12/11/16

Impressões categóricas - versão curta


«O Homem Orquestra», de Georges Méliès, 1900

Muitas pessoas lidam hoje com um volume de correspondência e comunicação pessoal que ultrapassou os limites da capacidade individual. A consequência é, muito possivelmente, um desarranjo das funções mentais superiores, sobre o qual tentarei lançar aqui algumas pistas.

09/11/16

Impressões categóricas


«O Homem Orquestra», de Georges Méliès, 1900

Muitas pessoas lidam hoje com um volume de correspondência e comunicação pessoal que ultrapassou os limites da capacidade individual de gestão. A consequência deste excesso é, muito possivelmente, um desarranjo das funções mentais superiores, sobre o qual tentarei lançar aqui algumas pistas.

16/09/16

O grau zero da cultura política


Comentando no jornal Público a entrevista dada pelo juiz Carlos Alexandre, que tem a seu cargo uns quantos processos de corrupção e abuso de poder, Francisco Louçã conseguiu o feito notável de produzir um dos discursos mais horríveis que tenho lido nos últimos tempos, colocando-se ao mesmo nível do de Juncker no discurso anual que este fez sobre o estado da União Europeia. Custa-me muito dizer isto, atendendo à consideração que tenho pelo papel desempenhado por Francisco Louçã na cena política portuguesa ao longo de muitas décadas (e independentemente de ter estado ou não de acordo com as suas propostas), mas contra factos não há argumentos. E os factos são estes:
 
«Um juiz não deve dar entrevistas», afirma Louçã, pois «está a intervir politicamente»; e mais adiante: «Ao contrário do juiz, outras figuras públicas devem dar entrevistas, se o seu espaço natural é o da política». Fica portanto expresso com clareza cristalina que F. Louçã considera o «espaço natural» da justiça no Estado burguês absolutamente alheio à política; remete-a para um espaço imaculado, à margem da sociedade; eleva-a à categoria de anjo inimputável, mudo, cego e surdo a tudo quanto se passa na vida política, ou seja, nos conflitos de interesses que atravessam a sociedade. Mas então, se um juiz nada tem a ver com os conflitos de interesses que atravessam a sociedade, que raio anda ele a fazer por cá? Para que serve a justiça ao certo, se não serve para resolver conflitos de interesse? Qualquer jovem marxista bem formado com 50 anos menos que Louçã já sabe a resposta a esta pergunta e é para ele que aconselho Francisco Louçã a dirigir as suas dúvidas e interrogações.
 
No momento em que alguns meios na nossa sociedade começam a admitir (finalmente!) a necessidade imperiosa de políticos, académicos, comentadores – enfim, qualquer pessoa detentora de um mínimo de autoridade pública –, fazer uma declaração de interesses antes de exercer a sua autoridade, Francisco Louçã vem dizer-nos: não, esperem, calma aí, segurem lá os cavalos, porque nada disso se aplica à justiça!

23/07/16

Tratado do bronco


Uma das coisas mais perigosas em que podemos tropeçar é uma pessoa bronca que tenha a possibilidade de exercer alguma influência na nossa vida. As desgraças daí resultantes serão tanto maiores quanto mais enérgica for a bronquice.
 
É fácil confundir uma pessoa bronca e cheia de energia com alguém medianamente inteligente e fiável. Por defeito de cultura (pelo menos a ocidental), a iniciativa esfuziante ou frenética pode semelhar a inteligência. Um – ou uma, em bom português o género é indistinto na falta de marcador1 –, um bronco mole, sem iniciativa, corresponde com facilidade ao estereótipo da bronquice, pondo-nos logo alerta. Mas o chavasco ágil, dinâmico, por vezes ambicioso, voluntarista, finta com facilidade as primeiras impressões de quem esteja menos atento. E de repente é tarde – deixámos a bronquice entrar na nossa vida, no nosso ambiente de trabalho, na nossa intimidade, e ela revela-se uma lapa, não há forma de nos livrarmos.

21/07/16

Pinochetada à porta de casa



Erdoan (na versão inglesada: Erdogan) começou por ser futebolista. Daí passou a presidente da câmara de Istambul, depois a presidente do partido AKP, depois a primeiro-ministro e por fim tornou-se presidente da Turquia. Pacientemente, amarinhou de jogador de 2ª divisão a árbitro supremo.
 
