Como é típico de qualquer fé de
carácter primitivo, os sacerdotes da religião economicista sofrem
uma compulsão futurológica. Escrevem centenas de páginas
analisando os dados da realidade – uma realidade que é
tratada pelo áugure não com o carinho que merece toda a coisa
humana actual, mas sim com o desprendimento de quem analisa as borras
do chá ou as entranhas do frango –, para por fim chegarem a
um vaticínio que em regra terá tanto de aleatório como de
peremptório.
Na semana passada foi dado ao público
mais um destes augúrios: o estudo «Um Programa Sustentável para aReestruturação da Dívida Portuguesa», da autoria de Ricardo
Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos. Os
autores procuram fornecer um plano tecnicamente muito detalhado,
carregado de vaticínios, para fazer a reestruturação da dívida
(pública e privada), para fazer o que apelidam «saneamento da
banca» e para promover uma alteração da estrutura económica
portuguesa. O pormenor técnico desses planos ultrapassa largamente a
minha capacidade crítica e soa como um autêntico programa de
governação. Mas uma coisa é evidente, mesmo para um não iniciado
em economia: a viabilidade do plano depende inteiramente de duas
coisas: 1) a vontade política dos poderes públicos (presentes e
futuros) para alterarem radicalmente a actual estrutura económica
portuguesa, contra a vontade férrea dos grandes investidores
privados, esses mesmos que delinearam e impuseram a actual estrutura
económica do país; 2) a vontade dos bancos, depois de «saneados»,
de se portarem bem, deixarem de cometer os ilícitos, crimes e
esquemas que provocaram as sucessivas crises financeiras e de
«mercado» nos últimos anos, desistirem de apostar todo o dinheiro
que lhes vem parar às mãos no casino da bolsa, na dívida pública
e nos mercados de futuros, e em vez disso passarem a investir nos
sectores produtivos da economia.
Estes dois pressupostos, que
sustentam o estudo na sua totalidade, pedem dois milagres divinos a
que nenhum não-crente no seu perfeito juízo pode dar crédito. Por
mais belo que o plano possa parecer, o certo é que depende
inteiramente da intervenção divina, sem a qual fica reduzido a um
amontoado de tecnicismos inúteis, vazios de sentido, desligados da
realidade.