Modelo de estudo de uma rede social [cc Martin Grandjean (2014). «La connaissance est un réseau». Les Cahiers du Numérique 10 (3)]
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Sendo todo o mistério potencialmente místico, não é de estranhar que o fogo domesticado tenha sempre exercido um fascínio peculiar sobre os seus mestres. Um serrote, pelo contrário, não provoca esse tipo de fascínio. Fogo e serrote pertencem a duas categorias nebulosas: a das coisas animadas e a das coisas inertes. Enquanto o serrote fica ali parado na bancada, sem nada fazer que não seja pela mão da nossa vontade, as chamas aparentam respirar, dançar, ter humores, desenrolar uma narrativa infinita – parecem dotadas de vida anímica ou espírito [1]. De resto, todos os objectos capazes de movimento próprio tendem a ser encarados numa perspectiva animista: Sol, nuvens, Lua, fogo, águas da ribeira, parecem dotados de vontade própria.
Poder-se-ia acreditar que, à medida que vamos construindo uma imagem científica do mundo, a tendência para criar objectos «espiritualizados» tenderia a extinguir-se. Nada disso. O que acontece é que ela se desloca em direcção a novos mistérios. Mesmo não entendendo a natureza e o funcionamento intrínseco das redes digitais [2], podemos fazer delas uso abundante – limitamo-nos a usá-las e isso nos basta, sem necessidade de compreendermos as suas entranhas, tal como podemos usar o fogo sem termos a menor ideia sobre a sua natureza física e química. As redes digitais crescem, mirram, evoluem, permitem a manipulação e transmissão de dados, tudo isto de forma misteriosa para os não iniciados. Por isso podem adquirir uma aura mística, como se fossem entidades vivas animadas de vontade própria.
Boa parte da literatura sobre redes digitais e as redes sociais enreda-se num emaranhado de explicações técnicas. O que nos interessa aqui são sobretudo as suas implicações sociais e políticas.
Características e tipos de rede
As redes sociais são um caso particular dos sistemas complexos [3]; foi-lhes dedicado um ramo da ciência relativamente recente, cujos ensinamentos têm sido usados pela indústria privada para maximizar os lucros e controlar o comportamento dos consumidores.
Duas coisas devem ser tidas em consideração: 1) o elemento essencial numa rede são as pessoas; não são os computadores, os telemóveis e os cabos [4]; 2) os elementos essenciais da rede (as pessoas), ao usarem aqueles meios instrumentais, encontram-se automaticamente no duplo papel de produtores e consumidores. Exemplo bem conhecido: a Wikipedia – mas neste caso trata-se de uma rede sem fins lucrativos, o que a torna muito mais simples e transparente do que as redes criadas pela indústria com fins lucrativos.
Simplificando o aspecto técnico da coisa: as redes digitais podem ser vistas como ferrovias por onde circula informação (dados e mensagens). Os veículos encarregados de transportar e entregar a informação têm de sujeitar-se a regras, caminhos e «apeadeiros» tão estritos como os de uma ferrovia: não podem descarrilar, não podem ir a corta-mato por caminhos desconhecidos; todos os caminhos possíveis e todos os pontos de entrega da informação são previamente registados e mapeados.[5] Esta característica, como se sabe, abriu a porta a um mecanismo panóptico com poderes jamais alcançados na história dos regimes políticos.
Como referi, as redes sociais são essencialmente constituídas por membros (pessoas); o resto são utensílios inertes. Além disso possuem um par de propriedades funcionais que as definem enquanto rede: a porosidade e um sistema de relações internas.
Porosidade. A porosidade denota o facto de as redes serem sistemas permeáveis à constante entrada e saída de membros. Resulta daqui que uma rede com apenas 5 elementos activos pode no instante seguinte agrupar 5 milhões de membros, e vice-versa. Mas como a porosidade é uma propriedade uniforme e comum a todas as redes, não basta para distinguir uma rede de outra.