Poucas horas depois do início do golpe militar, já Erdoan tinha mostrado o cartão vermelho a 3000 turcos aprisionados ou destituídos. Averbemos-lhe um ponto – tanta presteza exige muito trabalho de casa.
 
72 horas depois do golpe, o número de prisioneiros e de gente destituída – funcionários públicos, professores, juízes, estudantes, jornalistas, líderes religiosos, etc. – já ascendia a 60.000. Quanto à comunicação social, foram 24 as licenças revogadas [Esquerda.net].
Eis o aspecto dos prisioneiros:

18/06/16

Hoje aprendi uma palavra nova


Manual da entrista (de Codex Seraphinianus, Luigi Serafini, 1976-78, ed. 1981)

Hoje fui apanhado de surpresa por uma palavra que desconhecia: «enterismo». Numa fracção de segundo, que é o tempo que temos num diálogo dos tempos que correm – onde o intervalo e a pausa são proscritos e todas as decisões têm de ser calculadas e tomadas em milésimos de segundo –, pensei comigo que seria o oposto de «disenterismo» – ou seja, uma prisão de ventre patológica e extrema.

Como não sou completamente parvo e o contexto da conversa era político, pus-me a pensar que «enterismo», ainda que fosse um termo técnico da medicina, neste caso seria metáfora: alguém, ou alguma organização política, armazenava de forma continuada uma quantidade crescente de excremento, até explodir. A não ser que lhe fosse administrado um supositório contra o «enterismo».

29/05/16

O conflito portuário: vale a pena lutar!


«Instalações protegidas» – polícia no porto de Lisboa, 24/maio/2016
[foto de Enric Vives-Rubio]
Embora seja arriscado opinar sobre o desfecho do actual capítulo no conflito entre os estivadores e as empresas portuárias, antes conhecermos o balanço final feito pelos próprios trabalhadores, atrevo-me a dizer que foram alcançadas algumas vitórias, ainda que parciais ou limitadas, e que podemos desde já tirar uma conclusão: vale a pena lutar!

20/05/16

Uma demonstração científica feita em cima do cadáver de Manoel de Oliveira


A EDP criou um concurso para atribuição duma bolsa no valor de 50.000 euros para estudantes de cinema ou artes audiovisuais que apresentem um projecto de filme sujeito ao seguinte critério único (art. 9º do regulamento): «Os critérios de seleção de candidaturas a considerar pelo júri serão inspirados no trabalho do mestre Manoel de Oliveira, um dos grandes precursores do neorrealismo, pelo que serão mais ponderados os filmes ou documentários que prossigam o estilo neorrealista, designadamente que utilizem cenários reais e atores não profissionais.» É uma daquelas tiradas que nos obriga a ler o parágrafo 3 vezes seguidas, para termos a certeza de que lemos bem. Eis Manoel de Oliveira promovido a neorrealista!

Este regulamento arrasa a maior parte do meu universo cultural: todos os filmes supostamente neorrealistas que vi, boa parte deles feitos com actores profissionais e cenários preparados (em estúdio ou a partir de sítios reais) afinal não eram neorrealistas, eram... sei lá, desisto de me deitar a adivinhar. Afinal o realizador Manoel de Oliveira, que eu tinha por inclassificável, era um neorrealista? Uau! Aí está uma chinesice inesperada.

Não vou entrar na discussão de catálogos, estéticas e métodos criativos cinematográficos, matéria em que sou bastante ignorante (mas nitidamente não tanto como a administração da EDP), porque não quero fazer má figura. Quem sabe dessa poda que aí meta seu podão. Mas sugiro que os responsáveis da EDP pelo espantoso regulamento da bolsa sejam sujeitos 3 vezes ao dia, antes das refeições principais, a choques eléctricos, até ficarem definitivamente curados e deixarem de dizer bestialidades sobre assuntos que não dominam. Como já estamos muito escaldados nestes últimos 5 anos, e antes que a população portuguesa se veja obrigada a suportar mais despesas por conta de chulos, sugiro também que seja a própria administração da EDP a pagar a conta dos choques eléctricos.

