04/06/13

Um país de capados e excisadas


Um dos fenómenos mais fascinantes da História é a forma imprevista como por vezes uma minúscula faísca, aparentemente débil e insignificante, pode incendiar a movimentação popular, provocando uma viragem dos acontecimentos. O papel destas humildes fagulhas repete-se invariavelmente ao longo da História, em todos os continentes, desconcertando os teóricos, políticos, agitadores e revolucionários que em vão tentaram, durante anos, despertar a combatividade popular. E de repente, sem razão aparente, à margem dos tutores da política, o milagre acontece!

Apesar da imprevisibilidade deste tipo de acontecimentos, uma análise rápida dessas «faíscas» permite-nos compreender porque se transformaram elas em incêndios generalizados; permite-nos até perceber quando pode ou quando «deveria» ter acontecido.

E uma análise atenta e honesta dos tutores da política talvez nos permita compreender também porque não aconteceu antes esse milagre.

Heloísa e Abelardo, traídos pelos seus próprios tutores depois de terem vivido uma história de amor cuja paixão incendiária subverteu todas as normas vigentes e inspirou 9 séculos de romance e imaginação erótica, resignam-se a passar o resto das suas vidas enclausurados, cada um no seu mosteiro, trocando durante 20 anos pacíficas cartas filosóficas. À distância de um milénio, há nisto um quase prenúncio da quietude dos portugueses após uma história de paixão intensa (o 25 de Abril), seguida da traição abjecta com que os seus tutores os mutilaram. Para toda a vida, como fizeram a Abelardo?

O exemplo turco

Geralmente tudo começa com um acontecimento particular, de dimensão restrita, mas que de alguma forma contém em si as condições necessárias para despertar a consciência colectiva, para unir no geral o que parecia disperso no particular. É isso mesmo que está a acontecer neste momento na Turquia: a tentativa de destruir o Parque Gezi – um espaço público, num bairro de Istambul, que os especuladores financeiros e imobiliários pretendem substituir por um centro comercial – gerou em 3 dias um movimento generalizado contra um regime político opressor.

A resposta do Estado turco a este despertar da vontade popular foi tremenda. Neste momento há já vários mortos, pessoas que ficaram cegas para o resto da vida por efeito do gás pimenta e das doses maciças de gás lacrimogéneo lançadas pela polícia, pessoas que estão no hospital em estado crítico, prevendo-se a sua morte a qualquer instante.

E no entanto ninguém recua. A multidão engrossa, com perigo consciente da própria vida. Talvez porque a vida, tal como ela lhes foi possível até ao momento, não satisfaz nem é suportável – muito em especial para a juventude universitária e para muitas mulheres. Algumas delas, com quem me correspondia há poucas semanas atrás, propunham-se emigrar para outro país onde pudessem viver com liberdade e dignidade. Neste momento essas mesmas mulheres, algumas delas mães solteiras, estão nas ruas a levantar barricadas, enquanto os filhos ainda infantes ou adolescentes, em casa, procuram vencer o bloqueio da comunicação social através da Internet, do Facebook, dos blogs.

A este apelo nas redes sociais o Estado turco responde bloqueando as transmissões hertzianas à volta das praças sitiadas, para que o mundo exterior não se aperceba da verdadeira dimensão social e política do que ali acontece. Em vão. Os comerciantes, os cafés, os escritórios das imediações colocam as suas ligações por cabo ao dispor dos insurrectos. Muitos polícias começam a vacilar, recusam-se agredir os seus irmãos, demitem-se para não ter de os cegar com gás pimenta. É o pandemónio generalizado, com o primeiro-ministro muito convenientemente a viajar para Marrocos.

Perante o silêncio incompreensível dos comentadores políticos de serviço, dos secretos admiradores do «empreendedorismo» à la Daniel Oliveira, recebo no meu e-mail pedidos tímidos de acção solidária:

«These are very critical days for the future of Turkey. The government is taken by surprise. If they manage to recover before they're taken down, they will take enormous measures. They will use this to their advantage. I do hope that doesn't happen.»


Um fósforo molhado

Por cá, tenho a sensação de viver um mundo de pernas para o ar. Dúzias de possíveis faíscas já cintilaram – mas nenhuma incendeia a palha em que vivemos.

Podia ter acontecido esse incendiar, nos 6 últimos anos, por ocasião do encerramento duma escola; ou de um posto de saúde; ou de uma ligação ferroviária sem a qual dificilmente a população consegue deslocar-se para o trabalho; ou de um estabelecimento de restauração que não pôde cumprir a norma 4728 da ASAE, apesar de muito estimado pelos seus clientes; ou de 200 postos de correios por esse país fora; ou...

Podia ter acontecido de cada vez que esse personagem tenebroso que dá pelo nome de Zé Sá Fernandes abate fileiras inteiras de árvores históricas na cidade de Lisboa, ou destrói os espaços públicos verdes, tornando-os estéreis, e os atapeta com uma mistura de pó de vidro que é um crime maior contra a saúde pública. Podia ter acontecido de cada vez que a Câmara de Lisboa vende edifícios históricos em que as obras de arte neles contidas valem mais do que a quantia paga pelos privados que adquiriram o edifício, com autorização para o destruir. Podia ter acontecido quando um pequeno grupo de gente bem intencionada tenta ocupar esse edifício e preservá-lo, sendo prontamente expulso pela polícia. Podia ter acontecido de cada vez que uma tapada é privatizada para proveito de empreendimentos turísticos, quebrando uma tradição centenar que a facultava livremente como espaço público.

Mas não. Nada acontece. Vivemos num país de capados que choramingam a desgraça que lhes acontece sem levantarem um dedo contra a danada. É isto um mistério. Que forma inesperada, inimaginável, deverá assumir a fagulha, para ressuscitar os capados do seu torpor?

A aleivosia dos tutores

Ao fim do dia 1 de Junho de 2013, começo a receber mensagens de gente envolvida na manifestação convocada pelo QSLT: onde estavas tu? porque faltaste à manif? como justificas a tua contribuição para o relativo falhanço desta iniciativa?

Pois bem, estava a acompanhar outra gente, gente que estava em luta, os moradores de Carnide contra o ataque da privatização que encerra os serviços de proximidade dos CTT; estava solidário, ao lado deles, da forma mais útil que me era possível dentro das minhas limitações.

20 moradores de Carnide, quase todos de cabelos grisalhos, dirigiram-se ao centro da cidade para lavrarem o seu protesto. Eu acompanhei esse protesto. Por isso estava nessa acção e não a brincar às manifestaçõezinhas. Por esse país fora, muitas outras pequenas lutas como esta estavam em curso.

Por isso limito-me a devolver a pergunta: onde estavam vocês?

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