29/05/16

O conflito portuário: vale a pena lutar!


«Instalações protegidas» – polícia no porto de Lisboa, 24/maio/2016
[foto de Enric Vives-Rubio]
Embora seja arriscado opinar sobre o desfecho do actual capítulo no conflito entre os estivadores e as empresas portuárias, antes conhecermos o balanço final feito pelos próprios trabalhadores, atrevo-me a dizer que foram alcançadas algumas vitórias, ainda que parciais ou limitadas, e que podemos desde já tirar uma conclusão: vale a pena lutar!

Segundo as notícias a que tive acesso, sindicato e patrões fizeram algumas cedências durante as negociações patrocinadas pelo governo e levadas a cabo a noite passada. Após um período tão longo de luta (vários anos) e de greve (mais de 30 dias), é compreensível que os trabalhadores estivessem desejosos de pôr fim a esta fase do conflito. Ao contrário do que afirmam os assessores de imprensa de direita, a greve prolongada constitui motivo de enorme sofrimento e angústia para qualquer trabalhador. Entrar em greve, para além de provocar uma disrupção no equilíbrio pessoal – pois vivemos numa cultura que, à direita e à esquerda, endeusa o trabalho e condena quem não labora num emprego à figura de pária e sanguessuga –, é como ir para a guerra armado com uma faca de mesa, sabendo que o inimigo possui metralhadoras e bombardeiros – é preciso um ânimo heróico, um monumental espírito de sacrifício, difícil de manter durante muito tempo. Temos por isso de começar por reconhecer a coragem e a capacidade de organização dos estivadores e do seu sindicato.

Uma vitória importante do direito à greve e à associação de classe

Quando a polícia entrou no porto de Lisboa para reprimir os grevistas e proteger a entrada de precários em substituição dos grevistas e a transferência dos meios de produção para outros portos (acção esta inacreditavelmente ilegal e ilegítima), os patrões julgaram que, a coberto das espingardas do Estado, podiam aproveitar para agarrar a mão e tomar o braço todo: ameaçaram um despedimento colectivo no prazo de poucos dias. Ora um despedimento (colectivo ou individual) durante uma greve tem um sentido claro: cancelar o direito à greve. De facto, um trabalhador que já não o é (por despedimento) não pode fazer greve – e assim ficam resolvidos os problemas da entidade patronal.
 
Operários em greve, 1912
[Arquivo Municipal de Lisboa – Arquivo Fotográfico]

A suspensão da ameaça de despedimento é pois uma importante vitória dos direitos do trabalho – tão importante que só isso já bastaria para celebrarmos com foguetes e espumantes.
Resta saber o que vai acontecer aos mais de 40 processos disciplinares instaurados durante a greve.
Há ainda a assinalar outra derrota do patronato, que pretendia que os trabalhadores assinassem o compromisso de não fazerem greve durante 6 anos. Se este compromisso fosse assinado – e se o Governo e os tribunais o considerassem legítimo –, estaria aberto um precedente que nos levaria de volta a 1840: as regras impostas pelo patronato passariam a valer mais do que a lei, pondo fim ao que resta do Estado de direito e a todos os direitos do trabalho. Pela bitola desta reivindicação se mede o grau de canalhice dos patrões dos portos.

Uma vitória da luta contra a precariedade

Tanto quanto pude perceber, um certo número de trabalhadores precários (menor do que os estivadores pretendiam de início) será admitido nos quadros das empresas portuárias, de forma faseada. Parece-me, à luz das limitadas informações de que disponho, que o patronato obteve aqui um armistício, evitando uma derrota total e aguardando melhor oportunidade para levar a sua avante. No entanto, entre o projecto patronal de se ver livre de todos os trabalhadores com contrato sem prazo, passando a operar apenas com precários contratados à jorna – pois era esse um dos alvos do despedimento colectivo –, e o acordo agora alcançado vai uma distância imensa, que tem de ser vista como uma vitória, ao menos parcial, na luta contra o trabalho precário.
Infelizmente, esta vitória, ainda que apreciável, é bastante relativa, pois essa coisa da precariedade tem muito que se lhe diga.

