16/07/14

4 economistas à espera de 2 milagres

Duma maneira geral e com raras excepções, os estudos e intervenções dos economistas tendem a ser puros actos de fé. A força mística do economicismo no século XXI atinge extremos que provavelmente já não eram vistos desde épocas anteriores ao Iluminismo.

Como é típico de qualquer fé de carácter primitivo, os sacerdotes da religião economicista sofrem uma compulsão futurológica. Escrevem centenas de páginas analisando os dados da realidade – uma realidade que é tratada pelo áugure não com o carinho que merece toda a coisa humana actual, mas sim com o desprendimento de quem analisa as borras do chá ou as entranhas do frango –, para por fim chegarem a um vaticínio que em regra terá tanto de aleatório como de peremptório.

Na semana passada foi dado ao público mais um destes augúrios: o estudo «Um Programa Sustentável para aReestruturação da Dívida Portuguesa», da autoria de Ricardo Cabral, Francisco Louçã, Eugénia Pires e Pedro Nuno Santos. Os autores procuram fornecer um plano tecnicamente muito detalhado, carregado de vaticínios, para fazer a reestruturação da dívida (pública e privada), para fazer o que apelidam «saneamento da banca» e para promover uma alteração da estrutura económica portuguesa. O pormenor técnico desses planos ultrapassa largamente a minha capacidade crítica e soa como um autêntico programa de governação. Mas uma coisa é evidente, mesmo para um não iniciado em economia: a viabilidade do plano depende inteiramente de duas coisas: 1) a vontade política dos poderes públicos (presentes e futuros) para alterarem radicalmente a actual estrutura económica portuguesa, contra a vontade férrea dos grandes investidores privados, esses mesmos que delinearam e impuseram a actual estrutura económica do país; 2) a vontade dos bancos, depois de «saneados», de se portarem bem, deixarem de cometer os ilícitos, crimes e esquemas que provocaram as sucessivas crises financeiras e de «mercado» nos últimos anos, desistirem de apostar todo o dinheiro que lhes vem parar às mãos no casino da bolsa, na dívida pública e nos mercados de futuros, e em vez disso passarem a investir nos sectores produtivos da economia.

Estes dois pressupostos, que sustentam o estudo na sua totalidade, pedem dois milagres divinos a que nenhum não-crente no seu perfeito juízo pode dar crédito. Por mais belo que o plano possa parecer, o certo é que depende inteiramente da intervenção divina, sem a qual fica reduzido a um amontoado de tecnicismos inúteis, vazios de sentido, desligados da realidade.


Esclarecendo o conceito de reestruturação

Ao longo dos últimos três anos, sempre que os defensores da reestruturação da dívida se acharam em confronto público com os defensores da anulação da parte ilegítima, ilegal ou odiosa da dívida, lá aparecia alguém dando a entender, em tom conciliador, que talvez estivéssemos apenas perante uma diferença terminológica – «reestruturação vs anulação» seria um simples problema linguístico e não uma divergência de fundo. Acrescentando a isto uma inconfidência, diga-se que alguns dos defensores da reestruturação da dívida, quando encostados à parede nalgum corredor privado e fora das vistas do público, lá acabavam por dizer que também eles estavam de acordo com a necessidade de identificar e repudiar a parte ilegítima da dívida pública, mas que o povo português não estava preparado para ouvir tais coisas. Dando de barato o arrepiante paternalismo salazarento da frase, acontece que quem considera inadmissível a prática de julgamentos de intenção fica refém daquela declaração, que assim surte o efeito desejado: sustenta a dúvida e alimenta as tréguas.

Ora o referido estudo dos 4 economistas vem finalmente esclarecer todas as dúvidas linguísticas. Passo a citar: «As principais medidas deste programa são então: (i) a negociação para a redução do valor presente da dívida (reestruturação de dívida), através da alteração de juros e prazos; (ii) o saneamento dos passivos bancários, para garantir a solvabilidade e estabilidade da banca; e (iii) a modernização fiscal para pôr as contas do Estado em ordem e tornar sustentável, numa perspectiva macroeconómica, a recuperação económica e o crescimento económico futuro» (p. 3) (sublinhados meus). Na página anterior já tinha sido afirmado: «Este programa não solicita um “perdão” da dívida, antes leva a uma negociação com os credores defendendo os interesses de um Estado que recupera a sua soberania» (p. 2).

Como se vê, o conceito de reestruturação da dívida implica o pagamento integral da mesma, com um cambiante: o alívio dos seus encargos no instante presente, atirando-os para o colo de gerações futuras. Como sabemos, protelar os prazos de maturidade duma dívida alivia agora para pesar mais no futuro, visto que o negócio do agiota consiste precisamente em cobrar à hora a cedência de capitais. Ora o taxímetro está a contar; e, seguindo a proposta dos 4 economistas, vai contar por mais tempo ainda que o previsto; por isso eles propõem como solução uma redução das tarifas (isto é, dos juros).

Nos termos actuais e com os juros actuais a dívida é impagável, como reconhecem numerosos economistas (incluindo os 4 autores do estudo em apreço) e responsáveis nacionais e internacionais – mais tarde ou mais cedo este facto iria cair em cima dos credores. Fazer a reestruturação é pois um acto caritativo para os próprios credores. A questão está apenas em encontrar o tempo certo para apresentar e aplicar o plano; e também em instalá-lo num circo mediático capaz de entreter e convencer a maioria da população.

