12/03/14

Um empreendedor é um furão, já lá diz o dicionário

O programa «Prós e Contras», da RTP-1, costuma dividir os convidados em dois campos. Na última edição – dedicada à fuga dos portugueses para o estrangeiro, ainda que não se abram as águas do canal da Mancha – havia o campo dos que acham que há pró-razões para os trabalhadores fugirem de Portugal a sete pés e o campo dos que contra-acham que está tudo bem.

Os contras eram um «empreendedor» chamado Miguel Gonçalves (um descarado furão à vista desarmada) e um jurista chamado Rodrigo Adão da Fonseca com tiques neofascistas exibidos de forma bastante cândida. No campo oposto, Raquel Varela, historiadora, com uma capacidade argumentativa e um acervo de informação objectiva invulgares; e um empresário benévolo, Pedro Carmo Costa. É impossível não suspeitar que a configuração desta edição do programa tenha sido propositadamente desequilibrada em favor da defesa dos trabalhadores deste país e da destruição da imagem dos «empreendedores» furões.


Comecemos por notar que a palavra tradicional para quem monta negócios é «empresário» e que o termo «empreendedor» é uma manobra de novilíngua, uma tentativa de retirar a carga exploradora ligada à ideia do negócio. Seja como for, a manobra é inútil – ambas as palavras têm a mesma etimologia, prehendere, que é gesto da pata do gato ao caçar o rato. Temos portanto em português moderno dois significantes para o mesmo significado. A diferença reside na conotação: o empresário herda uma imagem tradicional de bem-estar, poder – primeiro económico, depois político – e seriedade ou malvadez, consoante as épocas e os contextos políticos; o empreendedor tem no dicionário a conotação de «furão», e com isto está tudo dito.

Na sua «inocência» um pouco burra, Miguel Gonçalves escolheu ser apresentado como empreendedor, enquanto os seus congéneres escolheram ser apresentados como empresários, e recorreu 347 vezes à palavra «oportunidade».

O debate decorreu como seria de esperar: o que já era claro continuou iluminado, ou seja, se centenas de milhar de pessoas se vão embora do país não é por terem tido a infelicidade de se enganarem no autocarro ou na estrada que tomaram, é porque não encontram aqui nem condições de vida nem razões de esperança. Adiante.

Já que estamos nisto, já que a equipa do «Prós e Contras» teve a ideia manifesta e posta em palco de conotar as dificuldades de construir uma vida em Portugal com uma grande parte do empresariado, aproveito para trazer à baila um dos últimos tabus da cultura contemporânea: as origens de grande parte dos «empreendedores». Este é um tabu que nem as figuras de esquerda, nem mesmo as que se dizem mais revolucionárias, ousam aflorar.  

As origens dos empreendedores são invariavelmente apresentadas na sua versão mitológica, sem qualquer relação com a realidade, como aconteceu neste «Prós e Contras» a propósito de Belmiro de Azevedo, insistentemente louvado pelos seus admiradores como um homem «vindo de origens humildes»; nas palavras dos admiradores, um homem que se veste mal e come pão com azeite e alho como qualquer ceifeira sem dinheiro para as proteínas; alguém que teria amealhado uma incalculável fortuna à custa de génio. 
 
Ora génio é, na origem, um espírito que acompanha e protege uma pessoa, acabando com a evolução semântica por designar o brilhantismo de espírito da própria pessoa. Sabemos que o génio produz maravilhosas obras de arte, invenções tecnológicas e descobertas científicas, mundivisões e novas ideias sociais, e em todos esses casos não é difícil compreender a relação entre um espírito genial e o seu produto. Mas que possa o génio produzir dinheiro a rodos e fabricar multimilionários, isso deixa-nos perplexos. Como é possível o espírito transformar-se em metal sonante? Será milagre divino, como aquele dos pães e do vinho?

Nenhuma pessoa no perfeito uso das suas capacidades mentais pode acreditar num conto de fadas segundo o qual alguém que trabalha por um ordenado de miséria, carregado de fome e sem paz de espírito, consegue amealhar, ao longo de uma minúscula fracção da sua vida, o necessário para se transformar num multimilionário, enquanto os seus antigos camaradas de miséria, por serem burros, supõe-se, continuam a passar fome e a chegar ao fim do mês não com um saldo positivo suficiente para comprar milhares de acções na Bolsa, mas com um saldo negativo que os arrastará para uma situação cada vez mais miserável, mais esfomeada e mais dependente. Aí está um caso em que não é necessário ser um génio para perceber que estamos perante uma história da carochinha.

Conhecer realmente, de facto, as origens da fortuna e da actividade de um empresário «de origens humildes» (ou seja, excluamos desde já todos os que herdaram, para não ofender ninguém desnecessariamente) é coisa muito rara e extremamente difícil
 
Por acaso, ao longo da minha vida, aconteceu-me tropeçar nalgumas provas escondidas sobre a origem de certos homens de negócio «de origens humildes», à la Belmiro (personagem cujas origens e história, aviso já, não conheço). Escusado seria dizer o que tinha de ser óbvio desde o início: são sempre histórias tenebrosas – umas mais, outras menos, variando da vigarice ao assassínio. 
 
À medida que se eleva a fortuna e o poder, estas figuras vão aprendendo a criar uma capa de respeitabilidade; mas nas primeiras fases é frequente o uso imoderado da linguagem e da brutalidade, umas vezes directa, outras vezes por intermédio de capangas e facínoras. Ainda assim, mesmo depois de atingida a fase de maior poder e sofisticação, quando em discreta situação de intimidade e longe dos olhares do mundo continuam a não se dar ao trabalho de disfarçar a ganância e a brutalidade extremas.

Por muito previsíveis que fossem estas origens em numerosos casos, uma coisa é certa: nada como dar de caras com a realidade dos factos para convencer o espírito. A título de exemplo sobre os métodos de construção das grandes fortunas, ver «Procès d'un homme examplaire» e «Cronologia: Jacques de Groote no FMI, no Banco Mundial, no Congo, no Ruanda, na República Checa e nos tribunais suíços», ambos de Eric Toussaint.

Que a comunicação social dominante, toda ela propriedade dos poderosos, alimente a mitologia, não espanta. O que é desconcertante, e que mereceria um estudo sério na área das ciências sociais e do comportamento, é que a generalidade das pessoas humildes alimente esta mitologia dos poderosos «vindos do nada».

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