02/11/13

Nunca mais começa a guerra civil?

A quantidade de meios de produção, obras de arte, monumentos, hospitais, escolas e habitações destruídos pelas duas guerras mundiais – para não falar já no essencial, que são as vidas humanas perdidas – foi avassaladora. As imagens dessas perdas são de tal forma fortes, que ao olharmos para elas o coração nos dá um solavanco na caixa do peito. A destruição foi efectuada através de bombardeamentos e outros meios de destruição maciça; deixou para trás cidades inteiras arrasadas. Como é sabido, quando a taxa de lucro do capital cai drasticamente, a guerra é o seu remédio santo – depois das duas grandes guerras a «economia» (leia-se o lucro privado) entrou em espectacular recuperação. 


Mas os tempos mudam, e de que maneira! Para entendermos o que se passa hoje, teremos de analisar os acontecimentos à luz das profundas transformações operadas nos recursos e nos métodos de guerra nas últimas décadas.

 

Olhando à nossa volta, vemos que está em curso uma destruição sistemática dos meios de produção, dos monumentos, das obras de arte, dos hospitais, das escolas, dos recursos e espaços públicos. Seria interessante contabilizar o número de monumentos clássicos – comprados por valor inferior ao dos materiais preciosos e obras de arte que contêm e transformados em parques de estacionamento, centros comerciais, centros turísticos, ou simplesmente destruídos – e compará-lo com o número de destruições produzidas pela II Grande Guerra no espaço de dois anos. Esta contabilidade inclui hospitais, centros de saúde, escolas e outros bens aniquilados ou reconvertidos para darem lugar a fontes de lucro privado. E a tudo isto teríamos ainda de somar as crianças subnutridas, o aumento da mortalidade infantil, os idosos que falecem às carradas por falta de rendimentos e assistência, os doentes renais mortos pela implosão dos centros de hemodiálise, as pessoas que enlouquecem por não resistirem à violência em curso, as que ficam inválidas por falta de protecção ao trabalho e respectivas doenças, … enfim, a lista é inumerável. Creio que o resultado dessas contas seria surpreendente e nos faria ver com toda a clareza que estamos hoje em guerra e que esta guerra é tanto ou mais destrutiva do que a da década de 1940.


A guerra em curso assenta em moldes inteiramente novos; recorre a formas de destruição maciça que não nos são familiares – e por isso temos dificuldade em reconhecê-la como tal. E no entanto é uma guerra que ceifa vidas inocentes, como qualquer outra. É conduzida por forças internas e externas (na realidade forças sem pátria, porque o capital não tem pátria, constitui um mundo à parte do nosso). No plano interno, porém, tem um estado-maior cuja face visível dá pelo nome de Governo.

Nestas condições de chacina seria de esperar que a resistência se organizasse. Seria de esperar uma guerrilha, uma guerra civil, na qual os vários interesses em presença se organizassem militarmente e combatessem entre si. No entanto, coisa estranha, nada acontece – o bombardeamento prossegue, agrava-se de dia para dia com perda intensa de vidas e bens, e nem um só tiro é disparado em resposta.

A ausência de reacção não pode ser explicada por motivos cristãos – não se trata de dar voluntariamente a outra face, mas apenas de não oferecer reacção. Uma parte da inércia encontra explicação no facto de o bombardeamento ser silencioso e invisível – as bombas caem, destroem tudo à sua volta, mas o seu estrondo não se faz ouvir, os seus estilhaços não nos saltam aos olhos; a destruição assume de início um carácter misterioso. No entanto, ao fim de 5 anos de selvajaria bélica, tudo deveria ter-se tornado claro. Impõe-se portanto uma pergunta: porque não começa a guerra civil?


Os novos métodos de guerra e destruição

Uma das fontes de inércia perante as razias neoliberais reside nas condições subjectivas de formação de algo que de facto não existe: a resistência organizada. Não vou aqui desenvolver o tema, que tenho abordado de forma directa ou indirecta noutros artigos.

Outra fonte de inércia reside num factor ainda obscuro: face aos métodos e meios radicalmente novos utilizados pelo inimigo da população na guerra em curso, a resistência tem de inventar métodos e meios radicalmente novos. Responder à destruição de palácios do século XVI por esse Portugal fora com bombas e cocktails molotov é tão disparatado quanto ineficaz; assassinar o ministro da Educação quando ele vende (destrói) os edifícios das escolas poderia fazer bem à alma de uns quantos, mas em nada alteraria o nosso estado de derrota.


É certo que, apesar da sofisticação dos meios utilizados nesta guerra, é sempre necessário ter de reserva alguns meios clássicos, como trunfo negocial: um exército de carne e osso, disponível para ser mobilizado a qualquer instante. A existência desse exército de reserva, em termos estratégicos, é importante no desenrolar das hostilidades. Neste aspecto, os supostos (falsos) centros de resistência organizada (que seriam neste caso os movimentos sociais e os partidos à esquerda do PS) têm-se comportado de forma absurda, lançando disparatadamente para a rua os seus exércitos de reserva. Mas ao fazê-lo expõem aquilo que deveriam esconder: a dimensão ridícula e a fragilidade desses exércitos. Os estados-maiores dessa pseudo-resistência não possuem meios de arregimentação nem estratégias convincentes – que parvo miliciano se prestaria a perder a vida numa guerra sem estratégia? Comportam-se como aquelas pessoas que, em situação de conflito, gritam histericamente «agarrem-me, senão eu mato-o», mas na realidade não estão dispostos a mexer um dedo, não têm forças nem ânimo nem intenção para mexer um dedo, apenas pretendem causar comoção. E, ao fazê-lo, demonstram a sua ridícula fragilidade.