Relações internas. Esta expressão refere-se um conjunto de relações entre os membros da rede – vulgarmente designadas interactividade –, espelhando no mundo virtual da rede digital um conjunto de relações sociais existentes no mundo físico, na sociedade de carne e osso. Para que um novo membro participe numa rede, terá de estabelecer certos tipos de interacção com os restantes membros; uma vez quebradas essas relações, ele torna-se alheio à rede. Por conseguinte não existe rede social sem um sistema de relações internas perfeitamente definido, que nos permite distinguir uma rede de todas as outras. Isto significa que os mesmos 5 elementos que formam uma rede podem pertencer igualmente a outra, sem que ambas se confundam, o que se torna evidente, por exemplo, quando os membros de uma família pertencem a clubes ou partidos rivais.
A estas duas propriedades essenciais é preciso juntar um factor que lhes confere maior sentido político e social:
Propriedade, controlo e destino. A quem se destina o fluxo de informação? A indivíduos isolados (caso do correio electrónico) ou a grupos? (caso dos fóruns digitais). Quem detém a propriedade e o controlo dessa rede? (isto é, dos meios de produção da rede) – todos os membros dessa comunidade?, um estranho à rede?, uma elite interna?, uma elite externa? Quem concebe o funcionamento e o público alvo da rede? – as próprias pessoas, de forma livre?, ou uma empresa privada?
O problema da concepção e controlo instrumental duma rede digital remete para a questão geral dos sistemas de produção e poder. Dito doutra maneira: as redes digitais não permitem criar um maravilhoso mundo virtual onde possamos refugiar-nos da sociedade capitalista em que vivemos e fugir às suas regras. Significa isto que as redes sociais com objectivos anticapitalistas têm de se tornar «auto-imunes» … isto é, têm de ser reflexivas e vigilantes em relação aos instrumentos que sustentam a sua própria existência, sob pena de jogarem o jogo do inimigo.
Vantagens das redes sociais como instrumento transformador
As redes sociais podem ser muito variadas nas suas formas e fins. Umas visam objectivos colaborativos (listas de correio de trabalho, divulgação, fóruns, etc.); outras servem fins eminentemente individualistas (tipicamente, o Facebook, embora este possa ser toscamente usado de outras formas, na mesma medida em que nada me impede de usar uma enxada como martelo). Vou focar-me sobretudo nas redes digitais que servem objectivos comunitários e são permeáveis à produção colectiva – ou seja, nas redes colaborativas. Podem incluir-se neste grupo os fóruns, WhatsApp, Signal, Google Groups, entre muitas outras. Este tipo de redes permite realizar importantes saltos qualitativos nos métodos de acção colectiva, podendo servir não só como meio de comunicação e produção, mas também como meio de decisão colectiva, democrática e horizontal.
Dado que um conjunto de activistas numeroso não consegue manter-se em contacto presencial permanente, nem pode reunir a todo o instante para preparar decisões e acções urgentes, gera-se com frequência uma hegemonia protagonizada pelo grupo de activistas mais disponíveis e voluntariosos; esta hegemonia, a prazo, ameaça traduzir-se numa hierarquia [6]. No pólo oposto, encontramos redes sociais onde, apesar de haver um conjunto de pessoas mais activas em prol da coisa colectiva – como é inevitável em qualquer grupo –, não existe uma direcção centralizada e permanente. Esta atitude depende sem dúvida do ideário dos membros do grupo, mas em muitos casos não seria materialmente possível sem o auxílio instrumental das redes digitais.
