19/11/13

Dicionário do charme político: desenvolvimento


Muitos termos usados pelos políticos profissionais e pelos poderes públicos vencem pelo charme e matam pelas consequências.

Este dicionário do charme político está em vias de construção lenta e por fases.
Verbetes anteriores: economia ;

Desenvolvimento

Etimologia
Temos aqui escondida uma raiz mínima: volver (dar voltas). A partir dela se formaram e evoluíram conceitos tão variados como envelope, evolução, revolta, revolução, envolver, … Esta diversidade de derivados mostra que a evolução histórica e cultural dos conceitos é uma parte fundamental da etimologia. No caso particular do desenvolvimento, temos que partir da ideia de envolver/envelope – dar voltas a uma coisa para a enroupar em algo; comprometer alguém num determinado âmbito de interesses. O moderno conceito de desenvolvimento é indissociável da ideia de continente; dizer que uma corrente de ar se desenvolveu numa gripe contém a ideia de que algo (neste caso um vírus) que estava contido foi libertado do seu invólucro protector, provocando uma cadeia de reacções.


Uso actual
A origem e utilização do conceito político de desenvolvimento tem origem (tanto quanto sei) no discurso de tomada de posse do presidente norte-americano Truman:
«O velho imperialismo – a exploração para enriquecimento estrangeiro – não faz parte dos nossos planos. Concebemos um programa de desenvolvimento baseado nos conceitos de justiça e fair-dealing democrático. Todos os países, incluindo o nosso, teriam muito a ganhar com um programa construtivo para melhorar a utilização dos recursos humanos e naturais» [Harry S. Truman, 20-01-1949] *




Poluição numa marina

Na verdade, perante uma Europa pós-guerra enfraquecida e uma União Soviética cada vez mais forte na teia económica mundial, Truman não estava a propor o combate político contra o imperialismo em sentido genérico, mas sim em sentido restrito – há que perguntar: «justiça e democracia» para quem? Evidentemente Truman tinha em mente os interesses norte-americanos, e não os interesses dos países do Terceiro Mundo. Não esqueçamos que estamos a falar do inventor da «Doutrina Truman», responsável pelo início da Guerra Fria e duma série de guerras avulsas, espalhadas pelo mundo e destinadas a estabelecer zonas influência norte-americana em oposição à influência soviética. Estamos a falar, dum lado e doutro da Cortina de Ferro, do envolvimento dos povos numa sujeição imperialista, rebaptizada de desenvolvimentista. Esta é a moderna etimologia do termo desenvolvimento. É impossível decifrar o seu significado político fora deste quadro etimológico.
Mas o conceito de desenvolvimento introduzido por Truman (development também tem origem latina e é construído a partir de dis-envelop) não nasce do nada. Vem de trás e traz consigo, na imaginação do cidadão comum, um cheirinho a progresso. Sucede que progresso significa etimologicamente ir adiante, avançar (com seus derivados ingresso e regresso). Assim, a escolha de palavras efectuada por Truman naquele momento histórico de 1945 não é inocente – é, pelo contrário, extremamente habilidosa e marcou a leitura dos acontecimentos políticos daí para cá.

Primeira conclusão a tirar: uma parte do charme político da palavra desenvolvimento resulta da ocultação duma faceta (o compromisso e a prisão num continente de interesses) em benefício de outra faceta adquirida por associação de ideias: o progresso (urra!) e a aparente libertação (liberdade? urra!) de velhos envolvimentos.

Quando os países imperialistas propõem desenvolvimento aos países da periferia, o que estão eles a propor? Uma vez que não se pode avançar às cegas, em que direcção segue a marcha? A resposta é simples: o modelo de desenvolvimento é fornecido pelos países do Centro, ou seja, pelos países tradicionalmente imperialistas. Nunca nenhum país do Centro se propôs modificar as suas estruturas, a sua cultura, a sua economia, para adoptar soluções encontradas por outros povos no seu envolvimento em equilíbrio com os recursos naturais e com os povos vizinhos. Isto diz tudo acerca do desenvolvimentismo.
Quando a senhora Merkel propõe desenvolvimento (ou o seu sinónimo reajustamento estrutural), propõe do mesmo passo a alteração das regras democráticas e institucionais dos países da Periferia – é ela que estabelece o modelo. Não propõe a adopção do salário mínimo (que não existe na Alemanha) ou do serviço nacional de solidariedade e saúde (idem). Na verdade, o carácter do modelo é indiferente aos países do Centro – o que lhes interessa de facto é assegurar o domínio económico e político.

Aumento da desigualdade
de rendimento disponível entre ricos e pobres
O charme político da ideia desenvolvimentista é de tal ordem, que talvez nunca nenhum outro conceito tenha conseguido alcançar tanta unanimidade. Todo espectro político, da direita à esquerda, aceitou a ideia de desenvolvimento; os governos de esquerda tornaram-se mesmo campeões das políticas de desenvolvimento. Esta cegueira permitiu deixar passar em branco a extinção de culturas e tribos inteiras (para se poder desenvolver as florestas onde habitavam ou para extrair pasta de papel na serra da Lousã), a exaustão de recursos naturais em benefício dos países do Centro, a proliferação de desastres ecológicos de difícil ou impossível recuperação, … Todos os projectos desenvolvimentistas, desde há quase 70 anos, desaguam num aumento das desigualdades económicas (e outras) entre populações e dentro duma mesma população. E no entanto os defensores do desenvolvimentismo continuam a não desconfiar da tramóia...

A maior ironia de tudo isto é que a ideia de desenvolvimento é um dos conceitos mais vazios de todos os tempos. Desenvolver tanto pode significar perfurar a terra para obter petróleo e poluir o ambiente até à esterilidade total, como perfurar a terra para obter água e alimentos. Tanto pode significar induzir o consumo massivo de produtos absolutamente desnecessários (à custa de enormes sofrimentos individuais e familiares), como construir escolas e postos de saúde pública, ou qualquer outra coisa que vise o bem-estar das populações. Pode ser tudo e pode ser nada. É um envelope feito de coisa nenhuma. A única constante que podemos encontrar nele é a vontade de dominação.

Índice de Gini, World CIA Report 2009


Sinónimos políticos
Reajustamento estrutural; ajustamento económico; ...


* «The old imperialism - exploitation for foreign profit - has no place in our plans. What we envisage is a program of development based on the concepts of democratic fair-dealing. All countries, including our own, will greatly benefit from a constructive program for the better use of the world's human and natural resources», http://www.trumanlibrary.org/calendar/viewpapers.php?pid=1030 - o fair dealing era um dos cavalos de batalha política de Truman

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