A frente de batalha diária, porém, está hoje noutro lugar. É urgente reinventarmos os nossos métodos de guerrilha, reinventarmos os nossos cocktails molotov. Assim, por exemplo, começou em França no passado 28 de Outubro uma campanha de produção de ruído nas comunicações: já que os serviços de segurança do estado e a espionagem internacional vigiam todas as nossas comunicações, neutralizar o inimigo pode tornar-se uma actividade lúdica: basta produzir uma quantidade de informação tão gigantesca, um ruído tal, que os instrumentos de vigilância fiquem bloqueados. A campanha francesa apela a que todos nós, nas conversas telefónicas, nas mensagens electrónicas, introduzamos em todas as frases palavras-chave, de forma a sobrecarregar o sistema de vigilância. Não custa nada, é divertido, não acarreta perigo pessoal: «encontramo-nos hoje às 11 no café com o objectivo estratégico de tomar umas bombas»; «vem daí ter comigo para fazermos um atentado ao pudor»; «temos de acabar hoje a nossa guerra santa [o trabalho em curso], senão vamos ter represálias», etc.


Uma vez que todos os passos do capital, mesmo os mais obscuros e indecifráveis, visam um objecto estratégico único (o lucro), é fácil encontrarmos centenas de situações em que podemos provar que, numa determinada frente, o inimigo deveria recuar, pois os custos podem exceder os benefícios. Se, por exemplo, as fachadas dos bancos e outros edifícios emblemáticos da actual ofensiva financeira forem semanalmente bombardeados com ovos ou balões cheios de tinta, o custo de limpeza das fachadas acabará por adquirir um peso importante na contabilidade dessas instituições (que, ao contrário de nós, sabem contar os tostões). Além disso, como sabem os estrategas desde há séculos, os pequenos ataques relâmpago desmoralizam o inimigo e dão ânimo à população resistente. Se todos os cofres de cobrança de estacionamento de rua forem sistematicamente vandalizados e inutilizados, devendo ser periodicamente substituídos, o prejuízo pode tornar-se maior que o lucro resultante da privatização do espaço público.


Muito mais eficaz e letal, porém, seria atacar o coração informático do sistema (os bancos, a base de dados das Finanças, etc.). Transtornar o sistema informático de um banco, impedi-lo de realizar operações e transferências financeiras durante 10 ou 20 minutos por semana, é o equivalente, no cenário de guerra financeira dos nossos dias, a dizimar vários batalhões, cidades e florestas com um bombardeamento de napalm. Esta arma, porém, tem um problema: ao contrário do que se passa na acção de sobrecarga dos sistemas de vigilância, esta iniciativa acarreta riscos pessoais – implica que os «soldados» com treino para essa guerrilha possuam uma consciência e um espírito de sacrifício equivalentes aos dos clássicos bombistas, que tinham de ter a consciência e a coragem de enfrentar as consequências dos seus actos; implica uma estrutura clandestina bem organizada e disciplinada, como nos tempos de resistência à ocupação ou ao fascismo; implica, nos bastidores e antecedentes de toda a iniciativa, que a população estudantil não tenha sido transformada numa horda de poltrões e colaboradores do inimigo.

Se não começarmos a combater neste terreno, seremos cilindrados sem apelo nem agravo. E se não construirmos um estado-maior capaz de organizar as nossas tropas com um sentido estratégico (a construção de uma sociedade nova, livre de exploradores e agiotas), então o sacrifício daqueles que se prestem a executar quaisquer manobras de guerrilha será totalmente vão – estaremos a criar um exército de mártires destinados à derrota final, e não uma história de heróis anónimos obreiros duma sociedade mais justa e feliz.

(corrigido em 3-11-2013 e em 4-11-2013)

4 comentários:

  1. 2 de Novembro de 2013: Carvalho da Silva afirma que o país precisa de cidadãos que estejam dispostos a sujar as mãos e a levar "porrada" na rua. (não me esqueci do 22 de Março de 2012 e do 24 de Novembro de 2011.)
    http://www.portugalnews.pt/portugal/ex-lder-da-cgtp-diz-que-um-dos-maiores-dramas-do-pas-ter-cavaco-silva-como-pr/

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  2. A brincar a brincar: Facebook - os polícias da sombra:
    http://manuelaraujo.org/www/Blogue/Entradas/2013/9/14_Facebook_-_os_policias_da_sombra.html

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  3. é só para dar ideias: http://www.leparisien.fr/bretagne/video-bretagne-un-nouveau-portique-ecotaxe-a-terre-03-11-2013-3282413.php

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  4. mais uma sugestão: pôr o lixo doméstico à porta dos bancos

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