10/09/13

Uma política para as artes? (4)

[continuação da série sobre artes e cultura; ver artigos (1), (2), (3)]

Escola, consumo, artes

A generalidade do público é remetido para a posição de mero consumidor e desconhece a realidade viva da criação artística. O consumidor – aquele que paga para ver um filme, ouvir um disco, visitar uma exposição, ler um livro – está para a produção artística como o consumidor médio americano está para os panadinhos de pescada pré-cozinhados – julga que aqueles cubinhos de peixe nascem assim na natureza, e quando um dia descobre o animal donde proveio o produto fica tão chocado que nunca mais come panadinhos.

Este alheamento em relação à produção artística e criativa não é casual – é gerado pela incompleição dos programas de ensino e corresponde a uma política intencional, uma estratégia de gestão da nossa sociedade. Quando um ministro da Educação afirma que não há verbas suficientes para o ensino e a prática das artes nas escolas (afirmação jamais demonstrada numa tabela de cálculo e apenas fortificada na autoridade da sua gravata), está a efectuar uma manobra de diversão: desvia as atenções e o debate público de questões essenciais – como os programas de ensino e o papel das artes na nossa sociedade – para falsas questões laterais.

A produção independente

Como vimos anteriormente, os modos de produção artística dividem-se entre dois tipos genéricos: proletarizada e de vanguarda ou experimental. Entre esses dois extremos há bastantes meios-tons – muitos artistas (provavelmente a maioria, mas seria perigoso e incerto quantificá-los) mantêm-se independentes da indústria mainstream mas esforçando-se por seguir os seus cânones; temos de deixá-los algures num limbo difícil de definir mas do qual frequentemente eles próprios procuram sair em direcção ao mainstream industrial. Deixemos de lado o limbo e foquemos a via de vanguarda ou experimental.

Cada obra e cada autor é um caso específico, já o dissemos, mas apesar disso existem factores constantes. Para começar, a sua condição (objectiva e material) única tende a reforçar a tendência individualista encorajada na nossa cultura. Podemos criticar este individualismo – certamente mais por preconceito político que outra coisa –, mas não podemos eliminá-lo ou exigir que os autores o abandonem sem, pura e simplesmente, pôr fim definitivo à sua produção. A condição material e objectiva de individualidade e unicidade do artista acima referida é reforçada ao extremo nuns casos (correndo o risco do cliché, ocorre apontar o caso do poeta) e amenizada noutros (quando a opção do autor pende mais para o trabalho colectivo e pluridisciplinar, por exemplo). Mas em ambos os casos ele não pode produzir trabalho criativo sem passar por longos tempos de estudo e reflexão – e isso exige isolamento e trabalho individual e solitário, ainda que o objectivo seja participar numa construção colectiva.

Deste conjunto de factores podemos derivar alguns sentidos políticos. Não pretendo entrar aqui nesse debate – tornado bastante confuso pela intervenção teórica de demasiados comentadores e filósofos –, mas, por diversas razões que fui expondo ao longo desta série de textos, não me restam dúvidas de que a produção artística de vanguarda contém um vector muito claro de combate ao poder político e económico dominante, ainda que o autor jure a pés juntos que não quer ter nada a ver com política. Recordemos sumariamente algumas dessas razões: recusa de participação na produção de arte mainstream, ou seja, recusa da proletarização; recusa de aplicação cega ou acrítica dos cânones, modelos e estéticas consagradas pelo mercado de consumo de artes; denúncia frequente do papel da arte no conjunto da sociedade; etc.

A situação vivencial do artista

Desconheço a existência de estatísticas e estudos de campo sobre os modos de vida e o quotidiano dos artistas – talvez existam, mas eu não os conheço. Por conseguinte a imagem que aqui vou transmitir é limitada pelo meu conhecimento pessoal do meio.

O trabalhador da área das artes padece das mesmas limitações e apertos de qualquer outro trabalhador, em tempo de crise ou fora dele. Tem no entanto especificidades desconhecidas do público – por isso vale a pena tentar traçar alguns retratos típicos.

