24/04/14

25 de Abril lava tudo mais branco

Na euforia da celebração do 25 de Abril, todos os «militares de Abril» são metidos no mesmo saco. Todos são tratados por igual. Esta igualdade de tratamento esconde umas quantas diferenças essenciais.


Nem todos os «militares do 25 de Abril» estiveram sempre do mesmo lado da barricada; nem todos têm o mesmo tipo de responsabilidades na evolução dos acontecimentos. Metê-los a todos no mesmo saco por atacado é o tipo de lixiviação da história que nos trouxe ao triste ponto de confusão mental onde hoje nos encontramos.
Durante o PREC, em 1974-1975, uma parte das forças armadas foi-se colocando, pouco a pouco, ao serviço das populações – tendo por isso de virar costas ao patrão-Estado, visto que este e aquelas se encontravam em oposição radical –, rompendo assim com a razão de ser última do código militar.
No 25 de Novembro de 1975, um conjunto de oficiais resolveu repor a «ordem» – isto é, repor as forças armadas, na sua totalidade, ao serviço do Estado (de um certo tipo de Estado, precisamente aquele que hoje conhecemos e padecemos). Aos oficiais, sargentos e praças que se tinham posto ao serviço das populações durante ano e meio, foi dada ordem de rendição e prisão. Esta ordem veio de oficiais que, embora também eles tenham participado no derrube da ditadura, não estavam dispostos a mudar de patrão. Esses oficiais, mantendo-se fiéis a um certo tipo de Estado, mantiveram o useiro desprezo pela população civil, para a qual olham (para todos os efeitos práticos) como uma espécie de gentios que é preciso manter na ordem.
Dadas as regras de comportamento e honra vigentes dentro das forças armadas, os vencedores do 25 de Novembro trataram os militares vencidos com cortesia e honra (pelo menos exteriormente) e por isso todos podem sentar-se hoje à mesma mesa de comemorações, todos podem frequentar a mesma associação, trocar opiniões e livros entre si, pagar rodadas uns aos outros. Quanto à população civil, como sempre, passou-se-lhe um atestado de menoridade mental e foi metida na «ordem» – os caminhos do poder popular nascentes em 1975 foram atalhados pela força das armas e as opções que cada «militar de Abril» tomou nesse instante (pelas populações ou pela «ordem») não podem ser esquecidas.
O que esteve em causa no 25 de Novembro não foram 30 ou 40 oficiais e respectiva tropa; foi o destino de 10 milhões de portugueses e de umas quantas dezenas de milhões de descendentes. Que os militares «esqueçam» este pequeno pormenor, que a todo o custo mantenham a distinção entre população militar e população civil, não espanta, faz parte. Que nós outros façamos o mesmo, isso não só espanta, como é até sinal de alguma indigência mental.
Pedem-nos hoje que branqueemos o pacote inteiro dos «militares de Abril»; que achemos muita graça a alguns dos heróis do 25 de Novembro que agora se armam em pregadores contra o regime que eles próprios colocaram no poder. Não podemos, sem incorrer em cinismo, alinhar num tal branqueamento. Compreende-se que os Vasco Lourenço deste mundo queiram enaltecer o seu próprio papel nos acontecimentos; que lancem bravatas inconsequentes, gritando «agarrem-me, senão vou-me a eles» (eles = os membros dos últimos governos); que façam de conta que estão a defender a honra de toda a caserna e os três vinténs de uma dama que já ninguém sabe quem foi. Nós, entretanto, não podemos confundir os que em 1974-1975 se colocaram ao serviço das populações, com os que se colocaram ao serviço dos poderes económicos e políticos. Não podemos esquecer nem branquear essas diferenças, sendo certo que os actuais poderes económicos e políticos não diferem um milímetro dos que em Novembro de 1975 retomaram as rédeas do país à custa de um golpe militar, ainda que as suas políticas imediatas pareçam formalmente diversas.

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