Milagre n.º 1: uma mudança radical de atitudes por parte do poder político

O plano dos 4 economistas assenta numa mudança de políticas e atitudes por parte dos poderes públicos. Antes de embandeirarmos em arco, porém, recordemos que não estamos a falar de uma «classe política» criada no mundo fantasioso dum álbum de banda desenhada, mas sim da «classe política» real temos, essa mesma que circula nos tapetes vermelhos entre os cargos da governação e a administração das empresas, que hoje é conselheira técnica do FMI, do Banco Mundial, do BCE ou de um banco privado e amanhã ocupa um gabinete ministerial ou camarário, que fornece favores a empreiteiros, empresas de reciclagem de lixo, grupos económicos da saúde privada, industriais a necessitarem de dinheiros públicos, etc. Este é o mundo em que vivemos, esta é a classe dirigente a que continuaremos sujeitos se não nos levantarmos e lutarmos contra ela; este é o rol de candidatos para este e para o próximo governo, seja ele qual for – lamento informar, mas não existe outra «classe política» de reserva na gaveta da secretária de nenhum economista. E esta é a pandilha organizada que os 4 economistas esperam que promulgue leis capazes de transformem a nossa economia actual, predominantemente rentista e turística, numa economia predominantemente produtiva, avessa à corrupção e aos favores quotidianos aos grandes capitais.

Milagre n.º 2: uma mudança radical de comportamentos por parte da banca e da finança


Os 4 economistas propõem uma complicada cruzada de «saneamento» bancário que visa recapitalizar a banca portuguesa, fortalecê-la, respeitá-la (recusa liminarmente encerramentos, fusões, nacionalizações ou socialização sob controle cidadão), livrá-la de problemas financeiros e contabilísticos, e pedir-lhe delicadamente que deixe de fazer operações financeiras disparatadas e arriscadas, para passar a investir nas actividades produtivas. Desconfio que nenhum deus é suficientemente poderoso para produzir um tal milagre sem recurso às armas.

O plano não propõe uma alteração drástica das regras impostas aos bancos, uma limitação das suas dimensões de forma a evitar o famoso risco too big to fail («demasiado grande para falir»), uma separação entre bancos comerciais e de investimento, entre seguradoras e grupos bancários, um travão nas promiscuidades entre holdings, … Nada disso, os 4 economistas esperam, muito simplesmente, que os bancos comecem a portar-se bem após o «saneamento» financeiro.

Uma vaga de investimentos produtivos, conforme propõem os autores, iria sem dúvida ajudar a equilibrar a nossa balança externa, mas atiraria os investidores para uma situação da qual eles fogem como o diabo da cruz: taxas de lucro baixas e lentas. Os investidores estão dispostos a praticar toda a espécie de crimes (incluindo branqueamento de dinheiros dos cartéis da droga, financiamento de genocídios, prática de toda a espécie de burlas financeiras) para obter taxas de lucro altas e instantâneas. Os detentores do capital financeiro habituaram-se à velocidade estonteante do carrossel especulativo dos juros da dívida e das aplicações financeiras mágicas, geradoras de gigantescos lucros (ou estrondosas falências) a muito curto prazo. Pedir-lhes delicadamente que desistam deste esquema e invistam em fábricas, serviços e outras coisas produtivas, como meninos bem comportados, é um acto de fé admirável, mas vão.

Brinde: a transformação das pedras em pão

Bem vistas as coisas, o plano apresentado pelos 4 economistas envolve um terceiro milagre: seria necessário que simples medidas economicistas e tecnocráticas se transformassem em medidas políticas e mudanças sociais. Ora a alteração da sociedade não pode ser obtida no domínio da economia em sentido estrito; apenas pode ser realizada no domínio do combate político. Transformar medidas economicistas em medidas políticas é um milagre fora do alcance dos deuses.

Os dados económicos e as medidas a eles dirigidas são matéria inerte. Não cabe aos deuses transformar um punhado de pedras ou de terra em pão. Apenas os trabalhadores podem fazer esse milagre, seja através do trabalho colectivo (no caso da produção agrícola e panificadora), seja através da acção cívica colectiva (no caso da reorientação da produção para alguma coisa útil). O que define a nossa sociedade e o que pode transformá-la são as relações sociais – logo, as pessoas em acção. Ora os trabalhadores, os movimentos sociais e a população em geral primam no estudo apresentado pelos 4 economistas por uma clamorosa ausência. Os autores tiveram o cuidado cirúrgico, sistemático e miudinho de arredarem das 70 páginas do seu estudo a única entidade capaz de produzir os milagres sociais e políticos sem os quais o estudo em apreço não passa de um amontoado de fórmulas tão intragáveis como as pedras de um baldio.

Para meter os bancos na ordem, por exemplo, seria necessário uma organização forte dos trabalhadores bancários e um movimento cívico capaz de exigir a socialização dos bancos sob controle directo dos trabalhadores e das populações organizadas (como está a acontecer em França, por exemplo). Seria necessário um posicionamento dos sindicatos baseado na vontade de transformar a sociedade, e não na vontade de colaborar na gestão da miséria.

Para alterar a estrutura económica do país seria necessário um fundo de investimentos público, controlado pelos trabalhadores, e não pelo mundo da finança.


Para resolver de facto, com efeitos duradouros, o problema do endividamento público seria necessário um forte movimento cívico de combate à dívida e de estudo das suas ilegitimidades, como está a acontecer em diversos países da Europa periférica, a começar pela Espanha aqui ao lado. No entanto, verifica-se este caso curioso: os autores do estudo em apreço, quando surgiu a oportunidade de lançar um movimento cívico desse tipo, em 2011, esforçaram-se quanto puderam por sufocá-lo – e conseguiram. De modo que agora vemo-los de boca aberta, a olhar para os céus, à espera de dois milagres. Azar: a única entidade capaz de produzir o milagre foi sufocada e enterrada pelas próprias mãos das tendências representadas pelos autores do estudo em apreço. Ora aí está um paradoxo insolúvel.

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