Cada vez mais ouço, ao passar por esquinas e portais, senhores de pasta e gravata enfiada em casacos de azul-escuro e de mau corte dizerem que «é preciso esquecer a Constituição». Referem-se, julgo eu, à suspensão de normas fundamentais em benefício de determinadas práticas favorecedoras de determinados interesses económicos (senão, porquê a pasta, o azul e o mau corte?).
Estas conversas mantidas à esquina do tempo, que
imagino seja o da espera pelo boss
ou pelo motorista, são em tudo semelhantes às dos bêbados que,
em estado já neuronicamente
diminuto,
nas tascas dão lições técnicas ao treinador do seu clube de
futebol favorito, não fazendo
a mais pequena ideia do que estão a falar. Ficamos assim a saber que
há muito não se ensina na escola uma coisa básica: o que é uma
constituição e para que serve.
Para que serve?
A carta
constitucional duma sociedade (também chamada pacto social) visa
estabelecer um conjunto de regras mutuamente consentidas – por
oposição à situação em que um manda e os outros amocham. Os
objectivos
duma constituição moderna (esqueçamos por agora as
suas
raízes
históricas,
ainda que a importância da história das
coisas seja frequentemente de
maior monta que tudo o mais) expressam-se
por métodos razoavelmente simples:
- Definição dos direitos, liberdades e garantias individuais. Estes três pontos variam muito de caso para caso, consoante as épocas, as culturas e os projectos de sociedade – veja-se por exemplo a ideia, introduzida na constituição do Equador e para nós ainda completamente desconhecida, de Natureza como sujeito de direitos e garantias.
- Definição de um regime (= estruturação e articulação) de exercício dos poderes públicos.
- Formas de articulação entre os poderes económico, político e ideológico; garantias e limites desses poderes.
- Um conjunto de definições e garantias acessórias, consoante o regime, a cultura e o projecto de sociedade: protecção prioritária da propriedade privada (ou colectiva, se o projecto de sociedade for de sinal oposto); protecção prioritária ou exclusiva de uma determinada religião e moral (ou sua rigorosa separação do poder político, se o projecto de sociedade for de sinal oposto); etc.
«Esquecer»
a constituição significa portanto esquecer os direitos, liberdades
e garantias individuais.
Significa
também esquecer a fiscalização mútua dos órgãos de poder
público,
permitindo que a palavra e o poder de um só
órgão ou de um governante
(no limite, um monarca ou um ditador) valha mais do que a palavra
da lei. Significa, por fim, abrir a porta ao julgamento moral e de
intenções, acenar ao regresso das falanges
e seitas moralizadoras e vigilantes.
Acontece que a
maioria das pessoas – digo eu, assim à vista desarmada, mas posso
estar enganado – assimila com enorme prontidão os recados da
máquina de propaganda dominante,
que é hoje não só milhentas
vezes mais poderosa que a dos nossos avós, mas também muito mais
exclusiva,
reduzindo
toda a oposição ao silêncio
do sepulcro
(daí a desnecessidade duma comissão de censura).
Portanto não seria de espantar se a breve trecho
uma quantidade apreciável de eleitores portugueses, senão mesmo a
sua maioria, aceitasse esse pequeno «esquecimento» e pusesse para trás das costas a
Constituição.
O que os
enfatuados de
azul-escuro malcortado não prevêem,
no meio disto tudo, é que a assimilação generalizada
do «esquecimento» da constituição acarreta umas quantas
consequências potencialmente
desagradáveis para eles próprios, os enfatuados:
- O desmantelamento de um estado de direito – acompanhado automaticamente de um reforço funcional de relações sociais baseadas numa hierarquia de cariz militarizado e autoritário – implica uma aflitiva precariedade dessa pequenina parcela de poder – pequena, mas a seus próprios olhos muito desejável – actualmente nas mãos dos enfatuados de azul-escuro malcortado.
- Passada uma geração (ou menos?), o cidadão comum terá de tal modo assimilado o princípio da não existência de direitos, liberdades e garantias individuais, que, posto eventualmente numa situação de grande aperto, não verá quaisquer razões éticas e morais para não dar um tiro na cabeça de quem lhe está a pisar os calos (e que, ai ai, assim de repente e à mão de semear, nunca serão os cardeais e os ministros, mas sim os enfatuados de azul-escuro malcortado). A justiça torna-se uma questão inteiramente subjectiva e individual, e cada um a exercerá em conformidade com as suas capacidades, com a suas necessidades particulares e pelos meios ao seu alcance. Nesta situação, os tubarões saem ainda mais beneficiados que dantes; mas o princípio da não existência de princípios está lá, à mão de semear de todo o cidadão.
Em suma, o que os
enfatuados de azul-escuro malcortado não prevêem,
é que, mais do que darem um tiro no pé, estão a dar um tiro na
própria cabeça.
É o que dá não
ter uma escola pública decente e um programa de ensino útil e feito
à medida das nossas necessidades quotidianas – entre as quais
avulta
o jeito que dá perceber o que é uma constituição e o jeito que
ela nos pode dar para não
levarmos
um tiro na cabeça.
Uma exumação inesperada
O ministro Aguiar
Branco, provavelmente também ele, em coro com os treinadores de tasca,
num elevado estado
de etilização, parece ter entendido mal as recomendações do seu
departamento de marketing
e veio
a público com uma conversa lapaliciana
– mas que infelizmente corre o risco de ter alguma eficácia
propagandística. Imagino eu que os seus marketeers
lhe tenham dito: eh
pá, usa as mesmíssimas palavras da oposição revolucionária,
banaliza-as, e assim
consegues virar o feitiço
contra o feiticeiro.
De facto, na
entrevista dada há poucos dias, Aguiar Branco
socorre-se duma belíssima lista
de palavras chave – «Estado totalitário», «promiscuidades»,
«clientelas», «dependências», etc.
–, tentando virar o bico ao prego. O
problema é que, talvez
enlevado pelo seu referido estado elevado,
se deve ter metido a improvisar mais
além dos conselhos dos seus marketeers
e por fim, no
ápice do seu entusiasmo, deitando
mão à pá, vai de
desenterrar uma calinada de
Francisco Sá Carneiro, esse asinino
candidato
a efígie da democracia: «um Estado social que absorva a sociedade por
completo é um Estado totalitário». Seguindo esta ordem de
raciocínio brilhante, poderíamos dizer que um organismo que se mova
inteiramente de
motu próprio é um
organismo
vivo; ou que um balão cheio
de ar quente é um balão que sobe no ar frio; e assim por diante. Ou
até: «um Estado social que absorva apenas 10 famílias é um perigo
insignificante para o capital, graças a deus».
O corpus
de Sá Carneiro, exumado por
Aguiar Branco, já suscitou
a abertura de várias garrafas de champanhe nos
blogs da extrema direita: «A possível ilegalização do PCP foi
uma questão discutida em 1975. (…) Cabe ao Dr. Alberto João
Jardim apresentar os factos novos que o levam a duvidar do juízo que
então foi feito»; «[resposta:] Não é o partido comunista, mas é
o partido que fica à sua esquerda, o Bloco de
Esquerda=neo-comunistas (…) juntamente com uma parte do partido
socialista»; «A ilegalidade das associações de índole fascista
consagrada na Constituição é fruto de uma visão (de má
consciência) política que saiu vencedora da Assembleia Constituinte
em 75»; etc.
Tudo
ponderado, propomos duas novas normas legais que poderiam ser
sumariadas
nestas duas frases singelas: «Se beber, não escreva nem faça
declarações públicas»; e: «Não exume. Exumar pode matar».
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