28/08/15

A Voz do Dono (2)







«[...] o Ministério da Riqueza estimara em cento e quarenta e cinco milhões de pares a produção de botas para o trimestre. A produção real estava avaliada em sessenta e dois milhões. Winston, no entanto, ao reescrever a previsão, reduziu este número para cinquenta e sete milhões, de forma a dar substância à habitual afirmação de que as quotas tinham sido ultrapassadas. Fosse como fosse, os sessenta e dois milhões não se aproximavam mais da verdade do que os cinquenta e sete ou do que os cento e quarenta e cinco. Muito provavelmente nem se tinham produzido botas nenhumas. Mais provavelmente ainda, ninguém saberia quantas teriam sido produzidas, nem ninguém queria saber. Sabia-se apenas que todos os trimestres se produziam, no papel, números astronómicos de botas, enquanto uma boa metade da população da Oceânia andava descalça.» [Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, ed. Antígona, 2012, trad. Ana Luísa Faria, p. 44-45]

Retomo hoje o tema da Voz do Dono, ou a puta da comunicação social comercial. O artigo anterior sobre a Voz do Dono (um rascunho que nunca cheguei a apurar) apresentava uma conclusão que hoje se mantém e se reforça: Na fase política actual não é possível manter qualquer resistência eficaz sem um órgão de comunicação social alternativo e independente.
A quantidade de campanhas que a Voz do Dono ecoa na actualidade é demasiado vasta para ser listada aqui. Referirei aqui apenas duas campanhas particularmente abjectas: 1) a imagem distorcida dos bairros de lata e respectivas populações; 2) a questão dos refugiados.


Duplopensar #1: os bairros de lata

Nos últimos anos a comunicação social comercial tem transmitido uma campanha, não muito espalhafatosa mas persistente e subtil, sobre os bairros de lata, os bairros clandestinos, os bairros sociais e respectivas populações. Estes lugares são apresentados como tenebrosos labirintos de ruelas estreitas onde a polícia tem medo de entrar, onde os vendedores de droga proliferam, onde se refugiam os elementos mais baixos, perigosos e animalescos da espécie humana.
Em atenção ao leitor que nunca viu com seus próprios olhos esses lugares, que nunca confraternizou com as populações desses lugares nem com elas degustou um peixe com banana-pão, e que portanto se encontra permeável à mitomania da Voz do Dono, adianto alguns esclarecimentos sumários.

Comecemos pela questão da droga. Sem dúvida encontramos nesses bairros núcleos de consumidores e vendedores de droga – aí está um facto indesmentível. Mas para bem avaliarmos esta questão, tenho de desvirginar a inocência do meu leitor, chamando-lhe a atenção para um facto simples da vida: se procurarmos bem, encontramos esses núcleos em toda a parte, incluindo o nosso próprio bairro, incluindo bairros como o Restelo ou o Estoril – a única diferença é que uns são noticiados pela Voz do Dono, outros não. É natural: uns situam-se na coutada do Dono, outros no território dos escravos. De resto, não é preciso ser muito esperto para imaginar que no caso das drogas mais caras a maioria dos clientes não pode ser encontrada nos bairros pobres mas sim nos dos ricos e remediados; e que os dealers do bairro de lata não passam de simples moços de frete dos grandes distribuidores e intermediários; e que estes de certeza absoluta não ganham fortunas num dos 3 negócios mais rentáveis do mundo – a par do armamento e da saúde privada –, para depois irem viver num casinhoto minúsculo sem água corrente nem electricidade. Nem é preciso ser um génio para imaginar que não podem ser os moradores dos bairros miseráveis a investir dezenas ou centenas de milhares de euros na importação e distribuição de droga; tão-pouco têm capacidade os miseráveis passadores1 dos bairros de lata para planear o branqueamento de capitais em larga escala – apenas alguns bancos têm capacidade para fazê-lo, como foi documentado por numerosos investigadores.
 
Quanto à questão dos índices de criminalidade e de certos comportamentos «desviantes», sejamos claros: peguem numa população inteira dum bairro de classe média, no centro de Lisboa ou do Porto, e subtraiam-lhes o emprego, os transportes, o sistema de esgotos, os meios de sustento, o pão, a electricidade, a água corrente, e verão como alguns deles se transformam e perdem a dignidade; atirem-lhes para cima uns quantos «assistentes sociais» que, depois de verem as condições miseráveis e caóticas em que eles vivem, fazem relatórios onde, em vez de se dizer que é preciso fazer qualquer coisa por aquela gente, se aconselha a subtracção dos seus filhos (que em enorme número de casos desaparecem em parte incerta, quem sabe alimentando negócios obscuros); dificultem-lhes a vida, através de subterfúgios e artifícios ignóbeis (tipo: se queres ter documentos legais, tens de ter um ofício; mas para teres um ofício, tens de ter documentos e morada legais...) – e verão como até um civilizado doutor pode, em certos casos de desespero, tornar-se um assaltante de estrada, aplicar expedientes menos limpos a propósito de todas as coisas da vida quotidiana, sugar subsídios enquanto pode, porque o amanhã é sempre de uma negrura imperscrutável.
 
