16/12/14

O perfume do voto


Sobre a assembleia cidadã promovida pela iniciativa Juntos Podemos, realizada em Lisboa a 13-14 de Dezembro de 2014, gostaria de deixar algumas notas parcelares.

1. Apenas estive presente numa das primeiras reuniões de lançamento da iniciativa. Desconheço assim uma grande parte do seu modus operandi. Estive no entanto presente numa das oficinas auto-organizadas (dívida) e em dois dos plenários da assembleia cidadã – nomeadamente no plenário final, onde se devia decidir: a) o carácter formal daquele colectivo; b) formas organizativas de acção (na base social) e debate.
Balanço: a participação de pessoas tão diversas, com percursos políticos de esquerda tão variados, pareceu-me só por si interessante e esperançosa.

2. Entendo o encanto que toda a gente parece sentir pelo Podemos espanhol. Compreendo (mas não acompanho) a atracção fatal exercida pelo tesão eleitoral do Podemos junto de sectores militantes portugueses maso-passivos.
Entendo que o fenómeno espanhol deve ser seguido com atenção, tirando-se dele as devidas lições. Pequeno problema: não basta tirar as lições «boas»; é preciso tirar também as lições «más». Quem ouviu os mesmos representantes do Podemos há 6 meses em Lisboa e os ouve agora, não pode deixar de ficar perplexo: a vertigem eleitoral parece estar a dar-lhes a volta ao miolo.

3. Tanto quanto me pude aperceber graças a conversas de bastidores indiscretamente captadas, as cautelosas propostas preparadas para o plenário final pelo núcleo organizador (visando manter a unidade na acção e na reflexão, julgo eu) foram contrariadas de surpresa, no plenário final, por um grupo que – usando da prerrogativa de, numa assembleia democrática, qualquer um poder apresentar propostas – injectou a proposta que cautelosamente tinha sido arredada: activar os passos necessários para avançar a toda a força para a formação de um partido com fins eleitorais.

4. Não pude fazer um inquérito alargado, sem o qual julgo não ser possível ter uma ideia clara dos acontecimentos e das potencialidades existentes; um inquérito breve a meia dúzia de pessoas e a minha leitura das intervenções e atitudes nos plenários leva-me a crer o seguinte: a esmagadora maioria das pessoas ali presentes não consegue distinguir entre um partido, uma frente unitária e um movimento.

5. Vejamos qual a pontuação necessária para criar um partido. Ponhamos em confronto a dualidade {cumprem-se as condições necessárias}/{não se cumprem as condições necessárias}; partamos da pontuação 0-0.

Entre muitas outras coisas, um partido é:

a) uma organização com ligações materiais a um conjunto de interesses e movimentos sociais – um vasto território social onde essa organização tem participação activa (atenção, não confundir «participação activa» com «controlo») e donde colhe experiência e reflexão de forma orgânica; pontuação: 0-1;
[nota: um aglomerado de pessoas com ideias sobre o rumo a dar a uma sociedade mas sem ligação orgânica directa a todos os pontos de ancoragem dessa sociedade não é um partido; pode ser uma tertúlia, uma capelinha de interesses, um grupo de pressão (vulgo lobby), um congresso académico pós-modernista, o directório de gestão de uma instituição financeira internacional, um governo, um sínodo de bispos, mas não é certamente um partido]

b) a expressão ideológica de um projecto social e político, decorrente duma praxis, aspecto este também conhecido por «programa político e estratégico claro»; pontuação: 0-2;

c) uma vontade organizada de tomar ou partilhar o poder instituído (factor absolutamente crucial para fazer a distinção entre um partido e outra coisa qualquer); aqui a pontuação é difícil, visto que não existiu consenso na assembleia (ficou gravemente partida ao meio assim que foi proposta a formação urgente de um partido), portanto vamos pontuar para ambos os lados: 1-3;

