05/03/20

Quando imobiliário casa com sociopatia...


No decurso da semana finda, as autoridades públicas despejaram grande número de famílias residentes no Bairro Bensaúde (Olivais, Lisboa). No final desta operação, que ainda está em curso, espera-se que sejam desalojadas mais de 100 pessoas, na sua maioria menores, incluindo crianças com menos de um ano de idade. Os despejos têm sido acompanhadas pela destruição de bens pessoais. Não se registaram actos de resistência por parte dos moradores.

Estas famílias, vendo-se na rua, ao frio, ao vento e à chuva, sem acesso a uma alternativa de habitação, nem sequer a um abrigo provisório, fizeram o que qualquer homo sapiens teria feito: tentaram proteger-se a si e às suas crias, improvisando abrigos com lonas. A polícia foi enviada ao local (estamos a falar de polícia municipal e polícia de choque!) para desmontar os abrigos improvisados …

As autoridades públicas «justificam» o seu comportamento bárbaro com o facto de: 1) estas famílias terem ocupado as casas (que servem para fins sociais e estavam vagas); 2) existir uma decisão dos tribunais, datada de há vários anos, declarando a ilegalidade daquela ocupação. Note-se que algumas destas ocupações, segundo relato dos moradores, duram há 10 anos e os moradores tiveram de investir consideravelmente em obras, porque as entidades encarregadas de gerir as habitações sociais em causa nem as atribuíram a ninguém nem investiram na sua conservação e melhoria.

É importante sublinhar que estamos a falar da execução de uma decisão judicial com data vários anos anterior ao actual pico da crise de habitação e portanto totalmente desadequada à situação de emergência social hoje vivida.

02/03/20

Redes sociais e activismo


Modelo de estudo de uma rede social [cc Martin Grandjean (2014). «La connaissance est un réseau». Les Cahiers du Numérique 10 (3)]

Sendo todo o mistério potencialmente místico, não é de estranhar que o fogo domesticado tenha sempre exercido um fascínio peculiar sobre os seus mestres. Um serrote, pelo contrário, não provoca esse tipo de fascínio. Fogo e serrote pertencem a duas categorias nebulosas: a das coisas animadas e a das coisas inertes. Enquanto o serrote fica ali parado na bancada, sem nada fazer que não seja pela mão da nossa vontade, as chamas aparentam respirar, dançar, ter humores, desenrolar uma narrativa infinita – parecem dotadas de vida anímica ou espírito [1]. De resto, todos os objectos capazes de movimento próprio tendem a ser encarados numa perspectiva animista: Sol, nuvens, Lua, fogo, águas da ribeira, parecem dotados de vontade própria.

Poder-se-ia acreditar que, à medida que vamos construindo uma imagem científica do mundo, a tendência para criar objectos «espiritualizados» tenderia a extinguir-se. Nada disso. O que acontece é que ela se desloca em direcção a novos mistérios. Mesmo não entendendo a natureza e o funcionamento intrínseco das redes digitais [2], podemos fazer delas uso abundante – limitamo-nos a usá-las e isso nos basta, sem necessidade de compreendermos as suas entranhas, tal como podemos usar o fogo sem termos a menor ideia sobre a sua natureza física e química. As redes digitais crescem, mirram, evoluem, permitem a manipulação e transmissão de dados, tudo isto de forma misteriosa para os não iniciados. Por isso podem adquirir uma aura mística, como se fossem entidades vivas animadas de vontade própria.