E no entanto, ao contrário do que a puta da comunicação social comercial nos quer fazer crer, a esmagadora maioria dos habitantes dos bairros de lata mantém a rectidão, resiste com unhas e dentes à condição sub-humana para a qual foi atirada; aliás, nisso é aplicada a maior parte da sua energia e por isso consegue manter um grau de honestidade e dignidade que não encontramos na média da actual classe jornalística, por exemplo. Foram estas populações dos «bairros problemáticos» que construíram as belas casas onde os senhores jornalistas vivem; são elas que fazem a manutenção e limpeza das casas ricas, médias e remediadas, das escolas, dos hospitais, dos escritórios dos burocratas que os perseguem, garantindo a quem habita ou trabalha nesses lugares a qualidade de vida e a dignidade; são elas que vão limpar as retretes onde o sr. jornalista defecou. Dizer que as populações dos bairros de lata não sabem manter um lugar limpo, arrumado, urbanisticamente ordenado e decente, que são incapazes de manter um mínimo de hombridade, que são avessas ao trabalho, é de um cinismo inexcedível.
 
Não por acaso, esta campanha da Voz do Dono corre em paralelo com vários factores e decisões económicas e estratégicas, entre as quais:
1) Uma quebra na construção civil; redução de um vasto número de funções sociais (escolas, hospitais e outros serviços públicos). Ou seja, desinvestimento e desemprego massivo num conjunto de actividades económicas em que essas populações participavam. A este desinvestimento é correlativa a vontade das autoridades públicas de se verem livres de uma massa de mão-de-obra que, na fase económica anterior, construiu grande parte da nossa riqueza colectiva, mas agora constitui um empecilho.
2) A substituição do núcleo económico estratégico da construção civil pelo turismo desenfreado, com a correspondente mudança de foco da especulação imobiliária. Daí que os bairros de lata, que antes eram condição necessária para fornecer mão-de-obra barata às actividades económicas então dominantes, se tenham tornado agora um empecilho: desvirtuam as vistas e ocupam terrenos que poderiam reverter para massivos empreendimentos turísticos.
3) Muitos dos terrenos onde estavam implantados os bairros pobres e os bairros sociais que foram arrasados pelos bulldozers e pela maledicência da comunicação social nem sequer são transformados em novos empreendimentos (ainda que os projectos existam). Foram adquiridos por bancos e fundos imobiliários que apenas pretendem utilizá-los como colateral (garantia) de empréstimos, quase a zero por cento de juros, junto do Banco Central Europeu – por isso o seu valor precisa de ser inflacionado; mas para inflacionar artificialmente é necessário que os terrenos e os edifícios não tenham serventia (porque neste caso o seu valor como garantia seria limitado pelo valor real da renda cobrada).

Só secundariamente esta campanha da Voz do Dono contra os bairros de lata é ideológica; a sua verdadeira natureza imediata é a do interesse económico privado, puro e duro. Mas esse interesse tem de ser satisfeito à custa da vida de alguém. Ora, para que o europeu civilizado, incluindo o português, aceite a aplicação de um tratamento desumano a alguém, é preciso que esse alguém deixe de ser visto como nosso igual, que abandone a qualidade de ser humano de pleno direito; é preciso apresentá-lo como menos que humano, como um perigo iminente para nós, para os nossos filhos, para os nossos idosos; é preciso odiá-lo, temê-lo, desejar-lhe que se extinga.

A campanha da Voz do Dono é, em suma, o caminho mais curto para a xenofobia, o racismo, a cesura entre iguais. Ainda que os tempos sejam outros e os regimes não se repitam, há que dizê-lo: foi esta a rota escolhida pela propaganda nazi para fazer passar por boa a limpeza «étnica» e a mão-de-obra escrava.
 
«Saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas; usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral, acreditar na inviabilidade da democracia e que o Partido é o guardião da democracia2; esquecer o que quer que fosse preciso esquecer, para depois o trazer de volta à memória quando necessário, e em seguida de novo o esquecer prontamente: e, acima de tudo, aplicar este mesmo procedimento ao próprio procedimento. Tal era a suprema subtileza: induzir conscientemente a inconsciência, para depois, num segundo passo, tornar-se inconsciente do acto de hipnose acabado de levar a cabo. A própria compreensão da palavra “duplopensar” implicava o recurso ao duplopensar.» [id., ibid., p. 38-39]

Entre as muitas imagens do quotidiano que os meios de comunicação social comercial se escusam a transmitir, por fidelidade ao Dono, estão as crianças dos bairros de lata que, ao saírem da escola, se deparam com polícias armados de shotguns e ostentando tatuagens nazis. Que espécie de mundo pode nascer daqui?

No próximo artigo falarei do papel da Voz do Dono na campanha europeia em curso contra os refugiados.


Adenda (acrescentada em 29/08/2015)
Para uma análise mais científica de alguns aspectos da Voz do Dono, ver: António Dores, «A Análise Jornalística Torna Irreconhecível a Densidade da Vida», in Revista Angolana de Sociologia, 11/2013, 35-50, http://ras.revues.org/320 (cons. em 29/08/2015).


notas
1É muito interessante o facto de, a dado momento da evolução do vocabulário jornalístico corrente, a expressão «passador de droga» ter sido substituída por «dealer». O termo «passador» denuncia com clareza a posição, na cadeia hierárquica, de quem vende umas gramitas de droga na rua; o anglicismo, como de costume, veio suavizar e tornar nebulosa a consciência dos factos reais; o anglicismo é, por regra, a novilíngua portuguesa.
2Sugere-se que o leitor substitua «democracia» por outra coisa à sua escolha, mais ou menos aleatoriamente – por exemplo: segurança social, crescimento, justiça tributária, ou simplesmente... democracia.

Sem comentários:

Enviar um comentário