d) definição e aplicação prática de um conjunto de métodos e de princípios organizativos para a acção, para a formação, para o debate e para o estudo da realidade social; pontuação: 1-4;
[nota: estava prevista a criação de grupos de trabalho e formas orgânicas de ligação ao terreno social; porém, a introdução na assembleia da proposta de formação urgente de um partido lançou a confusão e esgotou o tempo útil]
[nota: tanto quanto sei, o único grupo formalmente constituído que saiu dali foi o encarregado de construir o site e a implementação e controle do debate público por via electrónica; é claro que este é um bastião crucial para quem quer construir uma imagem partidária e eleitoral (não confundir imagem com realidade); à saída, lembrei-me de ir inspeccionar o rol de voluntários para esse grupo de trabalho e presenciei o assalto ao bastião por parte dos proponentes da criação urgente de um partido … hehehe … eles sabem muito, eles sabem muito, eles sabem muito e não deixam nada]

Aproximamo-nos da goleada (1-4), por isso acho melhor ficarmos por aqui.
Convém, contudo, acrescentar algo mais. Considero aceitável, nalgumas circunstâncias, tirar proveito instrumental das armas do sistema de opressão para lutar contra o  próprio sistema. Ora, é possível um grupo de cidadãos constituir-se em partido e concorrer. Este processo burocrático não implica que esse grupo de cidadãos passe a considerar-se um partido, ou que se comporte como tal.
Mas o problema maior não está aí. A questão de fundo diz respeito à decisão sobre a participação eleitoral na fase actual. Quanto a mim, candidatarmo-nos às eleições sem estarmos bem ancorados no terreno social implica fertilizar o terreno da perversão política, agravando a ausência de controlo directo dos acontecimentos por parte da generalidade dos cidadãos.

A época mais revolucionária que tivemos em Portugal nos últimos 100 anos foi construída em 1974-1975 à custa da acção das bases sociais, da sua iniciativa, da sua inventividade autónoma e independente. O papel dos partidos e das eleições para as instituições do Estado burguês foi precisamente o de bloquear o processo revolucionário (do qual estamos muito longe agora, ainda por cima). Não estamos portanto a esgrimir aqui argumentos abstractos, hipóteses teóricas nunca aferidas no laboratório da história – pelo contrário, o que eu vos peço é que olhem para a realidade histórica e vejam como ela é. O que eu vos peço não é que tirem «conclusões». Não são necessárias conclusões. Basta olhar para o que é. Quando os movimentos sociais (de base, evidentemente) existem e são fortes, podem afirmar com orgulho e confiança: existimos, logo, aspiramos ao poder (autonomamente, sem necessidade de intermediários). Quando os partidos existem e são fortes, as populações deixam de usar a palavra «nós» e passam a falar de «eles» – e dito isto, que mais vos poderei dizer?

A maioria das pessoas presentes na assembleia cidadã do Juntos Podemos tem os olhos postos (julgo eu) no Podemos espanhol e na sua ânsia eleitoral. Os representantes do Podemos com quem falei neste fim de semana afirmam agora com renovada clareza que é possível mudar o mundo, mudar a sociedade, mobilizar os cidadãos, a partir de uma cadeira no parlamento.

Esta nova visão expressa pelos dirigentes do Podemos (e seus seguidores em terras lusas) implica uma inversão dos factores. Não é salutar que os partidos e seus eleitos impulsionem e dirijam as massas. Pelo contrário, é salutar que os movimentos sociais tenham pujança suficiente para forçarem mudanças estratégicas, tácticas e metodológicas no comportamento dos partidos. Aliás, mais ninguém poderá fazê-lo – não há cá messias.

Nunca, em toda a minha vida, tinha visto uma rota hiperbólica tão veloz como a do Podemos: em poucos dias, de nada a partido; em poucas semanas, de partido recém-nascido a partido com 5 lugares no parlamento europeu; em poucos meses, de zero a muitos por cento das intenções de voto para o parlamento espanhol; em menos de um ano, do radicalismo na defesa da autonomia activa das populações e da sua horizontalidade democrática, à concessão bem comportada em vários domínios cruciais da sociedade, a começar pela dívida pública. Espantoso. É uma lição importante a fixar, sem dúvida: o perfume do voto.

Sem comentários:

Enviar um comentário