21/11/13

Representações opusdeificadas da ideia de sexualidade

Passou uma semana de tiradas de bloguistas, articulistas e comentadores de esquerda sobre a sexualidade e a indústria do machismo, como se pode ver aqui (1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9) (obrigado pela listagem, Renato). Há muito alguns destes autores deveriam ter feito um pacto de silêncio sobre dois (pelo menos) territórios: a arte e a sexualidade. Poupar-se-iam assim a figuras tristes. Poupar-me-iam a mim ao pesadelo de os imaginar um dia com alguma espécie de poderes sobre o território artístico, moral e comportamental das nossas vidas. 

Sobre a ausência de pensamento em matéria de artes, já disse, numa série de 7 artigos. Sobre a presente questão da sexualidade e da exposição do corpo, a resposta é mais difícil. É difícil, em primeiro lugar, porque os textos em questão são na sua generalidade indecifráveis, retorcidos e incoerentes. De que raio estão eles a falar, ao certo? Por fim damo-nos conta de que a dificuldade provém do rebuscado rebuço com que expõem o tema – o rebuço de quem quer falar do assunto, zurzir nos pecadores, mas se vê enredado numa mortalha de vergonha que não permite dizer tudo às claras (creio não estar a fazer nenhum julgamento de intenção).

Na impossibilidade de extrair algum pensamento coerente desses arrazoados, escolho umas quantas citações avulsas.


Argumentos avulsos catados na blogosfera

«A evidência de que a indústria manipula mais o “modelo” da mulher do que do homem» [Leonor Guerra] ::::: A sério? Eh pá, mas então o capitalismo cometeu finalmente um lapso do caraças! É que as mulheres constituem um pouco mais de metade do mercado potencial disponível, e os homens a outra metade (desculpem se ficaram aqui de fora algumas identidades de género), e portanto, pasme-se, o capital, que, vamos admitir, usa mais a imagem da mulher como mercadoria do que a do homem, está a deitar fora uma oportunidade de negócio equivalente a mais de metade da humanidade! Se vocês acreditam mesmo nisto, então estamos desgraçados – jamais conseguiremos libertar os homens e as mulheres da servidão a que estão sujeitos.


«O efeito arrasador do capitalismo no imaginário (sobretudo o delas)» [Leonor Guerra] ::::: Ok, ok, mas então expliquem-me lá: a imaginação pictórica, por exemplo, também ela estará mais reprimida hoje do que na era pré-capitalista? E a imaginação romanesca? E a científica? O capitalismo arrasa só a imaginação relativa à sexualidade e ao corpo (tipo brinde especial e só até ao Natal), ou arrasa toda a imaginação à sua passagem? E então, nesse caso, sempre há machados que cortam a raiz ao pensamento? Eh pá, fico inconsolável.


«A reificação surgida da relação mercantil adquire uma significação decisiva, tanto pela evolução objectiva da sociedade como pela atitude dos homens em relação a ela, para a submissão da sua consciência às formas nas quais esta reificação se exprime» [Lukács, citado por Menor] ::::: Só uma escola alemã de pensamento (neste caso temperada com gulache húngaro) poderia produzir um intragável prato de esparguete mental tão inextricável como este. [A propósito, recordemos que o alemão é aquela língua que designa as auréolas da mama e respectivo mamilo pela palavra «verruga», entre outros mimos do mesmo jaez dedicados ao corpo, sendo este o único instrumento vocabular e conceptual de que dispõe para construir um pensamento sobre o assunto.] Depois de extraído todo o esparguete do prato, o molho que resta é o seguinte: o corpo foi transformado, na sociedade capitalista, em mercadoria; e a mercadoria, segundo os ensinamentos de São Marx, é objecto de fetichismo (eu sei que isto não vem a propósito de coisa nenhuma, mas a culpa não é minha). Meu, não era preciso tanto trabalho e um palavreado tão arrebicado! Na sociedade capitalista, tudo, sem excepção, foi transformado em mercadoria; ponto final, parágrafo. [A propósito, para quem não sabe desta horrenda poda, passo a explicar: «reificação» significa muito simplesmente «coisificação», no sentido de transformar ideias em mercadorias (coisas) capazes de produzirem lucro – por exemplo, fazer workshops pagos sobre como ser activista é uma reificação da utopia. Enfim, a altíssima escola de pensamento alemão de Frankfurt pode resumir-se assim: o sistema capitalista coisou esta merda toda de tal maneira, que agora cada vez que pensas uma coisa o capital pega nela e transforma-a num coiso que pode ser levado ao mercado e trocado por qualquer coisinha que vai parar aos bolsos do capitalista (desculpem, isto não está a soar muito bem, mas garanto que quando o pensei em alemão soava maravilhosamente).]


