Na euforia da celebração do 25 de Abril, todos
os «militares de Abril» são metidos no mesmo saco. Todos são
tratados por igual. Esta igualdade de tratamento esconde umas quantas
diferenças essenciais.
Nem todos os «militares do 25 de Abril»
estiveram sempre do mesmo lado da barricada; nem todos têm o mesmo
tipo de responsabilidades na evolução dos acontecimentos. Metê-los
a todos no mesmo saco por atacado é o tipo de lixiviação da
história que nos trouxe ao triste ponto de confusão mental onde
hoje nos encontramos.
Durante o PREC, em 1974-1975, uma parte das forças
armadas foi-se colocando, pouco a pouco, ao serviço das populações
– tendo por isso de virar costas ao patrão-Estado, visto que este
e aquelas se encontravam em oposição radical –, rompendo assim
com a razão de ser última do código militar.
No 25 de Novembro de 1975, um conjunto de oficiais
resolveu repor a «ordem» – isto é, repor as forças armadas, na
sua totalidade, ao serviço do Estado (de um certo tipo de Estado,
precisamente aquele que hoje conhecemos e padecemos). Aos oficiais,
sargentos e praças que se tinham posto ao serviço das populações
durante ano e meio, foi dada ordem de rendição e prisão. Esta
ordem veio de oficiais que, embora também eles tenham participado no
derrube da ditadura, não estavam dispostos a mudar de patrão. Esses
oficiais, mantendo-se fiéis a um certo tipo de Estado, mantiveram o
useiro desprezo pela população civil, para a qual olham (para todos
os efeitos práticos) como uma espécie de gentios que é preciso
manter na ordem.
Dadas as regras de comportamento e honra vigentes
dentro das forças armadas, os vencedores do 25 de Novembro trataram
os militares vencidos com cortesia e honra (pelo menos exteriormente)
e por isso todos podem sentar-se hoje à mesma mesa de comemorações,
todos podem frequentar a mesma associação, trocar opiniões e
livros entre si, pagar rodadas uns aos outros. Quanto à população
civil, como sempre, passou-se-lhe um atestado de menoridade mental e
foi metida na «ordem» – os caminhos do poder popular nascentes em
1975 foram atalhados pela força das armas e as opções que cada
«militar de Abril» tomou nesse instante (pelas populações ou pela
«ordem») não podem ser esquecidas.
O que esteve em causa no 25 de Novembro não foram
30 ou 40 oficiais e respectiva tropa; foi o destino de 10 milhões de
portugueses e de umas quantas dezenas de milhões de descendentes.
Que os militares «esqueçam» este pequeno pormenor, que a todo o
custo mantenham a distinção entre população militar e população
civil, não espanta, faz parte. Que nós outros façamos o mesmo,
isso não só espanta, como é até sinal de alguma indigência
mental.
Pedem-nos hoje que branqueemos o pacote inteiro
dos «militares de Abril»; que achemos muita graça a alguns dos
heróis do 25 de Novembro que agora se armam em pregadores contra o
regime que eles próprios colocaram no poder. Não podemos, sem
incorrer em cinismo, alinhar num tal branqueamento. Compreende-se que
os Vasco Lourenço deste mundo queiram enaltecer o seu próprio papel
nos acontecimentos; que lancem bravatas inconsequentes, gritando
«agarrem-me, senão vou-me a eles» (eles = os membros dos últimos
governos); que façam de conta que estão a defender a honra de toda
a caserna e os três vinténs de uma dama que já ninguém sabe quem
foi. Nós, entretanto, não podemos confundir os que em 1974-1975 se
colocaram ao serviço das populações, com os que se colocaram ao
serviço dos poderes económicos e políticos. Não podemos esquecer
nem branquear essas diferenças, sendo certo que os actuais poderes
económicos e políticos não diferem um milímetro dos que em Novembro de 1975
retomaram as rédeas do país à custa de um golpe militar, ainda que as suas políticas imediatas
pareçam formalmente diversas.