Muitos sindicatos oferecem o exemplo clássico da hierarquização, transformando os delegados em dirigentes e acabando estes por formar uma elite inamovível. A observação de diversos casos concretos leva-me a crer que, uma vez encetado o caminho da hierarquização dentro de um grupo, não há retrocesso possível: só a ruptura permite transformar a situação.[7] Esta conclusão situa-se no pólo oposto das teorias reformistas, segundo as quais seria possível progressivamente mudar as relações, a estrutura e o funcionamento dos aparelhos de poder. Noto que no decorrer da última década muitos sindicalistas parecem ter chegado a esta mesma conclusão (a ruptura como única solução possível), criando novos sindicatos autónomos, ao cabo de várias décadas de tentativas infrutíferas para anular as hierarquias sindicais.[8]
O factor disruptivo [9] que certo tipo de redes introduz na equação «hierarquia versus anarquia» consiste na possibilidade de a todo o instante, antes de ser tomada uma decisão, antes de ser executada uma acção, haver consulta colectiva instantânea. A utilização de redes digitais permite decidir rapidamente e de modo horizontal (isto é, sem recurso a hierarquias). Esta capacidade, no entanto, coexiste com outra característica importante: a transmissão de informação através das redes digitais acarreta um tempo intrínseco de leitura – tempo esse que num plenário presencial é sempre muito reduzido ou nulo, prestando-se por isso à manipulação da assembleia.
Outro aspecto importante reside no facto de a transmissão de informação ser linear. Numa assembleia presencial e na ausência de uma mesa directora dos trabalhos, há tendência para a instalação duma desordem improdutiva. Num encontro em rede digital isto não acontece, porque as mensagens sucedem-se linearmente, sem necessidade de intervenção directiva. Além disso, o tempo intrínseco de leitura abre espaço à reflexão, se for essa a vontade dos seus utentes.
Assinale-se ainda outra característica importante das redes digitais: a memória – ou seja, o registo automático de todos os acontecimentos e dados.[10] Tudo fica registado, não há lugar para discussões do tipo «diz que disse» nem para a manipulação da memória. Esta qualidade favorece o confronto permanente entre teoria e práxis.
Convocação versus mobilização
As acções colectivas são balizadas por dois momentos: a convocatória inicial e a mobilização final. A convocatória é o acto inicial que consiste no apelo à participação numa determinada acção futura, podendo assumir variadíssimas formas: panfletos, anúncios, cartazes, contacto pessoal, etc., acrescendo hoje em dia o expediente das redes sociais. Quanto à mobilização, traduz a participação efectiva no acto colectivo.
É importante perceber as relações entre estes dois momentos e o grau de eficácia dos vários modos de convocação, caso a caso. Estão em jogo os seguinte parâmetros, entre outros: 1) o contacto pessoal, por razões que estão inscritas no nosso ADN, tende a ser mais mobilizador do que o contacto virtual; contudo, pode não haver activistas suficientes para abarcar todo o universo alvo, resultando daí um défice de mobilização, face ao potencial colectivo; 2) a convocatória virtual (via rede digital) permite abranger um universo incomparavelmente mais vasto; por outro lado, está razoavelmente provado que o uso de certos meios de convocatória virtual (por exemplo, o Facebook) tendem a provocar descargas endócrinas que conferem satisfação imediata suficiente, diminuindo o impulso para a participação efectiva – o acto virtual tende a «comer» o acto efectivo, de tal modo que, apesar de aumentar o número de likes e polegares erectos, pode murchar a mobilização.[11]
Graças ao moderno estudo pluridisciplinar dos sistemas complexos, a relação entre a dimensão da população-alvo, o número de contactos directos, o alcance dos contactos virtuais, o tipo de relações em jogo e a mobilização efectiva pode ser estudada e simulada num modelo digital (virtual) interactivo. Mas será imprescindível, para obtermos resultados eficazes, recorrer a semelhantes meios de análise, tão sofisticados e difíceis de pôr em prática, ou bastará, em muitos casos, o simples bom senso? Suponhamos que o universo-alvo é de 30 trabalhadores numa fábrica em luta contra a entidade patronal e que os delegados sindicais presentes são em número suficiente para agitar todo esse universo; neste caso torna-se evidente que preparar e publicar convocatórias virtuais redundaria em perda de tempo e energia. No entanto, nos casos que envolvem um vasto universo de potenciais interessados (por exemplo, as centenas de milhares de famílias com problemas de habitação), o conjunto de factores em jogo torna-se muito mais complexo e portanto haveria todo o interesse em recorrer aos modelos de simulação informática, para estudar as melhores formas de utilização das redes digitais.
