07/11/15

Governo de esquerda – aguenta-se?


Seria desonesto não reconhecer que aquilo que do ponto de vista político, a médio e longo prazo, pode não passar de migalhas envenenadas, do ponto de vista vivencial para centenas de milhares de portugueses reduzidos à miséria pode ser um banquete.

A justificação mais forte para a formação de um «governo de esquerda» em Portugal – ou, mais exactamente: para a formação de um governo minoritário do PS com o apoio parlamentar do BE e do PC – é a necessidade urgente de aliviar as miseráveis condições de vida que ferem a população do país. Esta motivação, cuja boa-fé não ponho em dúvida, basta para acolhermos com entusiasmo a iniciativa.
A alternativa, que é um governo de direita do PSD/CDS-PP, já deixou claro, através de acções concretas antes mesmo de se tornar um governo legítimo, que pretende prosseguir e aprofundar a política de austeridade e miséria.

Entretanto, um dos argumentos apresentados pela direita contra um possível «governo de esquerda» é o da sustentabilidade. Mas esta ideia é invocada pela direita num sentido estritamente económico e financeiro, repetindo até à exaustão o mito falta de recursos suficientes para sustentar o Estado social. Este mito já foi sobejamente rebatido, portanto não vou perder tempo com ele neste artigo. O que vos proponho é uma reflexão assente numa perspectiva distinta: até que ponto um programa de «governo de esquerda» do PS com apoio parlamentar BE+PC é politicamente sustentável? Não pretendo dar uma resposta final a esta questão; pelo contrário, proponho que alimentemos um debate sério sobre as condições necessárias para nos vermos livres das políticas de austeridade.


Os esteios onde se sustentam as políticas neoliberais e de austeridade

O neoliberalismo é como um polvo que estende uma miríade de tentáculos a todos os aspectos da nossa vida, desde as relações de trabalho até às relações entre professores e alunos, entre homens e mulheres, etc. É um projecto social e político completo, à semelhança de outros que vimos nascer e morrer ao longo do século XX; para onde quer que nos viremos, esbarramos na sua influência tentacular, precisamente por se tratar de um projecto cabal de sociedade. Podíamos gastar 10.000 páginas a analisá-lo, mas para não perdermos o rumo ao que aqui nos traz – a promessa de um «governo de esquerda» –, foquemos a atenção apenas nalguns dos seus esteios fundamentais.

A desregulamentação do sector bancário e financeiro. Todas as cautelas contra as monstruosidades bancárias, instituídas após a grande crise económico-financeira de 1929, foram anuladas nos últimos 30 anos, de tal forma que a riqueza e o poder das grandes instituições financeiras não pára de crescer. Tentar remediar os problemas sociais sem atacar corajosamente este factor equivale a arrancar os ramos duma erva daninha, deixando na terra as suas raízes.

Pouco a pouco, voltámos aos níveis de concentração de riqueza, poder e património que reinavam no século XIX. Há 30 anos era correcto afirmar que 10% da população possuíam mais de metade da riqueza; hoje o 1% mais rico da população concentra mais de metade da riqueza mundial. A este açambarcamento brutal da riqueza soma-se a fuga de capitais, a fuga ao fisco e as benesses fiscais.
Ora um governo que queira manter o Estado social depende em absoluto dos recursos colectivos disponíveis. Se esse governo permite que os detentores da maior parte da riqueza colectivamente produzida a subtraiam ao controle do Estado e a enviem para parte incerta, então o programa desse governo está condenado ao fracasso.

O exemplo do governo grego de Tsipras demonstra bem estes factos – ao prescindir do controle sobre os bancos, sobre o banco central grego e sobre a movimentação de capitais, viu-se encostado à parede e sujeito a chantagem.

Um endividamento público injustificado e infinito. A questão do endividamento público é fundamental. As dívidas públicas actuais, na sua esmagadora maioria, não resultam de investimentos destinados a favorecer o interesse geral; servem para salvar alguns negócios privados (com destaque para a banca e as PPP) e garantir aos bancos e a outros especuladores financeiros uma renda fixa e permanente, a troco de nada. Enquanto quem compra títulos da dívida em grandes quantidades (estamos a falar de milhões) continuar a receber taxas de juro mais apetecíveis do que os ganhos fornecidos pela actividade produtiva (excepto no caso da indústria de armamento e farmacêutica), é infantil esperar que os detentores de enormes quantidades de capital invistam na produção e contribuam para qualquer tipo de progresso económico.

Na ausência de um ataque desassombrado contra os especuladores financeiros e a dívida pública, as boas intenções de um «governo de esquerda», no que diz respeito à recuperação da economia do país, não passarão de palavras vãs.

O endividamento público (pelo menos aquele que não serve o interesse geral) é, além disso, um sofisticado mecanismo de dominação política, social e económica. Pode um programa de «governo de esquerda» escrever mil vezes: «lutamos pela autonomia e pela soberania nacional» – se o mecanismo da dívida não for atacado com coragem e sem rodeios, é como se escrevesse na água.

