14/02/15

Os observadores sociopatas

Um artigo recente de Mário Amorim Lopes deixou-me arrepiado. Este sociopata, responsável pela formação de jovens numa universidade do Porto (brrr! que medo!), escreveu uma diatribe contra a prestação de cuidados de saúde e de medicamentos para a hepatite C que começa assim:
Frases 1-2: [abre com uma pérola que deixo para mais tarde].
Frases 3-4: «O problema é que os cuidados de saúde têm um custo» – brilhante. É como dizer que a água é molhada. E eu que pensava que os cuidados de saúde caíam das árvores, como as maçãs.
Frases 5-6: «E sendo os recursos escassos (…)» – não há dúvida, a água é mesmo molhada. Para quem não sabia que a água é molhada, passo a explicar: os bens escassos são sobretudo aqueles que exigem trabalho colectivo. Assim: o ar que respiramos não é um bem escasso – não é raro, não precisamos que a sociedade o produza, nem precisamos de o produzir nós mesmos. Respira-se e já está; é entrar, senhorias, e consumir à vossa vontade. Mas se precisarmos de ir fazer pesca submarina, a coisa fia mais fino: o ar engarrafado não nasce por aí aos cachos na natureza; é preciso uma bela quantidade de trabalho (oh céus! outro recurso escasso!) para conseguir produzir uma botija de oxigénio. Resulta que a botija de oxigénio é um bem escasso e por isso vai parar à mesma prateleira onde a besta do Amorim Lopes colocou o serviço nacional de saúde e talvez também os jogadores de futebol e os submarinos, que são igualmente escassos e custam uma pipa de massa muito superior à da cura para a hepatite C.
Frases 7-8: «para salvarmos uma vida, quantas teremos de sacrificar?» – pois é, isto estava a correr tão bem … era fácil de mais! Finalmente um osso duro de roer. Donde raio terá caído o pressuposto de que, para salvar uma vida, temos de sacrificar outras (caso que, a confirmar-se, nos coloca a pergunta seguinte: quantas?). É o diabo – aquilo que parecia um texto fácil de fazer, limpinho, torna-se de repente um belo berbicacho. E como «quantas?» é um quantificador, vê-se logo que estamos a precisar aqui de um economista (o que já por si é tão mau como precisar de um verdugo) e de preferência uma besta dum economista: talvez o Amorim Lopes, por exemplo?
Se «quantas?» fosse um qualificador, precisaríamos, sei lá … de um filósofo? Mas não, chiça, logo havia de ser um quantificador! E da saúde, ainda por cima! Safa, que este Amorim é mesmo habilidoso – já conseguiu arranjar um tacho.


Chegado a este ponto do seu artigo, o sociopata Amorim coça a cabeça e dá-se conta de que ainda agora escreveu o primeiro parágrafo (4,2 pequeninas linhas!) e já está posto perante um imperativo: tudo quanto escrever daqui para a frente só pode ter um fim: provar a bondade da mirambolante elipse lógica contida no primeiro parágrafo. É o que faz não ter um filósofo à mão de semear, ou até um simples perito em lógica – uma pessoa começa a escrever um inocente artigo e acha-se de chofre num aperto terrível.

Na verdade, o tom já tinha sido dado logo na frase de abertura: «[quanto vale uma vida?] diremos todos que não tem preço». Aparentemente é mais uma lapalissada, uma água molhada, um ponto assente do bom senso comum, que «todos» aprendemos com os nossos avós, ou bisavós.
Mas eu estou a fazer batota. A besta do Amorim Lopes conseguiu criar uma pérola de retórica literária, graças ao simples acrescento de um modificador de modo e circunstância. A frase original é esta: «Sentimentalmente, diremos todos que não tem preço». Genial, não acham? Neste interim histórico de frieza e desprezo por tudo quanto seja humano, enfim, nesta era neoliberal, o subtil acrescento do conceito de «sentimento» deita a perder o senso comum. O velho rifão «a vida não tem preço» é arrastado para a lama do ridículo graças ao «sentimento». Estivéssemos nós numa era romântica, ou mesmo realista, ou mesmo nos anos 60, esta pérola literária teria o efeito oposto: acirrar-nos-ia a salvarmos tantas vidas quantas pudéssemos, sem olhar a custos. Mas, nos tempos que correm, a insidiosa sugestão do sentimento arrasa o rifão.

Mais uma vez, é produzida uma presunção sem prova: porquê «sentimentalmente»? A que propósito? Por alma de quem? Com nenhum outro propósito que não seja o de lançar uma dúvida modal sobre o valor inestimável duma vida.