A criação da «Bolsa EDP Manoel de Oliveira» foi noticiada no Público, onde um leitor se deu ao trabalho de manifestar a sua indignação, dizendo que tem vergonha dos artistas que aceitam dinheiro da EDP, dos bancos, do Estado, etc. Esta é uma daquelas cretinices que já por várias vezes tentei zurzir aqui, mas ela resiste. Seguindo a opinião deste leitor, teríamos de deitar para o lixo a quase totalidade da obra artística universal, pelo menos desde o Renascimento, a começar por J. S. Bach e a acabar em M. de Oliveira. De facto muitos desses autores (não seria o caso de M. de Oliveira, mas adiante) só tiveram dinheiro para comprar pão - e portanto para se manterem vivos e produzirem as suas obras - graças ao dinheiro de mecenas, sejam eles o Estado ou os banqueiros ou os negreiros ou os latifundiários ou os herdeiros de piratas saqueadores das populações costeiras ou qualquer outro ladrão protegido pela lei, pelo Estado e pelo sagrado princípio da propriedade privada (tenha ela que origem tiver), que se encontre cheio de massa e que resolva usar um artista como meio de ostentação.

Recapitulando: o referido leitor indignado do Público tem vergonha desse artista.

Eu, pelo contrário, tenho vergonha dos precários que enganam velhinhas nos call center ou aos balcões de atendimento das companhias de telecomunicações, dos funcionários bancários que enganam reformados e lhes sugam o pecúlio acumulado ao longo de 40 anos de trabalho para o investirem em aplicações financeiras tóxicas, dos responsáveis por departamentos académicos que roubam o trabalho dos seus colegas e sobem na hierarquia às suas cavalitas, dos banqueiros e empresários que fazem fortuna à custa dos impostos alheios, da dívida pública, dos recursos colectivos e da venda de armas, branqueando os seus capitais sujos por meio de falsas lojas, falsas empresas e falsa generosidade mecénica, etc. O indignado leitor do Público pega nesta questão pela ponta oposta: tem vergonha do reformado que foi enganado, do contribuinte que foi espoliado, do artista que foi alimentado, ...

Já há umas décadas um professor universitário italiano cujo nome não me ocorre agora publicou a demonstração de que a estupidez é, à semelhança da velocidade da luz, uma constante do universo: encontra-se uniformemente distribuída e a sua percentagem no total da população é constante, quaisquer que sejam os valores das restantes variáveis; não olha a raças, credos, géneros, graus académicos, nada. A administração da EDP, certamente pessoas excepcionais atendendo ao cargo em que foram investidos, e o referido leitor do Público, certamente um homem comum, tiveram a gentileza de vir confirmar a lei da constância universal da estupidez - e ainda bem, porque é de boa regra científica duvidar de tempos a tempos das conclusões adquiridas e voltar a verificá-las.

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gravura usada: quadro a óleo de Andy Thomas, onde cada pirata representa uma figura notável da história da música norte-americana

14/04/16

Morte aos militares

Decorre um conflito entre as hierarquias militares e as autoridades públicas (civis), a propósito de um conjunto de indícios de comportamento – discriminatório, contrário à norma igualitária vigente no país e à carta dos direitos humanos – ocorridos num colégio militar. O ministro pede explicações à chefia militar sobre a situação; a chefia militar indigna-se perante esta «ingerência» nos assuntos internos da corporação militar.

 
A maioria das pessoas, hoje em dia, não faz ideia do que seja o exército, de como ele funciona internamente, do pacto interno de segredo sobre o que se passa lá dentro. Uma vez que eu tive o desprazer, durante a época da Guerra Colonial e em 1974-75, de ser obrigado a conhecer por dentro essa instituição, vou tentar dar-vos uma vaga ideia do que é aquilo.
 
  
Começo por elucidar que o facto de se estar ou não em guerra não altera um milímetro o carácter do exército. Com ou sem guerra, os princípios, comportamentos e métodos que formam o carácter dos militares de carreira são uniformes.

12/04/16

O Novo Estado


Um dos factores que caracteriza a passagem do Ancien Régime para a República é a separação de poderes dentro do Estado e entre o Estado e a Igreja. Chamemos a esta separação «Estado laico de direito». 

A expressão «laico» significa que o Estado deixou de partilhar o poder com a Igreja ou de subordinar-se ao império da Igreja.
A expressão «de direito» significa que nada na sociedade em questão está acima das leis, nem sequer o próprio legislador. Significa também que existe um conjunto de garantias que protegem os indivíduos e as entidades colectivas dessa sociedade.

