19/11/13

Dicionário do charme político: economia

Muitos termos usados pelos políticos profissionais e pelos poderes públicos vencem pelo charme e matam pelas consequências.
Este é um dicionário do charme político, em vias de construção lenta e por fases.


Economia


Etimologia
Os gregos chamavam «oikos» à casa, incluindo todo o seu conteúdo e administração; chamavam ao administrador desse conjunto de coisas «nemó». Formou-se assim a palavra «okomos», que designa a administração da casa. A palavra «nomos» designava o acto de contar, ou atribuir, ou distribuir. O sufixo «-ia» indica a qualidade duma coisa. Portanto «economia» designa originalmente as funções de contabilidade e gestão da casa, e circunscreve um âmbito pessoal e patrimonial. Como todas as raízes, esta contém em si a génese da verdade das coisas designadas. A raiz permanece; sem ela a palavra não poderia sobreviver. Mas no decorrer do tempo, das culturas e da História o termo foi desabrochando em novos sentidos. Em 1615, em pleno absolutismo monárquico, Antonio de Montcheretien propôs que, sendo o conceito de economia aplicável à administração do Estado (a casa real), deveria introduzir-se a ideia de «economia política». Mais tarde William Petty publica a Aritmética Política; e por fim Adam Smith publica em 1776 A Riqueza das Nações, trazendo definitivamente o conceito para o âmbito da coisa pública; não por acaso, a Inglaterra adiantava-se então na senda industrial e capitalista. O nome de relevo que geralmente é indicado a seguir é o de Alfred Marshall, que em 1890 publica os Princípios de Economia. O nome que geralmente fica ocultado é o de Karl Marx, que dedica uma vida inteira a reconduzir o estudo da economia à categoria de ciência e por volta de 1867 publica o Livro I de O Capital. Marx torna clara a associação dos modelos económicos e de produção (ou mais exactamente os modelos de apropriação e gestão dos meios de produção) aos factores determinantes (de base) que estruturam uma sociedade de alto a baixo. De facto, no que respeita ao presente artigo, a primeira coisa a assinalarmos na versão moderna da expressão «economia» é a sua adequação à fase actual do modo de produção capitalista.



Uso actual
Com o termo «economia» sucedeu algo semelhante ao termo «mercados» – a memória ancestral foi aculturada e obliterada para gerar práticas e sociedades de sinal contrário às tradicionais. 

Para os meus avós «economia» designava sempre: a poupança, por vezes até ao extremo da frugalidade; a adopção de meios minimalistas para obtenção de resultados maximizados; a arte de gerir e fazer render os recursos à disposição (também chamada economato) no espaço de tempo necessário à reprodução desses recursos (fazer render o trigo até à colheita seguinte, etc.); a adopção e invenção de técnicas capazes de emprestarem durabilidade aos utensílios necessários à vida diária e à reprodução dos bens de consumo indispensáveis; a reserva de recursos monetários e outros, tendo em vista uma aflição futura. 

Hoje, a «economia» designa todo um sistema que aponta exactamente no sentido oposto: produção e consumo máximos, sem olhar aos seus tempos de reprodução nem a garantias de manutenção dos recursos (a muito badalada «sustentabilidade»); programação da sua obsolescência; invenção de técnicas de consumo e produção rápida; substituição da poupança pelo crédito; investimento das poupanças em aplicações sem garantia futura; etc.

Por outras palavras: a «economia» designava um conjunto de práticas intrinsecamente pessoais. Esta intimidade estava muito ligada a um modo de produção pré-capitalista – o detentor duma parcela de terra e duma casa, ou de uma oficina de marroquinaria, tinha de saber geri-las, e isso era um problema seu, pessoal e familiar. Com arte e sabedoria, o indivíduo seria capaz de dominar os recursos à sua disposição (afora as forças incontroláveis da natureza) para obter o máximo rendimento possível e garantir a sobrevivência. Actualmente a «economia» designa exactamente o oposto: um conjunto de mecanismos e fenómenos tão impossíveis de dominar pela mão de cada indivíduo como indomáveis eram outrora todas as forças da natureza. A economia tornou-se impessoal, fora do alcance, do entendimento e da arte do cidadão médio – ele tem de sujeitar-se a fórmulas de sobrevivência económica impostas de fora, apenas lhe restando a escolha aleatória das marcas comerciais do produto ou serviço em questão. Esta subversão de 180º no conceito de «economia», passando do pessoal ao impessoal, do concreto ao abstracto, corresponde claramente à passagem final duma sociedade pré-capitalista para uma sociedade capitalista na sua forma acabada, isto é: não foi apenas o uso e detenção da terra, da casa e dos meios de produção (fossem eles alfaias ou a bancada de marceneiro) que foram subtraídos à posse e ao controle dos nossos avós – o processo de proletarização retirou-lhes o domínio de toda a economia pessoal, expropriando a própria «ideia de economia» em benefício dos detentores de todos os outros meios e técnicas de produção. E, tal como o dinheiro se tornou digital e impalpável, uma espécie de éter que faz mover o mecanismo social, assim também a ideia de economia se tornou etérea, impossível de definir com precisão, eminentemente divina, porque todo-poderosa e contrária ao livre arbítrio.

Onde toda a economia se fazia em nome do interesse pessoal ou familiar, sem rebuços nem disfarces, toda a economia passa a fazer-se... em nome da economia! Este carácter claramente divino – pois os deuses são as únicas entidades tautológicas em condições de remeterem inteiramente para si mesmas – da economia moderna é o de um ente que tem tanto de inalcançável e etéreo, como de desapiedado, inflexível e insondável nos seus desígnios.

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