Passou uma semana de tiradas de bloguistas,
articulistas e comentadores de esquerda sobre a sexualidade e a
indústria do machismo, como se pode ver aqui
(1,
2,
3,
4,
5,
6,
7,
8,
9)
(obrigado pela listagem, Renato).
Há muito alguns destes autores deveriam ter feito um pacto de
silêncio sobre dois (pelo menos) territórios: a arte
e a sexualidade. Poupar-se-iam assim a figuras tristes. Poupar-me-iam
a mim ao pesadelo de os imaginar um dia com alguma espécie
de poderes sobre o território artístico, moral e comportamental das
nossas vidas.
Sobre a ausência de pensamento em matéria de
artes, já
disse, numa
série de 7 artigos. Sobre a presente questão da sexualidade e
da exposição do corpo, a resposta é mais difícil. É difícil, em
primeiro lugar, porque os textos em questão são na sua generalidade
indecifráveis, retorcidos e incoerentes. De que raio estão eles a
falar, ao certo? Por fim damo-nos conta de que a dificuldade provém
do rebuscado rebuço com que expõem o tema – o rebuço de quem
quer falar do assunto, zurzir nos pecadores, mas se vê enredado numa
mortalha de vergonha que não permite dizer tudo às claras (creio
não estar a fazer nenhum julgamento de intenção).
Na impossibilidade de extrair algum pensamento
coerente desses arrazoados, escolho umas quantas citações
avulsas.
Argumentos avulsos catados na blogosfera
«A evidência de que a indústria manipula mais o
“modelo” da mulher do que do homem» [Leonor
Guerra] ::::: A sério? Eh pá, mas então o capitalismo cometeu
finalmente um lapso do caraças! É que as mulheres constituem um
pouco mais de metade do mercado potencial disponível, e os homens a
outra metade (desculpem se ficaram aqui de fora algumas identidades
de género), e portanto, pasme-se, o capital, que, vamos admitir,
usa mais a imagem da mulher como mercadoria do que a do homem, está
a deitar fora uma oportunidade de negócio equivalente a mais de
metade da humanidade! Se vocês acreditam mesmo nisto, então estamos
desgraçados – jamais conseguiremos libertar os homens e as
mulheres da servidão a que estão sujeitos.
«O efeito arrasador do capitalismo no imaginário
(sobretudo o delas)» [Leonor
Guerra] ::::: Ok, ok, mas então expliquem-me lá: a imaginação
pictórica, por exemplo, também ela estará mais reprimida hoje do
que na era pré-capitalista? E a imaginação romanesca? E a
científica? O capitalismo arrasa só a imaginação relativa à
sexualidade e ao corpo (tipo brinde especial e só até ao Natal), ou
arrasa toda a imaginação à sua passagem? E então, nesse caso,
sempre há machados que cortam a raiz ao pensamento? Eh pá, fico
inconsolável.
«A reificação surgida da relação mercantil
adquire uma significação decisiva, tanto pela evolução objectiva
da sociedade como pela atitude dos homens em relação a ela, para a
submissão da sua consciência às formas nas quais esta reificação
se exprime» [Lukács, citado por Menor]
::::: Só uma escola alemã de pensamento (neste caso temperada com
gulache húngaro) poderia produzir um intragável prato de esparguete
mental tão inextricável como este. [A propósito, recordemos que o
alemão é aquela língua que designa as auréolas da mama e
respectivo mamilo pela palavra «verruga», entre outros mimos do
mesmo jaez dedicados ao corpo, sendo este o único instrumento
vocabular e conceptual de que dispõe para construir um pensamento
sobre o assunto.] Depois de extraído todo o esparguete do prato, o
molho que resta é o seguinte: o corpo foi transformado, na sociedade
capitalista, em mercadoria; e a mercadoria, segundo os ensinamentos
de São Marx, é objecto de fetichismo (eu sei que isto não vem a
propósito de coisa nenhuma, mas a culpa não é minha). Meu, não
era preciso tanto trabalho e um palavreado tão arrebicado! Na
sociedade capitalista, tudo, sem excepção, foi transformado
em mercadoria; ponto final, parágrafo. [A propósito, para quem não
sabe desta horrenda poda, passo a explicar: «reificação»
significa muito simplesmente «coisificação», no sentido de
transformar ideias em mercadorias (coisas) capazes de produzirem
lucro – por exemplo, fazer workshops pagos sobre como ser
activista é uma reificação da utopia. Enfim, a altíssima escola
de pensamento alemão de Frankfurt pode resumir-se assim: o sistema
capitalista coisou esta merda toda de tal maneira, que agora cada vez
que pensas uma coisa o capital pega nela e transforma-a num coiso que
pode ser levado ao mercado e trocado por qualquer coisinha que vai
parar aos bolsos do capitalista (desculpem, isto não está a soar
muito bem, mas garanto que quando o pensei em alemão soava
maravilhosamente).]