O benefício da visibilidade
O exemplo anterior levanta outra questão: por vezes a divulgação de uma acção através das redes sociais, ainda que não confira maior poder de mobilização, cria uma visibilidade que de outra forma não existiria. Este aspecto é particularmente importante, sobretudo numa época em que os meios hegemónicos de comunicação social silenciam a voz dos trabalhadores, dos moradores, das minorias oprimidas, etc. Deste silêncio resulta que as acções realizadas deixam de existir – a regra é simples: o que não existe nos media tende a não se consolidar, como se nunca tivesse existido. Pode acontecer, por exemplo, que a acção dos moradores de um bairro contra os respectivos senhorios resulte numa grande vitória pontual; mas se essa vitória não tiver visibilidade junto da população em geral, se não suscitar solidariedades e não convocar uma certa alegria de viver e lutar noutros sectores, é quase certo que mais tarde ou mais cedo ela será revertida, traduzindo-se a prazo numa derrota.
Por conseguinte os activistas têm de ter uma visão clara das vantagens e desvantagens do uso das redes sociais, de modo a afinarem o conteúdo da comunicação em função dos objectivos propostos. Trata-se de perceber onde deve ser posta a tónica da comunicação, caso a caso: convocar ou tornar visível? O conteúdo de um post ou de um comunicado varia muito, consoante se trate de convocar ou de tornar visível – as palavras adequadas à mobilização (aquelas que exaltam a vontade de agir, geralmente breves, assentes em pressupostos e sentimentos tácitos) são muito diferentes das palavras adequadas à divulgação (aquelas que explicam, contextualizam, oferecem uma narrativa, suscitam a empatia); é preciso optar caso a caso, até porque tudo à molhada no mesmo saco torna-se geralmente ilegível. Muitas vezes será necessário produzir dois tipos separados de comunicação: uma para mobilizar internamente, outra para garantir a visibilidade externa.
O combate à dispersão objectiva e subjectiva
Noutro estudo cuja conclusão se arrasta há anos, chamo a atenção para a importância duma mudança estrutural imposta pelo capital após a II Guerra Mundial: a dispersão dos assalariados. Até meados do século XX, os operários de uma unidade de produção encontravam-se quase sempre amontoados num lugar, nuns casos em vilas operárias junto à fábrica ou mesmo dentro dela (como sucedia na Carris, em Alcântara, Lisboa), noutros casos em bairros periféricos; desta forma, a reunião presencial, muito forte no local de trabalho, prolongava-se no «tempo livre», e esta proximidade permanente favoreceu a combatividade, o debate, a formação política e organizativa. No pós-guerra o capital conseguiu reunir as condições necessárias para desembaraçar-se deste caldo de cultura: os assalariados foram dispersos pelas periferias urbanas; foram dispersos geograficamente de tal forma que a «reunião plenária permanente», chamemos-lhe assim, passou a ser materialmente impossível; por consequência deixou de haver identificação entre trabalho, classe e vizinhança; o espírito de comunidade e identidade esmoreceu. Foi, a meu ver, uma das maiores derrotas na história dos assalariados.
A fórmula da dispersão provou ser tão proveitosa para o capital, que este levou-a mais tarde às suas últimas consequências, com o fraccionamento e dispersão geográfica das empresas.[12]
Durante décadas, os assalariados tiveram dificuldade em anular o impacto da estratégia dispersiva. À falta de proximidade e concentração, muitas organizações (sobretudo as sindicais) ficaram ainda mais expostas ao bichinho da hierarquização (pelas razões já expostas).
Ora as redes digitais permitem colmatar parcialmente o vazio criado pela dispersão. Esta capacidade tem fortes limites, como veremos adiante, mas ainda assim é um instrumento notável na luta contra a estratégia dispersiva. A sua força (virtual) tem sido fortemente atacada pelo capital, que aplica enormes esforços para desviar o uso das redes digitais noutras direcções, tornando-as um entretenimento, uma distracção que eleva a estratégia da dispersão a um novo patamar: a dispersão subjectiva.