Como disse, todo o restante artigo da cavalgadura Amorim Lopes se desdobra em esforços, fórmulas e teorias para provar a necessidade de quantificar a vida de cada um e assim salvar o parágrafo de entrada – morram os hepatitosos, mas ao menos salve-se o parágrafo! E é neste afã que o grunho Lopes, para melhor ver a salgalhada lógica em que atolou, se vê obrigado a desviar uma nesga do véu que esconde o seu olhar profundamente nazi, pois a dado passo já não é possível demonstrar uma hierarquia quantificadora das vidas, sem pressupor a existência de vidas de primeira e vidas de segunda categoria. E embora o autor se esforce por disfarçar, é traído pelos seus comentadores. O pasquim onde ele escreve (o Observador) oferece a grande vantagem de ser acolitado diariamente por uma falange de nazis que, com seus comentários, vão construindo as notas de pé de página que os próprios autores não se atreveram a desvendar. Neste caso concreto, uma ou várias dessas notas deixam claro o raciocínio subjacente ao artigo: os doentes de hepatite C são uns viciosos, uns drogados, uns homossexuais devassos, que deram cabo das suas próprias vidas e agora querem ser salvos pela comunidade; morram! e que morram com dores lancinantes, para gáudio dos sãos.

É certo, cientificamente certo (mas quem quer saber da ciência, quando se tem um economista a jeito?), que tanto se apanha hepatite C numa transfusão de sangue no hospital, como no contacto com uma ferida aberta de alguém. Contudo, argumentar com um nazi é o mesmo que discutir com um esquizofrénico em crise aguda: inútil.

A besta do Amorim Lopes fala dos custos do tratamento até à exaustão, mas há uma pergunta que ele, misteriosamente, nunca coloca: porque raio custa o tratamento 42 mil euros? É feito de doses maciças de titânio? Não haverá aqui uma pequena manobra de especulação da indústria farmacêutica?

Acontece que a hepatite C não é, de todo, uma doença que os meninos maus apanham. É uma epidemia. Estamos perante um caso grave de saúde pública, face ao qual apenas existem duas soluções: ou a sociedade, no seu todo, toma conta do caso e atalha a epidemia – e nesse caso a indústria farmacêutica, se ninguém lhe cortar os tintins, vai ver os seus lucros subirem à estratosfera –, ou os governantes decidem que este caso (juntamente com a sida, o cancro e várias outras maleitas mortais) é uma excelente oportunidade para limpar o sebo a uma boa parte da população, sem ter sequer de gastar dinheiro em reactivar os fornos de Auschwitz ou a mandar 1.200.000 soldados combater no Norte de África ou na Ucrânia. Na verdade, se recorrermos às habilidades do sociopata Amorim Lopes para «demonstrar» a inutilidade de gastar «recursos escassos» com a hepatite C, está aberto um caminho glorioso: uma vez resolvido (no cemitério) o problema da hepatite, segue-se o da sida, e depois o oncológico, e assim sucessivamente.

Se calhar, alguns dos meus leitores julgam que estou ou a brincar, ou a exagerar. Isso deve-se ao facto de terem andado distraídos nos últimos anos – talvez tenham emigrado e nesse caso estão desculpados –, porque de facto a hepatite C não é o primeiro elo desta cadeia. Tem por antecedente a hemodiálise, que eliminou um número avultado (mas desconhecido) de doentes, pelo método mais expedito: retirar-lhes o tratamento e deixá-los morrer discretamente por essas terras de Portugal, longe das câmara de televisão. Provavelmente, outros antecedentes me terão escapado (apesar de eu não ter emigrado).

Mas este não é o único caminho aberto pela acção desbravadora do sociopata Amorim Lopes. Outro, muito mais largo, de horizontes muito mais vastos, se rasga diante de nós: a eliminação total, definitiva (e certamente tardia, na opinião dos comentadores nazis de pé de página do Observador) dos direitos humanos, sociais, económicos e culturais dos povos e dos indivíduos. Se assim não se fizer, por mais fórmulas que se apresentem, não fica completa a tese de Mário Amorim Lopes.

E agora, com vossa licença, vou deixar este artigo a meio, para ir visitar no hospital um velho amigo que fez transplante de fígado. Ao menos esse não repugnou à besta do Amorim Lopes, pois de nada lhe servia já o medicamento dos 42 mil euros.

Sem comentários:

Enviar um comentário