14/11/13

Proponho uma revisão da estátua da república, tomando como modelo mariano a Brigitte Bardot


Cada vez mais ouço, ao passar por esquinas e portais, senhores de pasta e gravata enfiada em casacos de azul-escuro e de mau corte dizerem que «é preciso esquecer a Constituição». Referem-se, julgo eu, à suspensão de normas fundamentais em benefício de determinadas práticas favorecedoras de determinados interesses económicos (senão, porquê a pasta, o azul e o mau corte?).

Estas conversas mantidas à esquina do tempo, que imagino seja o da espera pelo boss ou pelo motorista, são em tudo semelhantes às dos bêbados que, em estado já neuronicamente diminuto, nas tascas dão lições técnicas ao treinador do seu clube de futebol favorito, não fazendo a mais pequena ideia do que estão a falar. Ficamos assim a saber que há muito não se ensina na escola uma coisa básica: o que é uma constituição e para que serve.

 

Para que serve?

A carta constitucional duma sociedade (também chamada pacto social) visa estabelecer um conjunto de regras mutuamente consentidas – por oposição à situação em que um manda e os outros amocham. Os objectivos duma constituição moderna (esqueçamos por agora as suas raízes históricas, ainda que a importância da história das coisas seja frequentemente de maior monta que tudo o mais) expressam-se por métodos razoavelmente simples:

  1. Definição dos direitos, liberdades e garantias individuais. Estes três pontos variam muito de caso para caso, consoante as épocas, as culturas e os projectos de sociedade – veja-se por exemplo a ideia, introduzida na constituição do Equador e para nós ainda completamente desconhecida, de Natureza como sujeito de direitos e garantias.
  2. Definição de um regime (= estruturação e articulação) de exercício dos poderes públicos.
  3. Formas de articulação entre os poderes económico, político e ideológico; garantias e limites desses poderes.
  4. Um conjunto de definições e garantias acessórias, consoante o regime, a cultura e o projecto de sociedade: protecção prioritária da propriedade privada (ou colectiva, se o projecto de sociedade for de sinal oposto); protecção prioritária ou exclusiva de uma determinada religião e moral (ou sua rigorosa separação do poder político, se o projecto de sociedade for de sinal oposto); etc.

«Esquecer» a constituição significa portanto esquecer os direitos, liberdades e garantias individuais. Significa também esquecer a fiscalização mútua dos órgãos de poder público, permitindo que a palavra e o poder de um só órgão ou de um governante (no limite, um monarca ou um ditador) valha mais do que a palavra da lei. Significa, por fim, abrir a porta ao julgamento moral e de intenções, acenar ao regresso das falanges e seitas moralizadoras e vigilantes.

Acontece que a maioria das pessoas – digo eu, assim à vista desarmada, mas posso estar enganado – assimila com enorme prontidão os recados da máquina de propaganda dominante, que é hoje não só milhentas vezes mais poderosa que a dos nossos avós, mas também muito mais exclusiva, reduzindo toda a oposição ao silêncio do sepulcro (daí a desnecessidade duma comissão de censura). Portanto não seria de espantar se a breve trecho uma quantidade apreciável de eleitores portugueses, senão mesmo a sua maioria, aceitasse esse pequeno «esquecimento» e pusesse para trás das costas a Constituição.

O que os enfatuados de azul-escuro malcortado não prevêem, no meio disto tudo, é que a assimilação generalizada do «esquecimento» da constituição acarreta umas quantas consequências potencialmente desagradáveis para eles próprios, os enfatuados:

  1. O desmantelamento de um estado de direito – acompanhado automaticamente de um reforço funcional de relações sociais baseadas numa hierarquia de cariz militarizado e autoritário – implica uma aflitiva precariedade dessa pequenina parcela de poder – pequena, mas a seus próprios olhos muito desejável – actualmente nas mãos dos enfatuados de azul-escuro malcortado.
  2. Passada uma geração (ou menos?), o cidadão comum terá de tal modo assimilado o princípio da não existência de direitos, liberdades e garantias individuais, que, posto eventualmente numa situação de grande aperto, não verá quaisquer razões éticas e morais para não dar um tiro na cabeça de quem lhe está a pisar os calos (e que, ai ai, assim de repente e à mão de semear, nunca serão os cardeais e os ministros, mas sim os enfatuados de azul-escuro malcortado). A justiça torna-se uma questão inteiramente subjectiva e individual, e cada um a exercerá em conformidade com as suas capacidades, com a suas necessidades particulares e pelos meios ao seu alcance. Nesta situação, os tubarões saem ainda mais beneficiados que dantes; mas o princípio da não existência de princípios está lá, à mão de semear de todo o cidadão.

Em suma, o que os enfatuados de azul-escuro malcortado não prevêem, é que, mais do que darem um tiro no pé, estão a dar um tiro na própria cabeça.

É o que dá não ter uma escola pública decente e um programa de ensino útil e feito à medida das nossas necessidades quotidianas – entre as quais avulta o jeito que dá perceber o que é uma constituição e o jeito que ela nos pode dar para não levarmos um tiro na cabeça.

Uma exumação inesperada

O ministro Aguiar Branco, provavelmente também ele, em coro com os treinadores de tasca, num elevado estado de etilização, parece ter entendido mal as recomendações do seu departamento de marketing e veio a público com uma conversa lapaliciana – mas que infelizmente corre o risco de ter alguma eficácia propagandística. Imagino eu que os seus marketeers lhe tenham dito: eh pá, usa as mesmíssimas palavras da oposição revolucionária, banaliza-as, e assim consegues virar o feitiço contra o feiticeiro. 
 
De facto, na entrevista dada há poucos dias, Aguiar Branco socorre-se duma belíssima lista de palavras chave – «Estado totalitário», «promiscuidades», «clientelas», «dependências», etc. –, tentando virar o bico ao prego. O problema é que, talvez enlevado pelo seu referido estado elevado, se deve ter metido a improvisar mais além dos conselhos dos seus marketeers e por fim, no ápice do seu entusiasmo, deitando mão à pá, vai de desenterrar uma calinada de Francisco Sá Carneiro, esse asinino candidato a efígie da democracia: «um Estado social que absorva a sociedade por completo é um Estado totalitário». Seguindo esta ordem de raciocínio brilhante, poderíamos dizer que um organismo que se mova inteiramente de motu próprio é um organismo vivo; ou que um balão cheio de ar quente é um balão que sobe no ar frio; e assim por diante. Ou até: «um Estado social que absorva apenas 10 famílias é um perigo insignificante para o capital, graças a deus».

O corpus de Sá Carneiro, exumado por Aguiar Branco, já suscitou a abertura de várias garrafas de champanhe nos blogs da extrema direita: «A possível ilegalização do PCP foi uma questão discutida em 1975. (…) Cabe ao Dr. Alberto João Jardim apresentar os factos novos que o levam a duvidar do juízo que então foi feito»; «[resposta:] Não é o partido comunista, mas é o partido que fica à sua esquerda, o Bloco de Esquerda=neo-comunistas (…) juntamente com uma parte do partido socialista»; «A ilegalidade das associações de índole fascista consagrada na Constituição é fruto de uma visão (de má consciência) política que saiu vencedora da Assembleia Constituinte em 75»; etc.

Tudo ponderado, propomos duas novas normas legais que poderiam ser sumariadas nestas duas frases singelas: «Se beber, não escreva nem faça declarações públicas»; e: «Não exume. Exumar pode matar».

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