O poder de convocação da rede digital – capaz de pôr milhares de movimentos sociais na rua, à escala planetária, de forma coordenada, no espaço de poucas horas – e o seu poder de concentração – aproximando virtualmente os membros de comunidades fisicamente dispersas – é uma poderosa arma que o capital e as autoridades públicas deixaram inadvertidamente ao alcance dos explorados e oprimidos. Uma arma de concentração, concertação e convocação.
Limites e armadilhas dos instrumentos digitais
É frequente, mesmo em grupos muito pequenos de activistas com funcionamento não hierárquico, serem trocadas ao longo do dia mais de 200 mensagens. Tomando por referência uma jornada diária de 8 horas, isto equivale a um ritmo médio alucinante: uma mensagem a cada dois minutos e meio – um autêntico call center! Ninguém, num escritório, numa fábrica ou em casa, consegue produzir, e muito menos reflectir, se o telefone interrompe a cada dois minutos. Este frenesi não significa necessariamente a preexistência de uma patologia de comportamento, agudizada pela natureza das redes digitais; pode resultar, muito simplesmente, do cruzamento entre os imponderáveis da vida, um conjunto de tarefas previamente estabelecidas e a existência de um instrumento de comunicação digital capaz de maximizar os ritmos de produção. O problema, porém, é que um tal ritmo, além de ser aflitivamente semelhante ao vício do produtivismo, pode afastar os elementos do colectivo com melhores instintos de autodefesa contra ambientes de obsessão, ansiedade (tudo é urgente, a tempo inteiro, mesmo às 4 da manhã) e outras patologias semelhantes. Em ambiente de participação não hierárquica e na ausência de uma entidade moderadora, pode não ser possível pôr freio aos elementos que produzem avalanches incontinentes de mensagens e opiniões a cada 5 minutos. Esta é a via pela qual uma rede digital, apesar do seu potencial anti-hierárquico e auto-reflexivo, pode também ela acabar por produzir uma elite hierarquizada, composta por um grupo de maníacos freneticamente ansiosos.
Por outro lado, seria erro grave pensar que as redes digitais podem substituir os plenários presenciais; elas não são um substituto, limitam-se a proporcionar um acréscimo qualitativo – mas para acrescentarem a alguma coisa, essa coisa tem de existir previamente … sob pena de apenas servir para gerar grupos vazios de interesse social.
A dinâmica do encontro presencial é muito distinta da dinâmica do encontro virtual, tendo ambos os modos vantagens e desvantagens, facilidades e dificuldades, armadilhas e seguranças. Num encontro presencial a quantidade de mensagens transmitidas é infinitamente superior ao fluxo da transmissão digital: a postura, o gesto, o tom de voz, tudo constitui um importante fluxo de informação. Este manancial está ausente no encontro virtual [13], onde apenas temos ao nosso dispor a escrita – e portanto, pela própria natureza da escrita, estamos sujeitos a um enorme afastamento entre o virtual [14] e o efectivo.
Numa assembleia presencial, em caso de conflito aceso de ideias ou interesses, uma mesa moderadora diligente consegue aperceber-se muito rapidamente de diversos sintomas e deitar água na fervura, ou recorrer a expedientes que impeçam a assembleia de descambar no absurdo, no diálogo a dois e na ofensa pessoal. Num encontro virtual, não só não existe muitas vezes um poder moderador (uma hierarquia), mas também, dada a referida escassez de informação, será em geral necessário algum tempo para detectar os sintomas; nessa altura as coisas podem já ter atingido uma dimensão irreversível. Na vida real assisti à morte de diversos colectivos, por efeito de confrontos nauseabundos derramados no correio colectivo. É certo que dissensões e cisões sempre foram moeda corrente nos meios militantes; mas a facilidade com que os processos de ruptura aparecem, crescem e explodem de forma mortífera nas redes digitais acende um alerta que não pode ser ignorado.