Breve nota histórica sobre a precariedade

A partir da década de 1970, vários politólogos, sociólogos e outros pós-modernaços procuraram, através de elaborados discursos que sobretudo se enlevam de si mesmos, criar uma novidade conceptual; autores como Guy Standing [O Precariado – A Nova Classe Perigosa, Editorial Presença, 2014] defendem que existe uma nova classe social: o precariado. Este neologismo provém da contracção de «precariedade» com «proletariado» e visa separar conceptualmente a «nova classe» da antiga (o proletariado). Por sua vez, a noção de «precariedade» usada por esses autores provém duma obra remetida para as brumas do esquecimento: Trabalho e Trabalhadores na Arlia, de Pierre Bourdieu (1963); este, por sua vez, foi repescar o conceito de «precariedade» em A Condição da Classe Operária em Inglaterra, de Friedrich Engels e Karl Marx (1844). Marx desenvolve mais tarde o conceito, ao estudar a «lei da acumulação capitalista», e estabelece um padrão: a precariedade dos assalariados é directamente proporcional ao grau de acumulação capitalista – ou seja, em termos mais simplificados: é nas épocas de maior concentração capitalista que os assalariados e todo o exército de reserva laboral se em sujeitos às condições mais precárias. Estas condições incluem um conjunto variado de factores (incerteza dos laços laborais; insegurança nas condições de trabalho; incerteza na remuneração; incerteza na velhice, na doença, etc.) e estes factores, ao contrário do que dizem os referidos autores, nada têm de excepcional – a precariedade faz parte da natureza das relações entre o proletariado e o patronato; é um elemento intrínseco e necessário à condição de assalariado; é um factor inerente ao emprego, ao trabalho assalariado e ao exército de reserva laboral, incluindo os não assalariados, como explica Marx detalhadamente. «Quanto mais riqueza alheia os trabalhadores produzem, quanto mais aumenta a produtividade do seu labor, tanto mais a sua função na valorização do capital se torna precária» [Marx, O Capital, vol. 1].
Esta lei simples, descoberta há 170 anos, continua a confirmar-se na actualidade: o agravamento da precariedade corresponde a uma furiosa concentração de capitais em todo o mundo.
Por outras palavras, a situação de trabalhadores que não sabem se amanhã ou na próxima semana ou mês terão trabalho, quanto irão ganhar, onde encontrarão trabalho, em que condições, etc., enfim, a precariedade em todas as suas facetas é uma situação inerente ao trabalho assalariado. O que é excepcional, por assim dizer, é uma situação, conquistada e consolidada na Europa durante um breve período pós-II Guerra Mundial, em que uma parte dos trabalhadores conseguiu usufruir de relativa estabilidade e segurança nas suas vidas.
Basta uma pequena desatenção, uma ligeira lassidão do espírito combativo, para que vão por água abaixo toda a segurança, todas as certezas, toda a estabilidade alcançadas à custa de muito esforço, muita combatividade e até de muito sangue. Quando a frouxidão impera nas hostes organizadas do trabalho, não espanta que nos deparemos com um cenário que mais parece um retorno a meados do século XIX, quando os trabalhadores não podiam olhar para as janelas do edifício onde trabalhavam, ir à casa de banho ou falar uns com os outros, sob pena de despedimento sumário; quando trabalhavam 10 a 16 horas diárias (como os estivadores hoje em dia); quando frequentemente morriam ou pariam de pé no local de trabalho.
Por todas estas razões, o alcance da luta dos estivadores contra a precariedade dos seus colegas ultrapassa os limites estreitos dos seus interesses corporativos. Assim sirva ela, por comparação com outros sectores, para ajudar outros trabalhadores a tomarem consciência das consequências funestas da frouxidão no enfrentamento com o capital.

Breve nota histórica sobre a actividade portuária

O comediante Coluche,
candidato à presidência
da República em 1980-81
[Martino75, CC BY-SA 3.0]
Certos sectores da sociedade são particularmente atreitos à podridão e à corrupção. Tal é o caso das actividades económicas ligadas ao trânsito de cargas e mercadorias, com particular destaque para as zonas alfandegárias e portuárias. Esta podridão não é exclusiva do sistema capitalista – impera no empresariado ribeirinho pelo menos desde a época dos Descobrimentos. Por que razão a Coroa e a República concederam a particulares o desempenho burocrático e operativo das actividades portuárias é coisa que me escapa, por falta de vagar para estudar o assunto e porque as equipas académicas encarregadas de o fazer – ainda que eventualmente tenham conseguido encher várias prateleiras dos arquivos universitários com ensaios e monografias sobre o lodo do cais – não tiveram a bondade, ao longo dos longos anos que já dura o conflito entre trabalhadores portuários e respectivos patrões, de vir a público exercer a chamada «divulgação científica» e explicar-nos com palavras simples o contexto histórico do conflito.
Não me estranha esta estranha ausência, este retiro em ebúrneas alturas das elites da cultura dominante, porque dos meios académicos portugueses (salvo honrosas excepções) tenho a opinião de serem um gueto que na cantina, ao almoço, por baixo da mesa, nos dias pares emperna (actividade louvável, por ser muito legítima a arte da sedução e muito saudável o instinto sexual) e nos ímpares dá caneladas (por ser necessário no sistema académico vigente a competição canina, ainda que pouco sadia e muito mediocratizante); à noite dos dias pares e ímpares, armados de fatiotas de gosto duvidoso e penteados aparatosos, aparecem a debitar inutilidades nos jornais televisivos, dedicam-se a discutir a tabela salarial dos estivadores e outras minudências que em nada elucidam e em tudo empecilham a descoberta das leis gerais da sociedade. É o papel que lhes cabe no espectáculo da política e é natural que, perante o aparecimento inopinado de um qualquer Coluche, lhe façam ameaças de morte e o expulsem dali.
 