Também neste caso o exemplo da Grécia é elucidativo: o governo de Tsipras não quis tirar partido do trabalho da comissão de auditoria; entregou-se assim nas mãos dos especuladores financeiros e dos interesses adversos à maioria da população grega.

O império dos transportes e distribuição. O sistema de produção capitalista actual, baseado sobretudo na produção just in time,1 depende em absoluto dos sistemas de transportes e da concentração massiva dos bens produzidos. Sem um sistema de transportes fortemente privatizado e controlado pelos grandes grupos económico-financeiros, sem gigantescas empresas que controlam o armazenamento e distribuição dos bens de consumo e dos insumos, a estratégia just in time desmorona-se como um castelo de cartas – e com ela numerosos aspectos do regime neoliberal.

Em vários sectores dos transportes (desde a TAP até ao Metro, passando pelos transportes ferroviários e pela estiva) os trabalhadores têm dado provas de um valente ânimo para lutarem contra a precariedade e contra o domínio dos grandes grupos económicos. Não posso deixar de apontar o dedo ao facto de esta força combativa ser sistematicamente travada pelas direcções dos principais sindicatos e das duas centrais sindicais; na prática, embora os jornais não o noticiem, constata-se tristemente nos plenários, nos locais de trabalho e nas negociações com o patronato que as próprias direcções sindicais condenam os trabalhadores à derrota e à precariedade. Se apoiar um «governo de esquerda» significar a continuação ou até o reforço desta estratégia de contenção dos movimentos sociais, então, lastimo ter de dizê-lo, acho que se torna muito difícil dizer se é preferível um governo de direita ou um «governo de esquerda».

O transporte, armazenamento e distribuição tornaram-se um mecanismo central no processo de concentração de capital, riqueza e património. Daí que assistamos por toda a Europa a uma ofensiva furiosa dos grandes investidores transnacionais na compra de todos os portos e empresas de estiva.

Um governo de esquerda que não queira beliscar os interesses em jogo na distribuição, armazenamento e transporte de mercadorias e passageiros (leia-se força de trabalho) está condenado ao fracasso. A este fracasso seguir-se-á a capitulação total e absoluta.


A política fiscal. É bem conhecida a importância duma política fiscal eficaz e progressiva para a sustentabilidade e consolidação de um Estado social, por isso não me alongarei neste factor. Convém contudo recordar que não se trata apenas de criar uma taxação progressiva, de pedir mais a quem mais possui. É preciso acabar com os benefícios fiscais de que gozam as grandes fortunas, a banca e os grandes grupos económicos; é preciso criar mais e melhores formas de controle da evasão fiscal, impedir a fuga de capitais e de outras formas imaginosas de subtrair a riqueza produzida ao controle colectivo. É inaceitável que uma empresa que realiza lucros chorudos à custa dos recursos nacionais e da mão-de-obra local possa transferir os seus lucros para outra parte qualquer do mundo, sem deixar uma percentagem dos seus rendimentos no país onde vivem os trabalhadores e os consumidores que explorou. Esta, não tenhamos ilusões, é uma situação criada e protegida por lei. Uma grande empresa pode fazer desaparecer os seus lucros sem pagar impostos nem criar investimento; um trabalhador, pelo contrário, sofre a colecta fiscal na fonte, sendo-lhe impossível esconder os seus rendimentos ou transferi-los para os antípodas. Esta situação de desigualdade não sucede por obra e graça do espírito santo, mas sim graças a políticas de governação planeadas de forma a controlar ao máximo quem trabalha e, em contrapartida, dar rédea solta ao grande capital.

Um governo de esquerda que não ataque corajosamente todos estes aspectos fiscais pode gritar aos sete ventos as melhores das intenções do mundo, mas não pode convencer ninguém que se encontre de olhos abertos para a realidade.

A relação entre o Estado português e a UE

Como já referi, aquilo que a comunicação social chama «governo de esquerda» será de facto um governo do PS com apoio parlamentar do BE+PC. Ora o PS tem sido sempre um defensor intransigente da actual arquitectura da UE, dos tratados e instituições em vigor, do euro e do Banco Central Europeu (BCE), do Tratado Orçamental, enfim, de todos os aspectos essenciais da UE tal como a conhecemos. Nada leva a crer que de um dia para o outro mude de rumo.

BE e PC afirmam que é normal estarem contra a UE tal como ela existe mas, ao mesmo tempo, apoiarem um governo PS com as suas típicas medidas europeístas. Por mais voltas que dê ao miolo não consigo perceber essa «normalidade». Embora eu compreenda que PC+BE possam comportar-se de maneira dúplice, votando contra as medidas europeias promovidas pelo PS lesivas do interesse e do bem-estar da população portuguesa e contando que nessa circunstância a direita fornecerá ao PS o apoio de que ele carece – impedindo-se assim a queda do governo e garantindo a famosa estabilidade que tanto preocupa Cavaco Silva e quejandos –, o que eu não compreendo é como podem eles pensar que a aplicação dos tratados europeus e a sua falta de democracia nada têm a ver com a sustentabilidade política e económica de um Estado social em Portugal.