Os dois métodos de trabalho colectivo (o efectivo e o virtual) não são intermutáveis nem mutuamente exclusivos noutro aspecto: a profundidade do debate. Por razões práticas, numa comunicação por WhatsApp é impossível produzir longos razoados; a comunicação das ideias tem de assentar em pressupostos, ser simplificada, reduzida à expressão mínima, introduzida através do ridículo teclado de um smartphone feito à escala de mãos infantis e produzido por infantis mãos. É certo que numa assembleia presencial a verborreia em excesso tem frequentemente de ser atalhada pelo grupo moderador, mas em contrapartida a definição de propostas, ideias e posições pessoais pode ir muito mais fundo.
O atraso dos movimentos sociais na utilização plena das redes digitais
A criação de redes digitais teve início na década de 1970. No entanto, até ao início da década de 1990 as redes digitais eram sobretudo coisa dos meios universitários. Nessa época era já patente o enorme salto qualitativo que as redes digitais facultavam; recordo que me deparei com um dos primeiros exemplos práticos de ganho qualitativo ao tropeçar inadvertidamente na comunicação de um investigador que estava a tentar definir os melhores métodos de trabalho para a sua investigação de campo e que exprimiu o seu pensamento num fórum digital científico; respondeu-lhe imediatamente alguém, do outro lado do mundo, informando que já tinha experimentado aquela via e tinha ido dar a um beco sem saída; pouparam-se assim anos de trabalho infrutífero.
Face aos exemplos de ganho qualitativo, pode parecer estranho que os movimentos sociais tenham levado tanto tempo a lançar mão dos apetrechos fornecidos pelas redes digitais. A teia de razões deste atraso (mais evidente em Portugal do que noutros países) é complexa, por isso apenas apontarei alguns factores: 1) nos primórdios das redes digitais não havia «produtos» prontos a usar; era necessário algum esforço técnico para montar, por exemplo, um IRC; 2) a maior parte dos militantes, entre actividade profissional e intervenção cívica, tem o seu tempo totalmente preenchido; não lhe resta disponibilidade para estudar meios técnicos complicados; 3) os criadores de programas de código aberto e gratuito levaram muitos anos a perceber que não se pode pedir ao utente mediano que monte por suas próprias mãos uma aplicação informática altamente complexa (é como dar a um consumidor mediano um carro desmontado em peças soltas, na convicção de que o carro, pelo simples facto de ser possivelmente melhor do que todos os carros prontos-a-usar, é mais atractivo); 4) quando os meios militantes começaram a perceber os potenciais benefícios da rede digital, o capital já se tinha adiantado: percebeu muito mais cedo o potencial de negócio, apropriou-se dos meios de produção digitais, impôs as suas regras e inundou o mercado com utensílios prontos-a-usar … já totalmente controlados e devassados. Pouco a pouco, uma nova geração de programadores procura tornar as aplicações de rede mais acessíveis e preocupa-se em criar instrumentos de combate à devassa da vida privada e associativa, praticada pelo Estado e pelas companhias privadas.[15]
Resta acrescentar que este artigo seria muito mais útil se contivesse uma análise detalhada de todas as aplicações de rede actualmente ao dispor dos activistas – mas isso é trabalho para uma equipa pluridisciplinar alargada, não para um humilde autor isolado.
Não posso concluir sem assinalar que o ambiente geral de urgência e produtivismo da era digital forçou a publicação precipitada deste artigo, que deveria ser precedido por meses ou anos de estudo sobre a prática das redes sociais do ponto de vista político. Forçou também o seu carácter sumário, pulando pressupostos e desenvolvimentos que ficaram no saco. As redes digitais oferecem virtualidades de concertação, concentração e convocação das hostes, têm potencial anti-hierárquico, mas quando contagiadas pelo vírus da urgência não favorecem o pensamento científico e filosófico.
Notas
1 Etimologicamente a palavra espírito designa respiração ou sopro e a palavra alma tem o mesmo significado etimológico mas diferente origem linguística. O mito bíblico da criação da consciência humana através da instilação de um sopro reflecte este conceito.
2 Neste artigo, a fim de simplificar a complexidade do assunto, «rede digital» designa o conjunto de meios técnicos de ligação entre nódulos (computadores); «redes sociais» designa os grupos sociais que utilizam a rede digital como instrumento de colaboração e relacionamento.