«O espectáculo é a outra face do dinheiro: o equivalente geral abstracto [???] de todas as mercadorias.» [Guy Debord, citado por Menor] ::::: Meu, spectaculum é, originalmente, «um meio para ver», porque spectare é «ver» e -culum é «meio», ou «instrumento». Portanto o espectáculo (clássico) tem originalmente duas faces que são o actor (aquele que age) e o espectador (aquele que vê passivamente). Que esta situação de voyeurismo tenha sido mercantilizada, isso é outra história. Que este tipo de ideias arrebicadas seja transformado em livros mercanciáveis a dinheiro, isso é uma reificação irritante, porque atentatória da inteligência e da dignidade do leitor. Que transformemos a exposição ou sedução exercida pelas pessoas nas redes sociais numa demonstração das teses desse cozinheiro de esparguete mental que dá pelo nome de Guy Debord, isso então é de dar um tiro na cabeça.


«A pornografia, via EUA, assim como a conduta das estrelas pop norte-americanas, tornaram-se os modelos globais de feminilidade, como todas as consequências para uma sexualidade integrada nas demais dimensões das relações pessoais, nomeadamente a verdade, o respeito, a tolerância, o companheirismo, a fidelidade, o projecto, a partilha.» [Pedro Mota] ::::: Isto é insuportável. Estamos a falar da pornografia como indústria ou da pornografia como objecto por direito próprio? Quanto ao resto: o respeito, ainda vá. A tolerância, espero que estejamos a falar da mesma coisa, e nesse caso vá. Mas a verdade? – a verdade para quem? Para mim ou para ti? E o projecto, a fidelidade, a partilha, o companheirismo? Eh pá, mas isto é uma aula da Opus Dei, ou quê? Agora a fidelidade voltou a ser um valor seguro, como os títulos da dívida? E o projecto? – isso é o quê, estamos a falar de quê? De contratos de casamento na versão modernaça e amancebada? Com gente desta, mal por mal, prefiro emigrar para o Irão, onde apesar de tudo é possível fazer um contrato de casamento a prazo (por exemplo por 24 horas, que é o que os actores de cinema iraniano costumam fazer para poderem tocar-se nas cenas amorosas sem sofrerem punição legal) e onde se pode aplicar o divórcio com efeitos imediatos por motivos sentimentais.

 
«Não existem empregados domésticos, pois não? [apenas mulheres a dias]» [Pduarte] ::::: Não existem, porque não são aceites pelos potenciais empregadores – e nisto falo por experiência própria (como candidato ao emprego, entenda-se). Tal como não existem em Portugal (mas existem noutros países) realizadores aceites como assistentes de realização; ninguém os aceita como assistentes, porque isso seria «rebaixá-los na sua dignidade de realizadores» (para quem não é do meio: juro que é verdade). Tal como não haveria carros exageradamente poluentes se ninguém os comprasse – uma vez que o capitalista entende melhor que o consumidor o valor do dinheiro e a alma do negócio, passaria imediatamente a fabricar outra coisa qualquer que rendesse lucro. Mas, claro está, mandar umas postas do alto de um blog não custa nada.


Um outro comentador afirma que nunca se olha ao espelho antes de sair de casa [perdão, perdi-lhe o link] ::::: Esta observação pretende, creio eu, demarcar-se orgulhosamente do supostamente horrível pecado de individualismo. Só há um problema: estamos perante o mundo de pernas para o ar. Se eu viver no campo, a natureza constitui o ambiente de beleza harmónica que tempera os meus dias, proporcionando-me factores de bem-estar e felicidade. Mas se eu viver na cidade, o meu cenário será exclusivamente feito de arquitectura e pessoas. Se qualquer um deles for horrendo, é-me garantida uma boa dose diária de infelicidade ainda por cima daquela que actua inconscientemente, sem se dar por ela. Portanto o comentador que se está marimbando para o seu próprio aspecto perante os outros, que dispensa a aspersão indiscriminada de charme, esse sim, está a cometer o pecado horrível da indiferença perante o bem-estar alheio é um campeão do individualismo (na aberrante acepção moral que querem emprestar ao termo).