 
 Doutoramento Honoris Causa do Eng António Guterres
em 22 de Maio de 2016 na Universidade de Coimbra

Os despachantes (nome dado aos empresários concessionados pelo Estado para executarem as burocracias alfandegárias que deviam caber ao Estado) eram, de modo geral, uns canalhas capazes de tudo fazerem por um envelope de notas passado por baixo da mesa. Desta forma, um empresário poderoso ou uma corporação de empresários podia comprar os despachantes para que estes atrasassem a entrega das mercadorias destinadas à concorrência. Os pequenos comerciantes, as pequenas empresas, com menos meios de compra e corrupção – e embora os despachantes recebessem duns e doutros com igualitária vontade –, viam apodrecer à beira-rio os seus produtos, juntamente com os meios de produção e as matérias-primas que lhes eram destinados e de que necessitavam para produzir, acabando muitas vezes por falir. Disto nunca se fala, mas quando um estivador faz greve, aqui d'el-rei que vai ao fundo a nação.
Em suma, as empresas de despachantes e outras entidades do tráfego portuário são, desde há séculos, uma peça fulcral na acumulação primitiva, na concentração de capitais e poderes, na distribuição internacional da produção e do trabalho. Tudo isto acontece sob o patrocínio das autoridades públicas, que decidiram há séculos privatizar um sector tão importante para a sociedade no seu conjunto.
A actividade dos despachantes atingiu por fim um tal grau de canalhice e poder, que o próprio Estado que os tinha estabelecido acabou por ter de lhes pôr freio. Mas o poder fulcral do trânsito de mercadorias e da actividade portuária nem pouco mais ou menos se esgota nos despachantes – e é aí que encaixa a luta dos estivadores contra os patrões portuários.
Nas notícias a que tive acesso, não encontrei indícios de que as autoridades públicas tivessem vontade de atacar de frente o poder imenso das empresas privadas que dominam a estiva e o tráfego portuário; pelo contrário parecem protegê-las indirectamente, pondo cobro conciliatório aos seus excessos, deitando água na fervura que agitava o lodo a propósito da greve dos estivadores.
A luta dos estivadores esteve, de facto, à beira de colocar este tema em cima das mesas redondas e nas parangonas dos jornais. Mas eis senão quando, o primeiro-ministro entra abruptamente em cena e põe fim (provisório) ao conflito entre estivadores e patrões. Esta intervenção providencial silenciou mais uma vez o problema fulcral do trânsito alfandegário e de mercadorias. E nós não podemos pedir ao minúsculo grupo social dos estivadores que trave esta batalha por nós todos, que por nós todos já muito fizeram eles. Compete-nos agora fazer o resto e pôr ordem no lodaçal das empresas portuárias.



Referências

Breve lista de trabalhos e referências sobre o labor portuário, elaborada à pressa e sem sair de casa:



Lei n.º 3/2013 – 14/01/2013 – estabelece o regime jurídico do trabalho portuário.

Influência do Modelo de Governação das Admnistrações Portuárias no Seu Desempenho – Luísa Maria do Rosário Roque, 2015, Instituto Politécnico de Lisboa, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa, ISCAL.

Análise do Trabalho Portuário: Transformações Decorrentes da Modernização dos Portos – Regina Maciel, Rosemary Cavalcante Gonçalves, Tereza Matos, Marselle Fernandes Fontenelle, João Bosco Feitosa dos Santos – Revista Psicologia Organizações e Trabalho, 01/2015; 15(3):309-321.

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