29/08/15

A Voz do Dono (3)





«4 de Abril de 1984. Ontem à noite ao cinema. Só fitas de guerra. Uma muito boa de um navio cheio de refugiados bombardeado algures no Mediterrâneo. Público muito divertido com planos de um homenzarrão grande e gordo a tentar fugir a nado com um helicóptero atrás dele. […] depois via-se um salva-vidas cheio de crianças com o helicóptero a sobrevoá-lo. Havia uma mulher de meia-idade talvez uma judia sentada à proa com um rapazinho dos seus três anos ao colo. […] depois o helicóptero largou uma bomba de 20 quilos mesmo em cima deles clarão enorme e o barco ficou feito em fanicos […] muitos aplausos na bancada do partido mas uma mulher lá em baixo no sector dos proles desatou de repente a armar um barulho e a berrar que nã deviam ter mostrado aquilo com miúdos na sala nã senhor nã está certo com miúdos na sala até que a polícia a pôs na rua não me parece que lhe tenha acontecido alguma coisa ninguém liga ao que dizem os proles [...]» [diário de Winston, in Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, de George Orwell, ed. Antígona, 2012, trad. Ana Luísa Faria, p. 12]

No artigo anterior retomei o tema da Voz do Dono, ou a puta da comunicação social comercial, começando por Duplopensar #1: os bairros de lata.
No presente artigo avanço outro exemplo:

Duplopensar #2: os refugiados que demandam refúgio na Europa

A abjecção desta campanha serve múltiplos aspectos políticos, que vão desde as estratégias bélicas e imperialistas, até à mais elementar negação dos direitos humanos, passando pela renegação sub-reptícia dos acordos internacionais assinados. Embora, de todo o rol de factores em jogo na campanha transmitida pela Voz do Dono, os objectivos políticos e ideológicos sejam sem dúvida da maior relevância para o conjunto dos povos europeus, os seus efeitos mais imediatos e impressionantes realizam-se ao nível individual. Impressionam não só pela gravidade das consequências humanitárias para milhares de foragidos, mas também pela descontracção com que jornalistas, editores e directores de informação alinham em atirar aos lobos esses seres humanos desprotegidos, boa parte dos quais crianças de colo.


«Os campos, sob a forma de centros e lugares de retenção, voltaram à Europa e disseminaram-se por toda a fronteira do Sul da União Europeia. São espaços geridos pela polícia, subtraídos à ordem jurídica normal, que funcionam como diques para reter o enorme caudal dos “fluxos migratórios”.» [«Os Campos, Novamente», de António Guerreiro, artigo de opinião, Público, 28/08/2015]

Durante várias semanas a comunicação social comercial usou o termo «migrantes» para designar as pessoas fugidas da guerra e da perseguição política. Ora a categoria de migrante, que em rigor se aplica a uma enorme variedade de fenómenos – desde a deslocação periódica e pendular até à mudança definitiva de território –, numa época de desemprego massivo tende a remeter o leitor europeu para a ideia de «imigrante». Esta táctica de comunicação tem a capacidade histórica de instalar um clima propício ao ódio e à xenofobia. As suas vítimas actuais, que demandam abrigo na mítica Europa de que tanto ouviram falar (mas cujo verdadeiro funcionamento político actual obviamente desconhecem), buscam uma protecção que afinal não encontram; talvez as agressões que sofrem logo à entrada nessa famosa Europa – vindas não só das autoridades militares e policiais, mas também desses órgãos de comunicação social que eles julgavam amigos, livres e impolutos – seja menos má do que a perspectiva de morrer num bombardeamento ou numa execução sumária. Mas, ai de nós, é mau presságio quando começamos a reduzir tudo à política do «menos mau»; acabaremos fatalmente por dizer que é menos mau perder as duas pernas e os dois braços do que ser morto (ou seja, deixamos de ser capazes de fazer um balanço rigoroso das situações); ou que é menos mau ir parar a um campo de trabalhos forçados na Hungria do que ter o pescoço cortado por uma catana jihadista.

Numa segunda fase da campanha mediática, o termo «migrantes» começou a ser entremeado com «refugiados», favorecendo uma certa confusão sinonímia; e por fim, no momento em que escrevo este artigo, o termo «refugiados», já conotado pejorativamente, parece começar finalmente a tornar-se dominante. A Voz do Dono cumpriu o seu papel, os dados estão lançados.

Chegamos assim a uma fase da campanha de comunicação minuciosamente preparada, onde já é possível aos poderosos e às figuras políticas de proa falar da necessidade de ter «uma política europeia coordenada» para a questão dos refugiados. O que a Voz do Dono não diz (salvo num ou noutro artigo de opinião, mas nunca na exposição jornalística dos factos), é que não é preciso arquitectar directivas políticas nenhumas para os refugiados, porque elas já existem! Podem não estar a ser aplicadas, podem não estar regulamentadas dentro do quadro jurídico da UE, mas já existem há muitas décadas para a comunidade internacional em geral e para a Europa em particular. Qual o teor dessas directivas, é coisa que a Voz do Dono guarda ciosamente.

