15/03/14

70 ministeriáveis abicham à porta do PS

70 personalidades que abarcam a generalidade do espectro político português, de Adriano Moreira a Francisco Louçã, publicaram um «Manifesto pela Reestruturação da Dívida». 


O Manifesto apresenta uma linguagem e uma estrutura reconhecíveis à primeira vista por qualquer técnico de publicidade e marketing, segundo me disseram os ditos. Foi minuciosamente construído de forma a não acordar ideias e polémicas que, do ponto de vista dos subscritores, não convém suscitar no debate público e na cabeça das pessoas.

Ao reunir figurões políticos variados num encontro altamente improvável, o Manifesto cria a sensação de um amplo consenso nacional, em que, de Portugal inteiro, apenas ficariam de fora os membros do governo. A força desta confluência tem um efeito esmagador na opinião pública, cilindrando tudo o que seja opinião alternativa à reestruturação da dívida – ao ponto de fazer encolher os ombros de muito boa gente perante a estranheza de na cama dos subscritores se ver ex-ministros de Salazar embrulhados com altos dirigentes da suposta esquerda radical.

O Manifesto procura seduzir com argumentos especiosos: «O processo de reestruturação das dívidas públicas já foi lançado pela Comissão Europeia» (então para quê o manifesto?); «A primeira condição é o abaixamento significativo da taxa média de juro do stock da dívida»; «A segunda condição é a extensão das maturidades da dívida para 40 ou mais anos»; «[A terceira condição é] reestruturar, pelo menos, a dívida acima de 60% do PIB».



Lá vêm eles outra vez com a honra dos pobrezinhos

Começam os 70 notáveis por afirmar, logo no terceiro parágrafo da introdução, que, a bem da economia portuguesa, é necessária uma «reestruturação honrada e responsável da dívida». Tínhamos saudades disto: já há tempos não se ouvia o argumento da honradez para justificar o reembolso duma dívida paga por 10 milhões de portugueses, em proveito de uma dúzia de homens de negócios. 

Conclui-se que é honrado e fica bem pagarmos as dívidas do BPN, as rendas vitalícias das PPP, os custos dos hospitais privados (onde só tem acesso quem possa depositar um cheque-caução de 1000 a 3000 euros), do ensino privado (onde também só têm acesso alguns), das empresas privadas de tratamento de lixo que recebem uma renda autárquica vitalícia, os encargos permanentes resultantes da venda de património público onde estavam instalados serviços públicos (que logo a seguir têm de alugar novos edifícios às mesmas entidades que adquiriram os antigos), etc.


Haircut? Grécia? Alemanha? Não haverá limite para a vigarice política?

Não há um único tema abordado no Manifesto que não seja tratado com elevada desonestidade política e intelectual – o Manifesto acaba por tornar-se o bilhete de identidade duma associação de vigaristas. A título de exemplo, vejamos o que se diz de dois casos famosos de dívida: Grécia e Alemanha. (Da Islândia e do Equador, nem uma palavrinha. Alzheimer?)

No caso da Grécia, os 70 notáveis referem as medidas de reestruturação nos seguintes termos: «pecam por serem demasiado tardias e excessivamente curtas ou desequilibradas». Os 70 omitem assim a parte sumarenta dos factos: a reestruturação/haircut grega agravou as condições de pagamento a prazo, aumentou o montante total da dívida e o seu peso na economia, forneceu aos especuladores melhores condições na privatização do património colectivo do povo grego. 

No caso da dívida alemã pós-guerra, que citam como se fosse um farol, falam do perdão de uma parte da dívida, de renegociação de prazos, facilidades de pagamento e outras benesses concedidas à Alemanha, mas omitem o principal:
  1. as potências ocidentais tinham um particular interesse estratégico e industrial na Alemanha do pós-guerra (ao passo que Portugal pesa cerca de 1,2% no PIB europeu e mal se vê no mapa-múndi);
  2. a dívida da Alemanha foi paga em marcos; ora o marco alemão não valia um tostão furado no mercado cambial, de modo que quem recebia o reembolso da dívida alemã só tinha duas coisas a fazer: ou deitava para o lixo os marcos alemães, para não ocupar espaço em casa, ou os reencaminhava para a Alemanha, investindo em indústria exportável, cujos produtos seriam facilmente transformáveis em dólares, francos ou libras.

