31/08/13

Fecha as pernas, que vêm aí as gaivotas

Estávamos acampados numa praia de nudistas – esse lugar onde, ao fim dos 3 dias que olhos pedem para se acostumarem à luz, se revelam belos os mais improváveis corpos, porque só sob a exuberância da luz nua se pode exercer o olhar que o urbano pundonor cega.

Estávamos ociosamente estendidos ao sol – eu, a minha namorada, e a namorada da minha namorada. Era essa hora poente em que as gaivotas, talvez atraídas pelo cheiro dos peixes que os pescadores abandonam no areal, decidem patrulhar as areias, aventurar-se mesmo à beirinha dos banhistas, como se fossem bicá-los, e lançar aqueles gritos de duvidoso significado, se retirarmos da cena a imagem que lhes identifica a origem.

Nisto, diz a minha namorada à amiga: «Fecha as pernas, que vêm aí as gaivotas.»

E de facto, dou-me conta então – e só então, e não daria, não fora esta observação (ou piropo?) da minha amiga – que flutuava no ar um cocktail de odores especioso, feito de eflúvios de maresia e vulva (não sei já dizer qual delas), uma miscelânea duma elegância rara, irresistível, inebriante e langorosa no mesmo lance.

É preciso guardar gratidão eterna a essas pessoas que têm a qualidade rara de nos atirar frases destas, de nos impor o óbvio, que fazem os cegos levantar-se e ver, e sem as quais permaneceríamos mutilados de nós mesmos toda a vida.

30/08/13

O perigo umarino deve ser espezinhado aos pés e deitado aos cães

[Actualização em 6/09/2013: Uma parte deste artigo baseou-se na apreciação de um acontecimento que eu apenas conhecia por interposto testemunho. Foi um erro, evidentemente, como veio a provar-se quando vi o vídeo da intervenção em questão, onde uma militante feminista fala sobre a questão do assédio e a situação da mulher. Por desconhecer o sentido de algumas palavras em português (creio eu) e por infelicidade de linguagem (creio eu outra vez) inerente ao risco da improvisação em público, a apresentação contém deslizes que não deixo de apontar, por roçarem atitudes extremas de normatividade e criminalização de comportamentos que me levam, por exemplo, a não querer viver no Irão. Mas de uma maneira geral defende uma tese geral obviamente correcta: o direito das mulheres a usufruírem o espaço público sem se sentirem ameaçadas e não deixarem passar em claro os abusos e violências de que são vítimas. Perante isto, o meu artigo talvez pudesse ser reformulado ou substituído. Como sou contra a manipulação da história, mantenho o registo de um artigo que já foi publicado.]

26/08/13

O que é a classe média – adenda

Ensaiei no artigo anterior uma redefinição abreviada e actualizada de classe média. Fi-lo de forma sumária, como convém ao formato de um blog.

A minha motivação foi simples: ainda que se considere duvidoso o interesse de definir um conjunto de classes médias, a utilização desse conceito é corrente no vocabulário quotidiano e recorrente na propaganda ideológica de todas as cores; já que não podemos eliminar o conceito (e a propaganda), ao menos tentemos corrigi-lo e construir um conceito operacional em termos políticos.

A redefinição proposta de «classes médias» levantou numerosas objecções, fosse pela sua brevidade (que exigia alguma reflexão e «trabalho de casa» do leitor), fosse pela sua novidade. Em atenção a alguns desses objectores acrescento agora, mais uma vez de forma abreviada e parcelar, alguns apontamentos dispersos.

17/08/13

O que é a classe média


O lodaçal académico

A maioria dos politólogos, sociólogos, economistas e outros melros que tais adora complicar o que é simples. Bom, na verdade, a organização social nada tem de simples, uma vez que nela nada funciona segundo uma causa determinística única, linear, da qual resulte um efeito determinado único. Mas ainda assim há imensos factores sociais que não carecem de dezenas, centenas ou milhares de páginas para serem explicados.

Um desses lodaçais teóricos é a definição de «classes médias». Não sei nem me interessa saber donde vem esta designação, mas reconheço-lhe pertinência. O lodaçal teórico, porém, não tem razão de ser, pois a definição de «classes médias» é simples.

13/08/13

FFF - felicidade, felácio, fé

Mude você mesmo o seu presente – eu não posso ajudar

Há milhares de anúncios com coisas deste teor (colho um ao acaso, o primeiro que me saiu na rifa ao abrir o navegador de Internet):

«E se tivesse a oportunidade de mudar o seu futuro? Acabe com os seus problemas e encontre a felicidade tão desejada. Eu posso ajudar.»



O mesmo tipo de anúncios é afixado nos jornais, ao lado das campainhas das portas, distribuído em mão na rua e introduzido nas caixas de correio. Há para todos os gostos – uns mais ocidentalizados, outros mais africanizados.

O que de comum encontramos em todos é:
  1. uma cesura entre o passado, o presente e o futuro – sendo o presente passivo;
  2. a ideia de que o futuro está pré-determinado (daí a utilização no anúncio da expressão «mudar o futuro»);
  3. a ideia de que é preciso recorrer a um guru para mudar o futuro.
Cesura, compartimentação, determinismo, sectarismo – eis algumas das chaves destes anúncios.

09/08/13

Que não se repita este amargo de boca

Estou aborrecido comigo mesmo – com a atitude que eu próprio apliquei ao dia do meu próprio aniversário,  passando por ele como cão por vinha vindimada.

Nesta atitude parda, indiferente, aversa a um momento de excitação aparentemente pueril, há qualquer coisa que roça as atitudes fascistas.