«O espectáculo é a outra face do dinheiro: o
equivalente geral abstracto [???] de todas as mercadorias.» [Guy
Debord, citado por Menor]
::::: Meu, spectaculum é,
originalmente, «um meio para ver», porque spectare
é «ver» e -culum é
«meio»,
ou «instrumento».
Portanto o espectáculo (clássico)
tem
originalmente duas faces que
são o actor (aquele
que age) e o
espectador (aquele que vê
passivamente).
Que esta situação
de voyeurismo tenha sido mercantilizada,
isso é outra história. Que
este tipo de ideias arrebicadas seja transformado em livros
mercanciáveis a dinheiro, isso
é uma reificação irritante, porque atentatória da
inteligência e da dignidade do leitor. Que
transformemos a exposição ou sedução exercida pelas pessoas nas
redes sociais numa demonstração das teses desse cozinheiro de esparguete mental que dá pelo nome de Guy Debord, isso
então é de dar um tiro na cabeça.
«A pornografia,
via EUA, assim como a conduta das estrelas pop norte-americanas,
tornaram-se os modelos globais de feminilidade, como todas as
consequências para uma sexualidade integrada nas demais dimensões
das relações pessoais, nomeadamente a verdade, o respeito, a
tolerância, o companheirismo, a fidelidade, o projecto, a partilha.»
[Pedro
Mota] ::::: Isto é insuportável. Estamos a falar da pornografia como
indústria ou da pornografia como objecto por direito próprio?
Quanto
ao resto: o
respeito, ainda vá. A tolerância, espero que estejamos a falar da
mesma coisa, e nesse caso vá. Mas a verdade? – a verdade para
quem? Para mim ou para ti? E o projecto, a fidelidade, a partilha, o
companheirismo? Eh pá, mas isto é uma aula da Opus Dei, ou quê?
Agora a fidelidade voltou a ser um valor seguro, como os títulos da
dívida? E o projecto? – isso é o quê, estamos a falar de quê?
De contratos de casamento na versão modernaça e amancebada? Com
gente desta, mal por mal, prefiro emigrar para o Irão, onde apesar
de tudo é possível fazer um contrato de casamento a
prazo (por exemplo por 24
horas, que é o que os
actores de cinema iraniano costumam fazer para poderem tocar-se nas
cenas amorosas sem sofrerem punição legal)
e onde se pode aplicar
o divórcio com efeitos imediatos por motivos sentimentais.
«Não existem
empregados domésticos, pois não? [apenas
mulheres a dias]» [Pduarte]
::::: Não existem, porque não são aceites pelos potenciais
empregadores – e nisto falo por
experiência própria (como candidato ao emprego, entenda-se). Tal
como não existem em Portugal (mas existem noutros países)
realizadores aceites como assistentes de realização; ninguém
os aceita como assistentes,
porque isso seria «rebaixá-los
na sua dignidade de realizadores»
(para quem não é do meio:
juro que é verdade). Tal
como já não
haveria carros exageradamente poluentes se ninguém
os comprasse – uma vez que o capitalista entende melhor que o
consumidor o valor do dinheiro e a alma do negócio, passaria
imediatamente a fabricar
outra coisa qualquer que
rendesse lucro. Mas, claro
está, mandar umas postas do alto de um blog não custa nada.
Um outro
comentador afirma que nunca se olha ao
espelho antes de sair de casa [perdão, perdi-lhe o link] ::::: Esta observação pretende, creio eu,
demarcar-se
orgulhosamente do supostamente horrível pecado de individualismo. Só
há um problema: estamos perante o mundo de pernas para o ar. Se eu
viver no campo, a natureza constitui o ambiente de beleza harmónica
que tempera os meus dias, proporcionando-me factores de bem-estar e
felicidade. Mas se eu viver na cidade, o meu cenário será
exclusivamente feito de arquitectura e pessoas.
Se qualquer um deles for horrendo, é-me garantida uma boa
dose diária de
infelicidade –
ainda por cima daquela que actua inconscientemente, sem se dar por
ela. Portanto o comentador que se está marimbando para o seu próprio
aspecto perante os outros, que dispensa a aspersão indiscriminada de
charme, esse sim, está a cometer o pecado horrível da indiferença
perante o bem-estar alheio –
é um campeão do individualismo (na aberrante acepção moral que querem emprestar ao termo).
A instalação da confusão mental
Aparentemente
reina por aí uma confusão
entre indústria
da pornografia e
exercício da pornografia.