Ao omitir este «pequeno» pormenor, os 70 notáveis escondem atrás das costas o motor real do «milagre alemão»: uma parte da riqueza produzida pelos trabalhadores alemães foi canalizada para pagamento da dívida alemã, sim, mas em vez de sair do país, como acontece no caso português, regressou ao país e foi reinvestida na economia local, transformando-se em produto, trabalho e rendimento.


Duas palavras ausentes: ilegitimidade e repúdio

Os 70 notáveis fogem destas duas palavras como o diabo da cruz. Esta ausência esclarece bem as intenções e motivações do Manifesto.

Ao longo da semana que antecedeu a divulgação do Manifesto e da seguinte, pudemos voltar a ouvir e a ler que a anulação de partes ilegítimas da dívida é coisa de doidos varridos, que ninguém pode levar a sério. Este facto confirma a orquestração afinada de uma campanha que teria como expoente a fanfarra das 70 personalidades. 

Só há um pequeno problema: a história está repleta de cortes, perdões e suspensões unilaterais da dívida. O repúdio de dívidas (ilegítimas e outras) não é uma tontice de malucos esquerdistas. É uma prática corrente dos governos em todo o Mundo, a começar pelos EUA quando invadiram o Iraque (não lhes apeteceu pagar a dívida herdada de Saddam Hussein, portanto declararam-na ilegítima). Só entre 1970 e 2010 ocorreram pelo menos 140 cortes na dívida pública de numerosos países; isto dá uma média de 4,4 casos por ano [ver Christoph Trebesch e cadtm.org]. A massa total desses cortes (em valores de mercado, pelas minhas contas apressadas) ronda os 301.699 milhões de dólares. A percentagem de dívida cortada anda nalguns casos entre os 90% e os 97% (Albânia, Camarões, Honduras, Guiné, Iraque, Mauritânia, Moçambique, Níger, Nicarágua, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Uganda, Tanzânia, Bolívia, Bósnia-Herzegovina, Congo, Etiópia, Guiana, Nicarágua, Senegal, Togo, Iémene, Zâmbia); a percentagem média ronda os 40%.


Portugal?! Quem é esse gajo, pá?

Os 70 notáveis falam da recuperação da economia e do rendimento nacional, e do peso que a dívida tem no seu esmagamento, mas sempre tendo o cuidado de não mencionar outro «pequeno» pormenor: a percentagem do lucro das empresas aplicado em investimento interno, que, por exemplo, em 1980 era de cerca de 28% do PIB, em 2010 tinha caído para 14% (metade!) – e, tanto quanto sei, daí para cá não parou de cair. Se a riqueza produzida não é reinvestida, se desapareceu, se não anda por aí a circular nas ruas, para onde imaginam vocês que ela terá ido? 

Será que, graças às pomposas declarações de 70 notáveis, o rendimento das empresas e os juros da dívida passam a ficar por cá e a ser reinvestidos em proveito de todos? Permito-me duvidar. Entretanto, os 70 notáveis permitem-se fazer uma coisa absurda, mas que conseguem alcançar com grande elegância: falar de dívida, de honradez e de proveitos económicos «para Portugal». Reestruturem, meus amores, reestruturem, que a reestruturação é a panaceia universal que a tudo faz bem, até aumenta a potência sexual. A questão é esta: faz bem a quem?

A dívida é apenas uma das facetas de um programa muito mais vasto: a transferência sistemática do valor criado pelos trabalhadores, encaminhando o respectivo rendimento para outras paragens e outros bolsos. Mas este é um problema que os 70 magníficos parecem não estar minimamente interessados em resolver.


