06/02/18

Caquexia, homeostasia e damásia


Quantos me conhecem de muito perto sabem da minha repugnância – vá, digamos, da minha desconfiança – pela filosofia em geral. Esta atitude é tão vincada desde a minha juventude que, ao deparar-me com a disciplina de filosofia na escola, sem a qual não poderia progredir nos estudos, decidi abandoná-los de vez – antes a ignorância que a cadeira de Filosofia, tal foi o meu grito. Esta teima tem um senão: como quase nunca tive pachorra para sofrer até ao fim esses marcos do pensamento ocidental (e bem assim os do oriental), não me encontro em condições de fazer uma crítica sistemática às respectivas obras. Aliás não creio que ela vos faça falta.
  
Em todo o caso sou capaz de vos apontar muito sinteticamente o busílis da questão, do meu ponto de vista: de modo geral as obras filosóficas consistem em má poesia; têm quase tudo da poesia, em quase tudo são poesia, excepto no que diz respeito à qualidade literária ou poética e ao elevado discernimento inerente à boa poesia. Em suma, na sua esmagadora maioria os filósofos consagrados são maus poetas que, por vergonha, se mascararam de mestres da lógica; mas que também nisso não são grande espingarda.

Há no entanto excepções, ou pelo menos obras cuja leitura me proporciona um enorme prazer, e por vezes concordância. É um belo bónus a concordância, mas se me dá gozo ler as crónicas e os ensaios de Vilém Flusser, por exemplo, isso não implica necessariamente que eu esteja de acordo com todas as ideias que ele defende. Flusser é um filósofo (isso ninguém o nega, nem mesmo os que não lhe fazem a vénia) e é um poeta, não há como negar, mas com a grande diferença, em relação à maioria dos seus semelhantes, de ser um razoável poeta.
 
Não faltam filósofos cuja inépcia literária me enerva fisicamente, ao ponto de atirar o livro pela janela. Mas outros há que, precisamente por não quererem ser poetas envergonhados (ou armar-se aos cágados, como se diz também) e usarem de uma seriedade rigorosa nos seus métodos de análise, podem pousar em segurança na minha estante. É o caso de Karl Marx e Albert Camus, entre outros. Certamente há neles também alguma poesia, como prova o simples facto de a partir dos textos de Marx terem sido produzidas milhares de interpretações. Nunca fiz as contas, mas não me admiraria que houvesse da obra de Marx mais interpretações do que da 5.ª Sinfonia de Beethoven, o que é prova bastante do carácter poético da coisa. A estranha relação entre um electrão e um protão pode ser entendida ou não, podem sobre ela fazer-se especulações quanto ao que ficou por saber, mas nunca interpretações – a interpretação é apanágio exclusivo das artes, das escrituras religiosas e da tradução simultânea.
  
Ao lado de Marx, na mesma estante, foi acoitar-se um outro filósofo e cientista: António Damásio. Em boa verdade foi lá posto pelo acaso do meu desleixo, mas calhou bem: em ambos encontro a mesma atenção à linha histórica (ou evolutiva, no caso de Damásio) para chegar ao entendimento das coisas; a mesma primazia dada às causas materiais para decifrar o imaterial; a mesma tónica na praxis (ainda que apenas de forma implícita em Damásio) para aferirem o caminho teórico.
  
Tudo isto para chegar por fim, ao cabo de 580 palavras!, àquilo que me traz aqui: ouvindo dizer que tinha sido publicada em português a última obra de António Damásio, A Estranha Ordem das Coisas, corri a comprá-la. Chegado a casa, atiro-me a ela e … tenho de confessar que levei semanas a mastigar o livro, lenta e penosamente, até que, por volta da página 254, me dei por vencido: atirei-o para o fundo do saco onde diversos livros aguardam a oportunidade de irem passear à Feira da Ladra e encontrarem novos donos.
  
Em toda a primeira parte do livro Damásio faz o que lhe compete: tenta convencer o leitor de que tudo no espírito humano, incluindo os sentimentos, a sociabilidade e a cultura, tem antecedentes que remontam aos primeiros organismos vivos, há milhares de milhões de anos. No centro desse processo evolutivo Damásio coloca o conceito de homeostasia. À semelhança dos livros anteriores, misturam-se neste as descobertas científicas e a especulação filosófica. Mas este truque, que tão bem resulta nos livros precendentes, descamba aqui numa caldeirada indigesta. O que é que correu mal?
  
Em primeiro lugar, arrisco-me a dizer que tudo o que Damásio diz naquelas 350 páginas poderia ser dito, com maior proveito, em 35. A Estranha Ordem das Coisas traz à memória uma velha história: pediram a um cientista que resumisse em meia página uma certa teoria científica. O homem foi para casa, atirou-se ao papel, escreveu, rasurou, rasgou, recomeçou, e nada – passados dias o cesto dos papéis estava repleto, mas de resumo, nada. Por fim dirigiu-se a quem lhe tinha feito a encomenda e disse: «Não sou capaz. Por mais que faça, não consigo resumir esta teoria em meia página. Ora, se uma teoria não pode ser resumida em meia página de forma meridiana, então alguma coisa de errado se passa com ela». E de facto, poucos anos depois, a comunidade científica veio a descobrir que aquela teoria padecia de um erro fatal. Pois bem, receio que o mesmo se passe desta vez com a teoria proposta por Damásio no seu último livro. Há ainda outra explicação: o homem de repente ficou caquético. Ou ambas as coisas.
  