Face à evolução dos acontecimentos políticos nas últimas 3 décadas, é aconselhável perguntar:
  1. a separação de poderes continua em vigor?; 
  2. o Estado permanece imune à subjugação ou partilha de poder com alguma forma, clássica ou reinventada, de igreja ou de crença organizada?; 
  3. as garantias individuais e colectivas continuam em vigor? 
Se a resposta a todas as 3 perguntas for afirmativa (todas elas são condições necessárias), podemos concluir que atravessamos apenas um «mau passo», uma fase do «Estado democrático de direito» em que todos os seus vícios e defeitos de nascença se encontram particularmente assanhados. Mas se alguma delas merecer resposta negativa, temos concluir que vivemos um processo de transformação profunda do regime político. Esclareço desde já que a primeira opção (resposta afirmativa às 3 perguntas) é a defendida pela generalidade das correntes de esquerda. Afirmam elas (e com razão, a meu ver) que as contradições internas e a natureza do Estado democrático de direito sempre tiveram aspectos em que a resposta àquelas 3 perguntas é variável; concluem elas (mal, a meu ver) que nada mudou. Assim, por exemplo: a justiça nunca foi rigorosamente igual para ricos e pobres, quanto mais não seja porque os ricos dispõem de melhores meios para se defenderem em tribunal; o aparelho de Estado sempre foi directa ou indirectamente subserviente aos interesses do capital; o Estado afirma-se laico mas atribui subsídios e benesses às igrejas, a umas mais do que a outras; etc.
Não tenho resposta definitiva para estas questões; limito-me a fazer perguntas e apontar algumas vias de reflexão; mas seria desonesto da minha parte não dizer que me inclino para a tese de que a resposta àquelas 3 perguntas é negativa, no todo ou em parte, e que vivemos uma fase de transição de regime.

11/04/16

Que guardam os bancos?


A ameaça de os «bancos sistémicos» arrastarem na sua queda toda a sociedade tornou-se uma espécie pré-anúncio permanente do Armagedão e tem servido para justificar os enormes sacrifícios impostos às populações, devidamente consumado por um sumo sacerdote que dá pelo nome de Autoridade Pública. A palavra sacrifício é apropriada, uma vez que são penas e perdas de vidas o que está em causa.
O que guardarão os cofres dos bancos de tão precioso, de tão misterioso, de tão funesto, que possa desencadear um fim do mundo? A resposta mais comum é: dinheiro, oceanos de dinheiro, muito para além daquilo que a imaginação comum pode alcançar. Se a imaginação não pode alcançar, a resposta é vaga. Impõe-se portanto outra pergunta menos vaga, mas infelizmente mais complexa: o que é o dinheiro?, donde vem?, para onde vai?