A instalação da confusão mental

Aparentemente reina por aí uma confusão entre indústria da pornografia e exercício da pornografia. É como se disséssemos: uma vez que a indústria dos refrigerantes causa cancros e várias outras doenças, vamos proibir os refrigerantes. A partir de agora, mais ninguém bebe limonadas nem laranjadas – toma e vai-te curar. A estupidez desta confusão entre o bem potencial (a ideia de refresco) e a indústria de bens de consumo mostra que eu disse bem, quando disse «aparentemente». Porque o que de facto está aqui em causa é uma atitude moralista serôdia, envergonhada mas ainda assim digna da Opus Dei; uma atitude que apenas pretende, à custa de argumentos muito retorcidos e pedidos de empréstimo às palavras de Marx, diabolizar a pornografia e atirá-la para a fogueira inquisitorial. 
 
Anda aqui uma gentinha cinzenta, sem imaginação, pequenina, enfim, uns putos e umas putas [puto ou puta querem dizer, originalmente, pequenino], que acha que apenas existe uma explicação possível para que alguém decida exibir-se diante de outrem: o capitalismo e os modelos ideológicos dominantes. Que estes dois factores desempenham eventualmente um papel na equação, disso não há que duvidar. Mas acreditar que mostrar as mamas ou o rabo ou os peitorais ou simplesmente um vestido provocante deva partir necessariamente dessa causa, é... como dizer isto sem ser demasiado ofensivo?... enfim, um atestado de falta de imaginação. A tal imaginação que o capitalismo arrasou, será isso?

Boa parte dos opinadores de serviço neste debate parece não fazer a mais pequena ideia do que seja a imaginação, a sedução, a fantasia e o erotismo, embora não se coíbam de falar deles a rodos. Têm, porém, uma incapacidade tão grande de os produzir, que apenas lhes resta uma solução: comprá-los. Ora isso sai caro. Talvez por isso estejam tão indignados? No entanto não se coíbem de acusar os outros de reproduzirem os padrões de beleza, comportamento e sedução adquiridos no mercado capitalista. Lastimo ter de informar os mais distraídos que essa imitação dos modelos não se deve ao capitalismo, mas sim ao simples facto de a esmagadora maioria de nós todos não ser suficientemente genial para inventar modelos novos de sedução – por isso copiamos os modelos existentes. Criticar essa cópia é, acima de estúpido, cruel – tão cruel como cruel sou eu ao criticar a estupidez dos estúpidos. O que estes opinadores poderiam fazer de realmente útil, seria inventar novos modelos – mas isso exige imaginação, não é? E ausência de pudor vitoriano, não é? Vivem estes críticos num mundo minúsculo, que tomam por universal. Se nos déssemos ao trabalho de lhes explicar e exemplificar a que extremo pode chegar a fantasia, o erotismo e a sedução, provavelmente teriam de ser internados de urgência numa instituição psiquiátrica, porque a vastidão desse mundo que lhes seria revelado explodiria a pequena lura mental e sexual em que se acoitaram.



Uma colorida vulva pré-capitalista

Certa tribo tem uma característica genética peculiar: os lábios da vulva possuem uma coloração rubra muito viva, de tal forma que, quando as mulheres se colocam em certas posições, são berrantemente visíveis a quilómetros de distância. As mulheres das tribos vizinhas não tardaram a perceber que isto era uma vantagem competitiva imbatível e trataram de resolver o problema: foram à cata de pigmentos adequados, moeram-nos no almofariz e começaram a pintar os lábios grandes. Não sei como se encontra a situação hoje, mas é provável que algum industrial se tenha lembrado de produzir um bâton especial para esse efeito. Ou, mais provável ainda, que um industrial holandês tenha convencido umas e outras a usarem à volta da cintura capulanas e batiks «indonésios» fabricados na Holanda, em vez de andarem com a passarinha ao léu. Agora, o que eu gostava mesmo era que um dos bloguistas da nossa praça fosse lá tentar explicar-lhes a coisificação capitalista do desejo – mas duvido que algum ou alguma tenha a coragem de fazê-lo. Em compensação, coragem não lhes falta para, na nossa própria sociedade capitalista, zurzir de putas e putedos os e as que, vá-se lá saber porquê (não se fazem aqui julgamentos de intenção, e menos ainda em matéria de sexualidade), decidiram exibir-se e usar os respectivos corpos em público. Ah meus valentes bloguistas, cheguem-lhes com força, só se perdem as que caírem no chão! E, claro, não se preocupem, não tenham problemas de consciência – os e as que se exibem no Facebook são apenas coisas inertes, reificações negociáveis, «equivalentes gerais abstractos»; não têm sentimentos nem se ralam nada que lhes chamem putas e putos, escravos e escravas, burras e burros.


Sem comentários:

Enviar um comentário