Um dos factores que caracteriza a passagem do Ancien Régime para a República é a separação de poderes dentro do Estado e entre o Estado e a Igreja. Chamemos a esta separação «Estado laico de direito».
A expressão «laico» significa que o Estado deixou de partilhar o poder com a Igreja ou de subordinar-se ao império da Igreja.
A expressão «de direito» significa que nada na sociedade em questão está acima das leis, nem sequer o próprio legislador. Significa também que existe um conjunto de garantias que protegem os indivíduos e as entidades colectivas dessa sociedade.
Face à evolução dos acontecimentos políticos nas últimas 3 décadas, é aconselhável perguntar:
- a separação de poderes continua em vigor?;
- o Estado permanece imune à subjugação ou partilha de poder com alguma forma, clássica ou reinventada, de igreja ou de crença organizada?;
- as garantias individuais e colectivas continuam em vigor?
Se a resposta a
todas as 3 perguntas for afirmativa (todas elas são condições necessárias), podemos concluir que atravessamos apenas um «mau passo», uma fase do «Estado democrático de direito» em que todos os seus vícios e defeitos de nascença se encontram particularmente assanhados. Mas se alguma delas merecer resposta negativa, temos concluir que vivemos um processo de transformação profunda do regime político. Esclareço desde já que a primeira opção (resposta afirmativa às 3 perguntas) é a defendida pela generalidade das correntes de esquerda. Afirmam elas (e com razão, a meu ver) que as contradições internas e a natureza do Estado democrático de direito sempre tiveram aspectos em que a resposta àquelas 3 perguntas é variável; concluem elas (mal, a meu ver) que nada mudou. Assim, por exemplo: a justiça nunca foi rigorosamente igual para ricos e pobres, quanto mais não seja porque os ricos dispõem de melhores meios para se defenderem em tribunal; o aparelho de Estado sempre foi directa ou indirectamente subserviente aos interesses do capital; o Estado afirma-se laico mas atribui subsídios e benesses às igrejas, a umas mais do que a outras; etc.
Não tenho resposta definitiva para estas questões; limito-me a fazer perguntas e apontar algumas vias de reflexão; mas seria desonesto da minha parte não dizer que me inclino para a tese de que a resposta àquelas 3 perguntas é negativa, no todo ou em parte, e que vivemos uma fase de transição de regime.