A hipótese da caquexia é fortemente corroborada pelo inacreditável número de vezes que ele se repete, retomando de cada vez as mesmas afirmações – senão mesmo capítulos inteiros –, como se pela primeira vez as pronunciasse. Tentei contar as repetições, anotando laboriosamente o livro, mas acabei por desistir – até porque me estava a sentir arrastado para aquela espécie de demência precoce. É o tipo de lapso caquético que causa a maior estranheza – para não dizer desconforto – a quem assiste. 
   
O livro está atafulhado de banalidades, de lugares-comuns, de afirmações queriduchas sobre as relações humanas, derrubando de caminho todas as barreiras cautelares entre ciência, moralismo e ideologia. Esta caldeirada irritou-me a tal ponto o paladar, que raros foram os dias em que consegui papar mais de uma página de seguida. Tomei-o como um remédio, às colherzinhas e até onde pude.
  
Por fim vem a segunda parte do livro, aquela onde Damásio se aventura no domínio da cultura e da civilização humanas, tentando relacioná-las com os primeiros protozoários nascidos há milhares de milhões de anos. Aí, finalmente, percebe-se que o objectivo deste livro consiste sobretudo em apresentar um programa ideológico, por sinal mal amanhado. 
  
Se a primeira parte já era difícil de decifrar, enovelada, repetitiva, na segunda parte as incorrecções históricas, antropológicas e sociológicas, os lugares-comuns ridículos brotam em cornucópia. A lógica da homeostasia é aplicada na segunda parte do livro à cultura e à civilização como estratégia do tipo varapau e cenoura. Aí encontramos pérolas como estas: o «objectivo funcional útil [da homeostasia] teria igualmente aumentado o poder de certos indivíduos e, por acréscimo, de certos grupos de indivíduos em relação a outros» (p. 237); «num período animista de culturas, seria pedido [aos deuses] não só que ajudassem com o sofrimento pessoal, mas também que protegessem a propriedade pessoal» (p. 242); «em última análise, a promessa de continuação da vida após a morte podia anular completamente os efeitos negativos de qualquer perda» (p. 242, sublinhados meus); «as guerras são um caso especial, pois tanto levam a remédios construtivos, como a ciclos intermináveis de violência» (p.244, sublinhados meus); «a religião e a homeostasia estão convincentemente ligadas no que respeita à sua origem» (p. 244; se estão à espera da demonstração científica desta tirada, é melhor sentarem-se); «o facto de a história das religiões estar cheia de episódios em que as crenças religiosas levaram, e continuam a levar, ao sofrimento, à violência e às guerras não contradiz, de modo algum, o valor homeostático que tais crenças tiveram» (p. 245); «Marx não fazia ideia de como o mundo se tornaria desumanizado e frio» (donde concluo que Damásio não faz a mais pequena ideia do que era o horror, a miséria, o sofrimento da vida proletária na Inglaterra do século XIX, já para não falar das respectivas colónias), «sobretudo o mundo que ele próprio viria a inspirar» (p. 245); «há um sem-fim de benefícios homeostáticos a retirar do inquérito filosófico», até porque ele serve para «solucionar os enigmas do Cosmos» e satisfaz o sentimento «da antecipação das respectivas recompensas» (p. 250); «numa tentativa de testar a minha hipótese geral podemos pensar em situações que contradizem a ideia», e mais adiante, «o facto de que as crenças religiosas também podem provocar sofrimento em nada contradiz a hipótese» e prontinhos, está demonstrado (p. 251-252);
  
Referindo-se à criação de sistemas morais e regimes políticos: «O repetido encontro com o sofrimento causado pelo roubo, pela mentira, pela traição e pela falta de disciplina seria um incentivo poderoso para a invenção de códigos de conduta cujas recomendações e prática teriam como resultado a redução do sofrimento» (p. 243) – o que, sendo óbvio, me traz à memória o poderoso argumento que um bêbado meu amigo não se cansou de repetir durante anos: se a minha avó fosse estéril, eu não seria nascido. É de facto imbatível este argumento, mas não me leva a lado nenhum.
  
Durante toda a segunda parte do livro a expressão «selecção cultural» é repetida dezenas de vezes, até à exaustão. Fiquei sem saber bem o que quererá isso dizer ao certo – não por falta de pistas, mas porque tive medo de desvendar o segredo, não fosse sair dali um tipo de bigodinho estreito e franja alongada.
  
O que mais magoa nisto tudo é que, entre tantos familiares, amigos, inimigos, colegas, editores e críticos, ninguém tenha tido a coragem, a amizade e a bondade de lhe dizer: «Ó António, deixa-te disso, que estás a ficar caquético. Mete o rascunho no saco e vai gozar o que te resta de vida, que bem mereces. Após tanta honraria, tanto louvor, tanta medalha, tanta estima espalhada pelos quatro cantos do mundo, não queiras perder a cara como cientista e pensador». Não, deixaram-no espalhar-se ao comprido e perder a cara. Isto realmente custa. Se este confrangimento é ou não obra do mecanismo homeostático, isso já não sei dizer.
  
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 Adenda, 8/02/2018: aconselho vivamente a leitura da crítica «A Estranha Ordem das Coisas e a bizarra preguiça intelectual de António Damásio» (9/11/2017), por ser mais completa e competente do que esta; e porque satisfaz o espírito académico, não recorrendo a narrativas efabulatórias, como eu tenho o hábito de fazer.

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