25/03/15

Privacidade fiscal? Porquê?


A algazarra a propósito da existência (supõe-se) de uma lista VIP de contribuintes, que pretenderia defender-lhes a «privacidade» fiscal, mais do que aos restantes contribuintes, deixou-me de boca aberta. O que me espanta não é o facto de uma elite beneficiar de protecção especial do aparelho fiscal, porque esse acontecimento é conforme aos desmandos das autoridades e do poder. O que me deixa boquiaberto é o afã com que imensas figuras de esquerda desataram a defender a vaca sagrada do direito à privacidade … fiscal?!!

Vamos ver se nos entendemos. A ideia de privacidade diz respeito à intimidade das pessoas. Cabem nesta categoria as comunicações interpessoais, os actos íntimos, os dados sobre a saúde pessoal, e assim por diante. Tirando os juristas, que como de costume se vêem aflitos para chegar a um consenso sobre a definição seja do que for, ninguém no seu perfeito juízo e com um mínimo de bom-senso deveria ter dúvidas sobre o que cabe e o que não cabe no território privado.

Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
Artigo 17º

1. Ninguém será objecto de intervenções arbitrárias ou ilegais na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem de atentados ilegais à sua honra e à sua reputação.
2. Toda e qualquer pessoa tem direito à protecção da lei contra tais intervenções ou tais atentados.


O que está em causa a propósito da lista VIP da autoridade fiscal não é saber com quem os notáveis foram para a cama, se têm sida, hepatite ou sarna, que palavras trocaram com a tia ao telefone, qual a cor do pijama que usam ou onde compraram a gravata e a mobília. O que está em causa são rendimentos e património.

O que são os rendimentos do trabalhador e do empregador, por exemplo? São o resultado de uma relação social que define em si mesma a sociedade capitalista: o trabalhador vende a sua força de trabalho a troco de uma retribuição; o empregador apropria-se de uma parte do valor criado pelo trabalho. A seguir, ambos têm de declarar ao fisco os respectivos rendimentos assim obtidos. Nada existe aqui de privado; estamos perante o resultado duma relação pública. Aliás, a defesa de privacidade nesta matéria serve descaradamente para subtrair à ágora da justiça, incluindo a social, o desequilíbrio na distribuição de rendimentos; por conseguinte, protege o mais forte nessa relação «privatizada», ou seja, o empregador. Por isso, e por uma dúzia de outros motivos (vou abreviar), os rendimentos do trabalho e do capital deviam ser públicos, escrutináveis, facilmente consultáveis, todos, sem excepção.

Uma casa, acções na bolsa, um terreno, meios de produção, riqueza monetária acumulada são uma propriedade pessoal – e deve ser daqui que provém o mal-entendido e as patetices dos comentadores em estado de histeria: a confusão entre vida privada e propriedade privada. Ela representa uma certa quantidade de riqueza que, em vez de ser redistribuída a toda a sociedade, ficou na posse de alguém. Um prédio de apartamentos para alugar, ou uma carteira de títulos de dívida, não são algo que o seu titular tenha defecado numa retrete privada e guardado na carteira – são o resultado do labor colectivo, da produção colectiva de riqueza; traduzem um certo tipo de relações sociais onde é permitida a apropriação e a acumulação de capitais e de meios de produção. Não são um problema privado, como tirar macacos do nariz; se resultam de um modelo de relações estruturantes da sociedade, então são uma questão pública.

A acumulação de capitais em grandes quantidades (não estou a falar das parcas poupanças familiares, evidentemente) resulta da aplicação de relações capitalistas, ou seja, da extracção de mais-valia – dito sem rebuço: do roubo de uma parte do valor criado pelos trabalhadores. Isto não é uma questão pública?, social?, não devia ser escrutinável por toda a gente?

Deixemo-nos de tretas: a esmagadora maioria da população – ou seja, todos os proletários – apenas tem de seu o rendimento do trabalho. Para quê escondê-lo? Não há nada aqui que valha a pena esconder; o problema da privacidade fiscal é completamente alheio aos chamados 99 % da população! Aquilo que os cavaleiros andantes da privacidade estão a fazer quando resguardam o segredo fiscal chama-se, de forma prosaica e sem circunlóquios, defesa intransigente da propriedade privada, em grandes quantidades, de bens imobiliários, de meios de produção e de capitais.

Possuir muito capital e muito património é uma fonte de poder. É graças a esse património que se controla o poder político. Não admira que haja quem pretenda esconder a sua fonte material de poder, não vá a fera acordar e abocanhar um pouco de tudo aquilo …

Eu sei que hoje em dia nem o mais miserável dos operadores de call center gosta de confessar o seu ridículo salário mensal, e provavelmente está a sentir-se ofendido com este meu apelo à devassa universal das declarações fiscais. Porém, esse pudor em nada deve a interesses próprios, mas sim a um enorme logro ideológico eivado de novo-riquismo: o mito da mobilidade social faz com que o vulgar consumidor anseie por exibir os atributos exteriores do burguês clássico e por comportar-se como ele – este sim, tem todo o interesse em não mostrar no que resultou a extracção de mais-valia.

Pode ser que a minha memória esteja a enganar-me, mas não recordo que nos anos 50 ou 60 o comum metalúrgico, o condutor da Carris, o almeida, tivessem qualquer problema em desvendar publicamente o seu salário. Por vezes até havia vantagem em expô-lo. O que as pessoas procuravam esconder e proteger – numa época em que ninguém tinha conta bancária, a não ser os ricos – eram os bens guardados em casa: as poupanças debaixo do colchão, as arcadas de ouro herdadas da avó minhota, a colecção valiosa de selos. Tinham razão para fazê-lo, numa época em que os assaltos a casas privadas não eram invulgares.

Recomposto finalmente do meu espanto, aconselho todos os defensores da transformação desta sociedade num mundo mais justo e confortável, que vão para casa e pensem melhor antes de defenderem a «privacidade» fiscal.

Aliás, toda esta encenação à volta das listas VIP do fisco parece uma manobra de diversão. Os cavaleiros andantes da privacidade não deviam estar antes a berrar contra a devassa das comunicações pessoais perpetrada pela NSA?, contra a proliferação de câmaras de vigilância?, contra os procedimentos das entidades patronais que pretendem saber o que comemos, o que fumamos, que planos temos para ter ou não ter filhos, que doenças temos?, contra … Atinem lá, por favor!

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