa as suas próprias canalizações como muito bem entende.

Sem comentários:

Enviar um comentário