É como se disséssemos: uma vez que a indústria dos refrigerantes
causa cancros e várias outras doenças, vamos proibir os
refrigerantes. A partir de agora, mais ninguém bebe limonadas nem
laranjadas – toma e vai-te
curar. A estupidez desta
confusão entre o bem potencial (a ideia de refresco) e a indústria de bens de consumo
mostra que eu disse bem, quando disse «aparentemente». Porque o que
de facto está aqui em causa é uma atitude moralista serôdia,
envergonhada mas ainda assim digna da Opus Dei; uma
atitude que apenas pretende,
à custa de argumentos muito retorcidos e pedidos
de empréstimo às
palavras de Marx, diabolizar
a pornografia e atirá-la para a fogueira inquisitorial.
Anda aqui uma
gentinha cinzenta, sem imaginação, pequenina,
enfim, uns putos e umas putas [puto ou puta querem dizer,
originalmente, pequenino], que
acha que apenas existe uma explicação possível para que alguém
decida exibir-se diante de outrem:
o capitalismo e os modelos ideológicos dominantes. Que estes dois
factores desempenham eventualmente um papel na equação, disso não
há que duvidar. Mas acreditar que mostrar as mamas ou o rabo ou
os peitorais ou simplesmente
um vestido provocante deva
partir necessariamente dessa
causa, é... como dizer isto sem ser demasiado ofensivo?... enfim, um
atestado de falta de
imaginação. A tal imaginação que o capitalismo arrasou, será
isso?
Boa parte dos
opinadores de serviço neste debate parece não fazer a mais pequena ideia do
que seja a imaginação, a sedução, a fantasia e o erotismo, embora
não se coíbam de falar deles a
rodos. Têm, porém,
uma incapacidade tão grande de os produzir, que apenas lhes resta
uma
solução: comprá-los. Ora isso
sai caro. Talvez por isso estejam tão indignados? No
entanto não se coíbem de acusar os outros de reproduzirem os
padrões de beleza, comportamento e sedução adquiridos no mercado
capitalista. Lastimo ter de informar os mais distraídos que essa
imitação dos modelos não
se deve ao capitalismo, mas sim ao simples facto de a esmagadora
maioria de nós todos não ser suficientemente genial para inventar
modelos novos de sedução –
por isso copiamos os modelos existentes. Criticar essa cópia é,
acima de estúpido, cruel – tão cruel como cruel sou eu ao
criticar a estupidez dos estúpidos. O que estes opinadores poderiam
fazer de realmente útil, seria inventar novos modelos – mas isso
exige imaginação, não é? E ausência de pudor vitoriano, não é?
Vivem estes
críticos num mundo
minúsculo, que tomam por
universal.
Se nos
déssemos
ao trabalho de lhes explicar e exemplificar a que extremo
pode chegar a fantasia, o erotismo e a sedução, provavelmente
teriam de ser internados de urgência numa instituição
psiquiátrica, porque a vastidão desse mundo que
lhes seria revelado explodiria
a pequena lura mental e sexual em que se
acoitaram.
Uma colorida vulva pré-capitalista
Certa tribo tem uma característica genética peculiar: os lábios
da vulva possuem uma coloração rubra muito viva, de
tal forma que, quando as mulheres se colocam em certas posições, são
berrantemente visíveis a quilómetros de distância. As mulheres das
tribos vizinhas não tardaram
a perceber que isto era uma vantagem competitiva imbatível e
trataram de resolver o problema: foram à cata de pigmentos
adequados, moeram-nos no almofariz e começaram a pintar os lábios grandes. Não sei como se encontra a situação hoje, mas é provável que algum industrial se tenha lembrado de produzir um bâton
especial para esse efeito. Ou, mais provável ainda, que um
industrial holandês tenha convencido umas e outras a usarem à
volta da cintura capulanas e
batiks «indonésios»
fabricados
na Holanda, em vez de andarem com a passarinha ao léu. Agora, o que
eu gostava mesmo era que um dos bloguistas da nossa praça fosse lá
tentar explicar-lhes a coisificação capitalista do desejo – mas
duvido que algum ou alguma tenha a coragem de fazê-lo. Em
compensação, coragem não lhes falta para, na nossa própria
sociedade capitalista, zurzir de putas e putedos os e as que, vá-se
lá saber porquê (não se fazem aqui julgamentos de intenção, e
menos ainda em matéria de sexualidade), decidiram exibir-se e usar
os respectivos corpos em
público. Ah
meus valentes
bloguistas,
cheguem-lhes com força, só
se perdem as que caírem no chão!
E, claro, não se preocupem, não tenham problemas de consciência –
os e as que se exibem no
Facebook são apenas coisas
inertes, reificações negociáveis, «equivalentes
gerais
abstractos»; não
têm sentimentos nem se ralam nada que lhes chamem putas e putos,
escravos e escravas, burras e
burros.
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