Quando Durão Barroso visitou o porto de Lampedusa, em 2013, foi vaiado e apelidado de «assassino». Justa acusação, dado o não cumprimento, por parte da Comissão Europeia, dos referidos acordos internacionais e face a esta frase de Durão Barroso: «As ajudas a refugiados são responsabilidades nacionais, não é uma competência da União Europeia» – mente com quantos dentes tem na boca, pois a UE está tão obrigada a cumprir os tratados internacionais como qualquer dos seus Estados-membros, e ao mesmo tempo deixa o seguinte recado: a Comissão Europeia e os demais poderosos da Europa lavam daqui as suas mãos e nem de longe querem cheirar essa gentinha, esteja ela morta ou viva. Recordemos que quando Durão Barroso produziu estas afirmações, estava em causa o afogamento de mais de 800 pessoas, presumivelmente vindas da Líbia.
É fácil deduzir que os poderes europeus visam criar uma nova ordem jurídica internacional para os refugiados, fazendo tábua rasa dos direitos humanos e dos acordos internacionais assinados anteriormente.

Há dois dias atrás, o ex-presidente da Comissão Europeia voltou a afirmar que a culpa de não haver uma solução para a vaga de refugiados é dos governos locais e não da UE. Esta distinção entre os poderes avulsos da Europa e os poderes por grosso da União é uma tosca subtileza novilinguística, conforme nos habituou Durão Barroso.

À cabeça da lista de acções que seria necessário desenvolver para acudir de imediato aos refugiados, encontramos as que se referem à sua situação humanitária. Para isso, sejamos claros, nem sequer é necessária uma política europeia conjunta – apenas se requer um pouco de humanidade, não faz falta um carimbo e um passaporte.

A seguir, coloca-se o problema de saber o que acontece aos candidatos a refugiados que sejam recambiados para o seu país de origem. Nos casos em que eles provêm de zonas controladas pelo Estado Islâmico, por exemplo, não creio que possam existir dúvidas sobre o resultado: serão liminarmente executados. Portanto, ao recambiá-los para os braços dos seus perseguidores, tão-pouco restam dúvidas sobre o verdadeiro sentido das decisões dos poderes públicos europeus: estão a ser coniventes com um «Estado» que viola os mais elementares direitos humanos e pratica a pena de morte por dá-cá-aquela-palha. A conivência dos poderes europeus com as hordas do Estado Islâmico, de que já qualquer pessoa bem informada teria suspeitado.

Por outro lado, a Voz do Dono tem-se esmerado por avolumar o fluxo de candidatos a refugiados. Apresenta-os quase como hordas de Hunos invasores – e aí se detém a notícia; nada mais é explicado nem contextualizado. Nunca, até hoje, vi duas notícias seguidas que permitissem ao leitor associar o problema dos refugiados aos factos e atrocidades vividas nas zonas de guerra. Os «invasores», que, em estado de desespero absoluto, se arriscam a atravessar o Mediterrâneo numa casca de noz, com perigo de vida extremo e evidente, surgem assim como loucos perigosos – mais perigosos do que os bandidos armados dos quais fogem, porque estes estão lá longe e não nos afectam tão imediatamente.

Mas olhemos com mais atenção para essa horda invasora. Será mesmo isso?

Admitamos que o montante total de refugiados é de 250 mil. O que significa este número aparentemente assustador, à escala da UE? Praticamente nada, para além dos óbvios problemas logísticos que possa levantar numa primeira fase. Esta cifra corresponde a cerca de metade do volume de imigrantes residentes em Portugal nas últimas décadas (ou seja, cerca de 2,5% da população residente em Portugal). Ora a Europa tem mais de 508 milhões de habitantes; estamos portanto a falar de um volume de refugiados equivalente a 0,04% da população europeia – não existe invasão nenhuma, não existe qualquer perigo de descalabro demográfico ou desequilíbrio do mercado laboral (nada que se compare com os milhões de turcos imigrados na Europa, por exemplo), não existe qualquer dificuldade de acolhimento, alimentação e cuidados de saúde, e menos ainda se quisermos acreditar na propaganda oficial, sobejamente propalada pela Voz do Dono: estamos na terra da «recuperação económica», da «estabilidade», da «democracia» e do «respeito pelos direitos humanos e políticos». Se de facto existe alguma dificuldade, por favor apontem-ma, para eu poder ver essa coisa minúscula.



As intenções verdadeiras dos poderes europeus desvendam-se igualmente quando, depois de grandes complicações na fronteira entre a Grécia (cujo governo recebe subsídios da UE para albergar os refugiados) e a Macedónia, eles são enxotados, através de veredas e encostas montanhosas, como um rebanho de cabras incómodas, em direcção à Hungria – ou seja, em direcção ao país europeu que mais parece ter avançado em matéria de campos de contenção e na invenção de versões modernas, mascaradas, de campos de concentração. E é claro que, mais uma vez, a Voz do Dono silencia todos estes factos, para acicatar a sensação de desconforto e temor dos cidadãos europeus.

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