De facto, muitas das medidas impostas pelas instituições e tratados da UE visam precisamente minar a autonomia económica, política e cultural dos povos da periferia, enfraquecê-los economicamente e garantir a sua exploração em benefício dos países do centro. São, além disso, normas iníquas e pouco sérias – quando um país do centro viola os tratados orçamentais, segue-se um encolher de ombros acompanhado de silêncio cúmplice; quando um país da periferia acerta um pouco ao lado das metas previstas, segue-se um berreiro, aqui d'el-rei e toma lá um rol de medidas punitivas e limitações à autonomia dos povos em questão.

A única atitude eficaz de um «governo de esquerda» (com maiores ou menores gradações, conforme a coragem disponível e o grau de mobilização das populações) só pode ser a desobediência às instituições europeias sempre que os ditames da UE ponham em perigo os interesses estratégicos do seu povo.2

O problema da UE e seus efeitos no desmantelamento do Estado social reside aqui: após alguns anos de deriva política à direita, o PS deixou de ser um partido social-democrata e tem actuado frequentemente como testa-de-ferro do neoliberalismo e dos piores aspectos da UE, a começar pela falta de democracia aí reinante. Por seu turno, os chamados «partidos radicais», arrastados pela deriva generalizada à direita, são hoje tudo menos radicais; tornaram-se os social-democratas deste tempo, os últimos defensores do Estado social e das instituições democráticas – o que, verdade seja dita, no estado actual das coisas já é bastante bom e é muito melhor que nada …

A relação entre o Estado social e os factores de sustentação do regime neoliberal

Um governo de esquerda que não compreenda a centralidade dos factores que acabo de referir e não actue em conformidade está condenado ao fracasso; acabará por ser um executor involuntário das políticas de direita. Por mais que se lastime e arme em vítima, como fez o governo de Tsipras na Grécia, é iniludível que logo à partida traçou o seu próprio destino. Porquê esta fatalidade? Como é possível que as políticas sociais estejam tão dependentes dos factores referidos? A explicação é simples:

O investimento, o endividamento e a política fiscal mexem todos eles com a gestão e repartição dos recursos colectivos. Recordemos, por exemplo, que investir consiste em pegar numa parte do valor criado pelo trabalho e aplicá-lo nalguma coisa – que tanto pode ser um jogo de casino, desbaratando assim riqueza colectiva, como um investimento produtivo. Ora os recursos colectivos formam a base material única e exclusiva de sustentação das políticas sociais – da segurança social, dos sistemas públicos de ensino, de saúde, de habitação. Se um dia o mito «não há dinheiro para pagar a Segurança Social e as pensões» se tornar realidade, isso apenas pode dever-se a duas coisas: ou ao desinvestimento massivo na produção, ou ao desvio do valor produzido colectivamente (desvio de capitais, fuga ao fisco, prendas fiscais, etc.), ou a ambos.

Nenhum «governo de esquerda» é politicamente sustentável se não atacar corajosa e frontalmente os factores referidos acima. Esta ideia de insustentabilidade política não é um floreado ideológico – é um facto que resulta das condições materiais a que esse governo se encontra sujeito. Um governo de esquerda que não se precavê para garantir as suas bases de sustentação (política e material), como aconteceu ao governo do Syriza, não pode depois vir queixar-se de que vieram uns homens maus e lhe puxaram o tapete debaixo dos pés. Na verdade, foi ele próprio que puxou o tapete.

* * *

Comecei por afirmar duas coisas que talvez seja melhor recordar: 1) a urgência em que nos coloca o descalabro social e a miséria que grassa no país justificam praticamente qualquer solução desesperada à esquerda; 2) não é claro para mim que um «governo de esquerda» com preocupações sociais consiga pôr em prática as suas opções programáticas, ou que consiga não actuar como uma espécie de executor contrariado das medidas neoliberais, se não reconhecer os factores determinantes que referi acima e não actuar em conformidade, de forma decidida e corajosa.


notas:

1 Resumidamente, o sistema de produção industrial just in time consiste em não produzir, não comprar, não transportar e não armazenar senão depois de ter sido recebida uma encomenda. Nos intervalos entre encomendas, a unidade de produção não existe – não tem gastos com pessoal, matérias-primas ou armazenamento. O sistema começou por ser utilizado pela Toyota no Japão e apenas entrou na Europa em meados da década de 1980, quando se instalaram os primeiros governos neoliberais. Esta coincidência não é de estranhar, visto que uma empresa que trabalha em regime just in time é forçosamente uma entidade que recusa a responsabilidade social.

2 Sobre este tema remeto para autores e comentadores como Eric Toussaint, que têm vindo a explicar com clareza o que deve ser feito e o que está em jogo na União Europeia.

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