Façamos um pequeno exercício teórico (sem relação directa com a realidade, para não nos deixarmos indrominar pelo artifício dos números e estimativas postos à nossa disposição)

Imaginemos que pedimos um empréstimo de 1000 €, a 4,5% de juros (compostos, evidentemente), a pagar em 20 anuidades – ao fim de 20 períodos teremos pago um total de 2640 €, com um esforço médio por anuidade de 123 €. 

Imaginemos agora que o juro do mesmo empréstimo é reduzido para 2,5%, a pagar no dobro do tempo – ao fim de 40 períodos teremos pago 2718 €, com um esforço médio por anuidade de 68 €.

Aí está o que nos é proposto pelos 70 candidatos a ministros, secretários e conselheiros do futuro governo PS: pagarmos muito mais, pagarmos não só nós mas também comprometermos o futuro dos nossos filhos, tudo isto à pala de um engodo para tolos: passarmos a pagar menos de cada vez. O engodo, no entanto, tem vários «pequenos» amargos de boca:
  1. Podemos pagar mais devagarinho, lá isso podemos, mas continuamos a pagar uma dívida ilegítima, com a diferença que entretanto ela aumentou.
  2. Apesar de ficarmos a pagar prestações menores, nada garante, nem é demonstrado pelos 70 magníficos, que essa redução esteja ao alcance das nossas bolsas. Aliás, segundo vários economistas, essa dívida continua a não ser comportável pelo rendimento nacional, seja qual for o cenário de reestruturação proposto; portanto vai ser preciso pedir mais dinheiro emprestado para pagar os empréstimos, como vem acontecendo até aqui.
  3. Vamos lá então ter com os credores que estão a receber uma renda de 4,5% de juro, e propor-lhes que troquem essa renda por outra de 2,5%, com metade do rendimento mensal. Problema: nenhum credor no seu perfeito juízo aceitaria tal coisa, a não ser que fosse forçado. Ora, dado o esmerado trabalho de desmobilização cívica afanosamente desenvolvido por todos os partidos da esquerda portuguesa em relação a esta coisa da dívida, donde raio poderia vir essa força? De lado nenhum, evidentemente, o que reduz todo o paleio do Manifesto a isso mesmo: paleio.
  4. Parece muito bem pedir a redução dos juros da dívida para 2,5% ou menos. Problema: os juros do empréstimo do FMI já rondam esse valor, logo à partida.
  5. Quando vamos negociar uma coisa com alguém, não estamos propriamente no teatro, a fazer um monólogo de Gil Vicente. Há um interlocutor que contracena connosco e que também ele tem as suas deixas e condições a propor. Uma renegociação da dívida encetada sem previamente tomarmos posições de força, como pretendem os 70 notáveis, apenas pode servir um fim: alterar as condições actuais de pagamento da dívida, tornando-as mais favoráveis ao credor (como se viu no caso da Grécia). É o mesmo que uma velhinha em cadeira de rodas ser assaltada na rua por um junkie e tentar negociar uma redução na quantia do roubo, com a desculpa de que precisa de ficar com algum dinheiro para comprar mais remédios – é evidente que apenas estará a aguçar o apetite do junkie para os medicamentos que traz na bolsa, além do dinheiro.

E com isto esbarramos na nossa primeira conclusão de monta, por mais desconfortável que ela seja: os 70 notáveis estão a fazer o jogo dos credores – ou seja, estão a soldo. Assim se explicam as estranhas manobras de distanciação, nos últimos anos, de alguns destes personagens das direcções partidárias? Mas então, nesse caso, a soldo de quê? O mais ridículo disto tudo, pelo menos no caso das figuras de esquerda envolvidas, é estarem provavelmente a soldo não de uma nota de garantia ministeriável, mas duma simples promissória, muitíssimo duvidosa, de integração num ministério do PS.


1 comentário:

  1. È precisi entreter o pessoal danbo a sensção de que estão fazendo algo a NOSSO favor....porque ELES não fazem a "ponta dum corno"...
    mas.e vivem bem à custa to pagode....

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