12/01/16

A infantilização da população portuguesa


Se há coisa que me bule com os nervos é o hábito eleitoralista de elogiar a «maturidade democrática» da população portuguesa. Esta prática hipócrita e bajuladora é em tudo equivalente à do amigo que se chega à nossa beira com grandes elogios à beleza dos nossos olhos; sabemos que daí a minutos vai cravar-nos 500 paus.
Na sua versão mais objectiva e material, a palavra maturidade remete para um desenvolvimento pleno das capacidades físicas, mentais e produtivas que se esperam de um ser adulto e que permitem exercer os actos necessários aos objectivos pretendidos, incluindo a força quando necessário. A maturidade exprime a nossa capacidade de avaliar uma situação, de sopesar os prós e os contras para decidir o que nos convém e o que não nos convém; define, em suma, o nosso grau de autonomia.
Há pessoas que nascem, vivem e morrem sem nunca conseguirem atingir a maturidade plena; serão sempre dependentes de um tutor, duma mulher que lhes confecciona o jantar, dos bens e rendimentos da família, da opinião dos familiares, dos amigos ou dos chefes para tomarem uma decisão. São um peso para a sociedade, embora a sociedade os tolere por tradição.
A maturidade colectiva duma população deve ser entendida de forma semelhante. O que conta na avaliação da maturidade colectiva é a capacidade de tomar decisões autónomas e de as implementar. O que conta não é a avaliação mais ou menos moral, teórica, exterior, das decisões autonomamente tomadas (fez bem, fez mal, etc.), mas sim o processo interno de avaliação, tomada de decisão e execução da decisão tomada.
Vistas as coisas assim, resulta evidente que só houve um período da história contemporânea durante o qual a população portuguesa entrou decisivamente no caminho da maturidade: no período de 1974-1975. Durante esse período as populações debateram entre si o que mais lhes convinha, tomaram a iniciativa, puseram em prática muitas das suas decisões (frequentemente à revelia dos poderes públicos). Não interessa aqui saber se tomaram ou não as decisões que cada um de nós aprova e julga mais correctas – isso é a visão subjectiva ou moralista das coisas. Interessa saber que estavam no caminho da maturidade, da autonomia. Não delegaram, não esperaram pela decisão e pela iniciativa de tutores – agiram autonomamente.
À época, os políticos defensores da democracia «representativa» e tutelar desataram num berreiro: ai jesus que estão a levar o meu petiz por maus caminhos, ai as más influências (na circunstância as más companhias apontadas eram o PC e as organizações revolucionárias), ai que o meu menino está a tornar-se independente e já não me obedece!
A aventura da maturidade foi atalhada pela força das armas, em 25 de novembro de 1975. Foi uma espécie de palmatoada – porta-te bem, se não queres levar mais. Depois do açoite, veio a fase das falinhas mansas e dos tagatés. Passado pouco tempo, depois de comprovadamente quebrada a espinha da vontade autonómica, iniciou-se a implantação do neoliberalismo.
O que vemos hoje é uma população levada a um estado de infantilização extremo. A capacidade de decisão e acção autónoma está morta e enterrada. A população portuguesa comporta-se (no seu conjunto, entenda-se) como uma criança incapaz de sobreviver por si mesma, sem vigor cívico, sempre dependente das decisões dos seus tutores (que neste momento se situam quase sempre lá longe – já não lá longe em Lisboa, mas mais para os lados de Bruxelas), incapaz de lhes fazer frente, convencida de que, se não vierem ao fim do dia cuidar dela, morre de fome à noite sem jantar.
Esta população sem rumo próprio sorve avidamente as notícias dos jornais e dos blogues onde distantes autoridades académicas debitam palpites sobre a sua (delas, populações) situação. A maturidade crescente a que assistimos em 1975, que fazia com que as populações dissessem: «precisamos de habitações, queremos habitações decentes, e nós é que vamos dizer o que é uma habitação decente, como se faz, como se urbaniza, onde se implanta, que meios existem e que meios faltam para as construirmos, porque essas habitações são para nós lá habitarmos, não são para os patos-bravos nem para os senhores ministros» – essa atitude extinguiu-se plenamente. A população portuguesa está de regresso ao útero materno, tornou-se totalmente dependente, incapaz de avaliar as suas necessidades e o modo de satisfazê-las. Este progressivo retorno ao útero reduzi-la-á em breve a um zigoto. Esperemos apenas que esse zigoto não se transforme no ovo da serpente, como já aconteceu.
Aqueles que têm o descaro de vir a público dizer «ai que menino tão precoce, tão maduro, bilu-bilu-bilu», merecem, a meu ver, que um piano vindo do céu lhes caia em cima e os reduza à massa nojenta de que são feitos.
Poderão vocês contrapor que o mesmo poderá certamente dizer-se de todos os povos europeus. Pois, está muito bem, façamos de conta que sim; mas quando se olha por exemplo para Espanha, aqui ao lado, percebe-se que há uma diferença, apesar de tudo, ou não?

03/01/16

O episódio final da farsa democrática

 
Ainda agora começou a campanha presidencial e já se percebe que estreou o derradeiro episódio do avacalhamento democrático. Em vez duma visão política das coisas, os debates entre candidatos à Presidência têm-nos brindado com conversa de café, feita de minudências e faits-divers (uma espécie de marcelo-rebelização de todos os candidatos); o posicionamento político e ideológico parece ser tabu, atitude escabrosa que os candidatos, à direita e à esquerda, evitam com cautela. Abro uma excepção honrosa para Paulo Morais; ainda que eu não alinhe na sua defesa social-democrata do capitalismo, parece ser o único que nem tem vergonha de defender aquilo que é, que pensa e que projecta, nem abdica duma postura política e de Estado. De resto, até os candidatos directamente escolhidos por decisão partidária parecem ter sido seleccionados entre o refugo que lá havia, apenas com o fito de ocupar o tempo de antena disponível.