A primeira especificidade consiste no facto de que mesmo antes da crise e da instauração dos regimes neoliberais na Europa, grande parte dos artistas estava habituada a uma situação permanente de precariedade e ao facto de durante a maior parte do ano (ou durante anos a fio) não ter qualquer garantia de subsistência no futuro próximo. Há, evidentemente, as excepções – o bailarino ou o músico contratados numa companhia de dança ou numa orquestra permanentes (mas companhias e orquestras permanentes em Portugal contam-se pelos dedos duma mão), o pintor, escritor ou músico com sucesso comercial, etc.; mas a percentagem destes casos é ridícula no conjunto da comunidade artística e a sua situação corresponde pende mais para o lado da indústria do que para o lado da vanguarda.

Perante este panorama de insegurança permanente face ao futuro, o artista tem geralmente de encarar a necessidade de aceitar uma sucessão de biscates ou um emprego que pouco ou nada tem a ver com a produção artística. Uma parte importante do seu tempo fica assim ocupada e o ele vê-se obrigado a entrar num limbo que se situa algures entre a dedicação à arte e o diletantismo. É portanto natural que resista o mais que pode a aceitar um trabalho a tempo inteiro – recordo um outro retrato que tracei anteriormente, mostrando o artista como alguém que está 24 horas por dia de serviço à sua arte, sendo isso uma condição importante para o seu desempenho e perícia. O momento em que o artista cede à pressão e aceita um emprego a tempo inteiro é em muitos casos o preâmbulo do abandono da sua arte, da qual irá falar durante o resto da sua vida com a nostalgia dos «bons tempos». Julgo que este caso é particularmente frequente na área da música e da pintura, mas neste aspecto não garanto que a amostra de casos que conheço seja significativa.

Por outro lado, o artista pode ser um autodidacta, ou pode ter tirado um ou mais cursos, pode ter sido iniciado como aprendiz de outro artista, mas em todos os casos a sua aprendizagem não acaba nunca, dura uma vida inteira. Isto significa que, quer seja pago quer não seja, está sujeito a uma pressão muito forte para se manter a par do trabalho de outros autores em diversas áreas, ler um conjunto muito vasto de livros que constituem fonte de informação ou inspiração, frequentar seminários, cursos intensivos, e outras formas de contacto e aprendizagem com outros autores (dentro ou fora do país), ver e estudar filmes, exposições, músicas, etc. Este esforço de informação e formação implica custos permanentes, nada garantindo que os rendimentos do trabalho venham alguma vez a compensá-los.

Em muitos casos há ainda a considerar o investimento em materiais e instrumentos (caso típico dos pintores e músicos). Por vezes este investimento além de avultado é permanente ou cíclico, como sucede no caso dos criadores da área audiovisual, que são empurrados pela indústria para a constante renovação tecnológica, com custos de renovação e manutenção esmagadores (mesmo para empresas, quanto mais para um indivíduo isolado e sujeito a uma situação de precariedade); mas desistir dessa batalha permanente pelo apetrechamento independente implica o risco de capitulação à indústria e à proletarização – o artista tenderá a suportar todos os sacrifícios necessários para não cair nas mãos de uma empresa que possui e controla os meios de produção.

Por fim, nalgumas áreas, encontramos doenças profissionais ou de desgaste físico rápido (como descrevo noutra secção a propósito dos bailarinos), donde resultam custos acrescidos e uma reforma precoce.


Esta breve descrição não visa alimentar uma imagem romântica dos artistas (que eu, de resto, considero prejudicial), mas sim fornecer um retrato da realidade tal qual ela é e sobretudo demonstrar a enorme pressão a que alguns artistas estão sujeitos no sentido de abandonarem a sua independência criativa e aceitarem integrar-se no que anteriormente defini como indústria e proletarização das artes – um lugar onde a precariedade permanece, mas a esperança de lhe sobreviver aumenta.


[continua no próximo artigo]

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