20/02/15

O espectáculo do terrorismo de estado

Ontem, 19-02-2015, o Governo aprovou nova legislação sobre terrorismo. É ainda cedo para analisar as consequências desta decisão em toda a sua extensão, porque a interpretação da nova lei depende de alterações a serem introduzidas noutras 8 leis, incluindo o Código de Processo Penal, que têm de passar pela Assembleia da República. Uma das ameaças pendentes é a de que o acesso a páginas electrónicas de terroristas constitui, em si mesmo, um acto terrorista (pergunto-me como irão os jornalistas desenrascar-se nesta situação – a nova lei promete configurar um atentado genérico ao direito à informação).
Entretanto, as leis respeitantes a terrorismo, mesmo no seu estado actual, já nos dão pano para mangas. A legislação portuguesa, como de costume, papagueia obedientemente as indicações do Conselho Europeu. No caso vertente, a Decisão-Quadro 2008/919/JAI define o terrorismo como actos intencionais praticados com o objectivo de:
  • intimidar gravemente uma população, ou
  • constranger indevidamente os poderes públicos, ou uma organização internacional, a praticar ou a abster-se de praticar qualquer acto, ou
  • desestabilizar gravemente ou destruir as estruturas fundamentais políticas, constitucionais, económicas ou sociais de um país, ou de uma organização internacional.
Segue-se uma lista das formas de acção que configuram estes objectivos, dos quais destaco: as ofensas contra a vida de uma pessoa que possam causar a morte; as ofensas graves à integridade física de uma pessoa; o rapto ou a tomada de reféns; a destruição maciça de instalações governamentais ou públicas, sistemas de transporte, infra-estruturas, locais públicos, provocação de prejuízos económicos consideráveis.
A actual lei portuguesa contra o terrorismo subscreve estas definições e acrescenta como crime de terrorismo:
  • Crime contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas;
  • Actos que destruam ou que impossibilitem o funcionamento ou desviem dos seus fins normais, (...) instalações de serviços públicos ou destinadas ao abastecimento e satisfação de necessidades vitais da população.
Estas definições, espantosamente, dir-se-iam feitas a pensar na criminalização dos governos e das políticas de austeridade, classificando-os como actos de terrorismo.



A título de exemplo, a PSP e a Câmara Municipal da Amadora surgem, sem sombra de dúvida, como organizações terroristas: mataram e ofenderam fisicamente inúmeras pessoas nos últimos 4 anos; prejudicaram o direito à habitação, a liberdade de expressão e manifestação e vários outros direitos e garantias constitucionais e europeias, bem como diversas funções sociais do Estado português.
O comando da PSP é igualmente culpado de terrorismo, uma vez que coloca em diversas esquadras de bairros periféricos e multi-étnicos um número muito avultado de agentes com comportamentos e ideias confessamente racistas e xenófobos, que não se coíbem de ostentar símbolos nazis e de perseguir (com ameaças e sevícias físicas) os activistas defensores dos direitos humanos e da liberdade de expressão e organização com fins cívicos; de os fazer reféns dentro da esquadra da polícia e espancá-los e aplicar-lhes sevícias tais, que as vítimas têm vergonha de as descrever.
Estes actos atentam contra uma quantidade de leis e funções do Estado difíceis de listar em toda a sua extensão. Destaco apenas a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia: «Todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua integridade física e mental»; «Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes»; «Todas as pessoas têm direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião»; «Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber e de transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos (...)»; «Todas as pessoas têm direito à liberdade de reunião pacífica e à liberdade de associação a todos os níveis».
Também os actos administrativos do Governo executados com o fim de asfixiarem financeiramente e tornarem inoperantes os hospitais, escolas e outros serviços públicos, deviam ser julgados como crimes de terrorismo, à face destas leis. Pode dizer-se, sem receio de exagero ou retórica, que o Governo português é um dos campeões do terrorismo. Mais uma vez, fico-me pela Carta europeia de direitos:
  • «As artes e a investigação científica são livres. É respeitada a liberdade académica»
  • «Todas as pessoas têm direito à educação, bem como ao acesso à formação profissional e contínua. Este direito inclui a possibilidade de frequentar gratuitamente o ensino obrigatório.»
  • «Todas as pessoas têm o direito de trabalhar e de exercer uma profissão livremente escolhida ou aceite.»
  • «A União reconhece e respeita o direito das pessoas idosas a uma existência condigna e independente e à sua participação na vida social e cultural.»
  • «Os trabalhadores e as entidades patronais, ou as respetivas organizações, têm (...) o direito de negociar e de celebrar convenções colectivas (...)»
  • «Todas as pessoas têm o direito de aceder à prevenção em matéria de saúde e de beneficiar de cuidados médicos (...)»



A sociedade do espectáculo e o momento da verdade


A «sociedade do espectáculo» é um conceito bastante complexo, difícil de explicar em meia dúzia de linhas; e não sendo tão conhecido do público como outros textos fundamentais das correntes emancipadoras e revolucionárias, a sua explicação teria de ser bastante longa. Limito-me por isso a referir que, na sua essência, a teoria da sociedade do espectáculo, de Guy Debord, rima com a teoria da alienação, de Karl Marx.

Há, contudo, um corolário da teoria da «sociedade do espectáculo» que é fácil de compreender e rápido de explicitar: na sociedade capitalista contemporânea, a verdade é um momento da mentira.

Esta afirmação pode parecer poética, ou abstracta, mas na realidade é bastante rigorosa e terra-a-terra. Vejamos um exemplo simples: as eleições democráticas. As eleições são, sem dúvida, um momento de verdade – por regra não encontramos chapeladas nem falsificação das urnas e dos resultados. Mas elas fazem parte dum espectáculo, duma ficção montada, na qual o espectador não deve tomar parte, limitando-se a assistir passivamente. As eleições democráticas fazem parte do gigantesco espectáculo da democracia, da governação em «nome do povo». Como é normal em qualquer espectáculo, também no espectáculo da democracia tudo é falso, tudo é encenado, tudo é ficção – ainda que façam parte da sua dialéctica alguns momentos de verdade.

À sociedade do espectáculo, feita de ficções e espectadores passivos, Debord contrapõe o projecto de um mundo sem espectadores, em que todos são participantes e decidem em cada momento o seu próprio guião de acção.



As leis portuguesas e europeias contra o terrorismo são mais um ponto alto da sociedade do espectáculo. Ainda que haja de facto, aqui e ali, bombas no metro e atentados pessoais lançados por sociopatas (momentos de verdade da mentira), o grande objectivo do espectáculo consiste precisamente em dar cobertura ao terrorismo de Estado. Este terrorismo, na sua versão actual, tem mesmo uma ideologia, um manifesto proclamado: as políticas de austeridade.



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