29/12/14

Crónica do fim de uma era


Na minha experiência de vida, empírica, não medida, particular, uma convicção se formou cedo: o grosso da população rege-se por tendências místicas e age segundo os mandamentos da fé, mais que da ciência. Vale o que vale esta convicção, e não tenciono eu esgrimi-la com quem quer que seja.

A fé, para que nos entendamos, localizo-a eu num domínio da mente que não encontra um único ponto de intercepção com o domínio da razão lógica. Estes dois domínios vivem separados por natureza; pretender esgrimir as razões da lógica contra as razões da fé (ou vice-versa) é uma impossibilidade material – seria o mesmo que tentar nadar mariposa num contentor de areia.

26/12/14

Quanto custam os muares do Jornal i?

Reunião de responsáveis editoriais do Jornal i,
poucos segundos depois de tomarem uma decisão histórica.
Repare-se no ar sereno, na plácida felicidade do dever cumprido

Os muares do Jornal i, depois de pensarem maduramente, tomaram esta decisão formidável: o assunto mais importante do dia – aquele que a todo o custo, doa a quem doer, deveria ser chamado à capa, tornar-se o rosto do jornal nesta gloriosa sexta-feira pós-natalícia de 2014, aquele que faria toda a diferença do ponto de vista informativo – é o custo de manutenção das cavalgaduras da GNR.
Segundo o Jornal i, os animais custariam 1,2 milhões de euros anuais.
Confesso que desconheço os restantes encantos do artigo, porque nem me passou pela cabeça gastar dinheiro para os ler. Aliás, não percebo nada das artes e custos de tratar e manter cavalos, por isso todos os argumentos que possam pôr-me à frente, por mais estúpidos e desonestos que sejam, papo-os eu a todos por bons – mais vale portanto não ler coisas vindas de um jornal a quem eu não confiaria nem um cão tinhoso.
De resto, para quê ler o artigo, se a declaração mais importante, a súmula do assunto, fica perfeitamente clara no acto da sua chamada à capa? Este acto constitui em si mesmo um autêntico manifesto. Os muares do Jornal i podiam ter destacado na primeira página os 125 milhões do orçamento para a habitação (estou a citar números de 2013; em 2002 eram 1000 milhões), ou seja, a decisão governamental de encerrar esta função do Estado e entregar os cidadãos à bicharada debaixo duma ponte, numa época em que as câmaras da Amadora, de Lisboa e de várias outras urbes arrasam as casas dos bairros pobres com buldozeres e polícia de intervenção carregada de armas de fogo, qual Iraque, para gáudio das imobiliárias e dos bancos.
Podiam ter perguntado quanto custam as agulhas, os pensos e a gaze em falta nos hospitais e centros de saúde.
Podiam ter perguntado por que razão o orçamento anual da função de Defesa e Soberania, nos últimos 12 anos, ronda os 2000 milhões, por vezes 3000 milhões de euros, se não estamos em guerra (e já se percebeu, graças ao Jornal i, que a culpa não é das cavalgaduras, que, coitadas, só papam 1,2 milhões). Podiam ter perguntado por que razão o orçamento da Economia duplicou no mesmo período, se não houve investimento público (antes pelo contrário), não foram criados postos de trabalho (antes pelo contrário) e a economia (pelo menos a dos trabalhadores) não pára de regredir.
Podiam ter perguntado quanto vai custar à população portuguesa a privatização da TAP e de outros transportes públicos.
Podiam ter perguntado que razão, que legitimidade têm os bancos para cobrar 2,1 e 7,6% de juros pelos empréstimos que fazem aos Estados da periferia europeia, quando esse dinheiro lhes é emprestado actualmente a eles, bancos, pelo Banco Central Europeu, com uma taxa de juro de 0,05%.
Nada disso – o que lhes pareceu definitivamente importante foram as cavalgaduras da GNR. Digamos que, como solidariedade entre irmãos, chega a ser comovente.
Ficamos sem saber quanto custam os muares da administração do Jornal i à empresa detentora do jornal. Paciência, talvez na próxima capa sejamos elucidados.

16/12/14

O perfume do voto


Sobre a assembleia cidadã promovida pela iniciativa Juntos Podemos, realizada em Lisboa a 13-14 de Dezembro de 2014, gostaria de deixar algumas notas parcelares.

1. Apenas estive presente numa das primeiras reuniões de lançamento da iniciativa. Desconheço assim uma grande parte do seu modus operandi. Estive no entanto presente numa das oficinas auto-organizadas (dívida) e em dois dos plenários da assembleia cidadã – nomeadamente no plenário final, onde se devia decidir: a) o carácter formal daquele colectivo; b) formas organizativas de acção (na base social) e debate.
Balanço: a participação de pessoas tão diversas, com percursos políticos de esquerda tão variados, pareceu-me só por si interessante e esperançosa.

2. Entendo o encanto que toda a gente parece sentir pelo Podemos espanhol. Compreendo (mas não acompanho) a atracção fatal exercida pelo tesão eleitoral do Podemos junto de sectores militantes portugueses maso-passivos.
Entendo que o fenómeno espanhol deve ser seguido com atenção, tirando-se dele as devidas lições. Pequeno problema: não basta tirar as lições «boas»; é preciso tirar também as lições «más». Quem ouviu os mesmos representantes do Podemos há 6 meses em Lisboa e os ouve agora, não pode deixar de ficar perplexo: a vertigem eleitoral parece estar a dar-lhes a volta ao miolo.

3. Tanto quanto me pude aperceber graças a conversas de bastidores indiscretamente captadas, as cautelosas propostas preparadas para o plenário final pelo núcleo organizador (visando manter a unidade na acção e na reflexão, julgo eu) foram contrariadas de surpresa, no plenário final, por um grupo que – usando da prerrogativa de, numa assembleia democrática, qualquer um poder apresentar propostas – injectou a proposta que cautelosamente tinha sido arredada: activar os passos necessários para avançar a toda a força para a formação de um partido com fins eleitorais.

4. Não pude fazer um inquérito alargado, sem o qual julgo não ser possível ter uma ideia clara dos acontecimentos e das potencialidades existentes; um inquérito breve a meia dúzia de pessoas e a minha leitura das intervenções e atitudes nos plenários leva-me a crer o seguinte: a esmagadora maioria das pessoas ali presentes não consegue distinguir entre um partido, uma frente unitária e um movimento.

5. Vejamos qual a pontuação necessária para criar um partido. Ponhamos em confronto a dualidade {cumprem-se as condições necessárias}/{não se cumprem as condições necessárias}; partamos da pontuação 0-0.