3 Sobre o conceito de sistemas complexos – um ramo relativamente recente da ciência –, ver Wikipedia, de preferência em inglês ou francês. Pertencem à categoria dos sistemas complexos todos os grupos sociais, os ecossistemas, o clima, etc. Costuma dizer-se, para caracterizar de forma simplificada o seu funcionamento, que num sistema complexo «o todo é maior do que a soma das partes»; ou seja, a lógica aritmética, linear e determinista não basta para explicar o seu funcionamento: um sistema complexo pode sofrer saltos qualitativos imprevisíveis.
4 Se quisermos explicar a bomba atómica do ponto de vista técnico e científico, o assunto torna-se inacessível ao comum dos mortais; contudo, o que interessa realmente ao comum dos mortais não é a maneira de construir uma bomba atómica, mas sim as suas implicações sociais e políticas. No mesmo sentido se orientam estas páginas, em relação às redes digitais.
5 Houve diversas tentativas para criar redes digitais «selvagens» – isto é, incontroláveis pela indústria e pelo Estado – e pô-las à disposição do público mais amplo, mas foram terminantemente combatidas pelos poderes públicos e pela indústria.
6 Etimologicamente hierarquia significa: governo (arkhei) sagrado (hieros). É portanto um sistema que não admite contestação e coloca uma cabeça acima das demais (arkho = sou eu o primeiro, sou eu o governo; exemplo: arquitecto = aquele que manda na obra). Neste sentido, hierarquia opõe-se a anarquia.
7 A situação de dualidade de poderes no período da Revolução dos Cravos (1974-1975) consistiu precisamente num movimento de ruptura: as populações organizadas não tentaram tomar de assalto a sede do poder instituído, ao contrário do que aconteceu noutras situações históricas, mas sim constituir uma estrutura de poderes paralela, organizada doutra maneira, com outros fins.
8 As redes digitais também são instrumentos de poder?, podem ser usadas para tomar ou eternizar o poder?, estão a ser usadas com esse fim?
10 Embora em teoria a memória digital seja firme e de fácil acesso, no mundo real não é bem assim; ela revela-se por vezes mais frágil e inacessível do que a memória em papel: a obsolescência programada pela indústria destrói frequentemente a memória digital. Do ponto de vista operativo, há aplicações de rede social que têm a memória de um peixinho dourado, como é o caso do Facebook; e a memória de aplicações como WhatsApp, quando usada em telefone portátil, pode ser de muito difícil acesso.
11 Na minha opinião (simples hipótese de trabalho, por não dispor de estudos de campo), em certos casos a convocatória via Facebook pode prejudicar a mobilização. Os ganhos e perdas e os modos de utilização do Facebook são objecto de numerosos estudos multidisciplinares, mas para pôr esses estudos em marcha é preciso uma quantidade de meios e capitais apenas ao alcance das empresas mais robustas. Por esse motivo, algumas das formas de rede social tornaram-se instrumentos ao serviço da hegemonia das grandes empresas, sendo relativamente inúteis ou prejudiciais para os grupos de acção cívica.
12 A gestão empresarial defende o fraccionamento e dispersão das empresas como meio de minimizar custos e maximizar lucros. Não são necessários grandes conhecimentos de matemática e gestão para perceber que este argumento é frágil. Não foi certamente coincidência o uso massivo dessa estratégia em Portugal logo a seguir à Revolução dos Cravos, numa época em que os trabalhadores encontraram meios de ultrapassar a sua dispersão geográfica e reforçar a sua força combativa. Onde havia uma empresa inteira com 10 secções de produção, passou a haver 10 empresas geograficamente dispersas; onde havia uma concentração de 200 assalariados, passou a haver núcleos dispersos de 20 assalariados; onde havia uma empresa inteira que podia ser paralisada pela greve de um pequeno sector da cadeia produtiva, passou a haver numerosas pequenas empresas que, em caso de paralisação, podem passar o contrato de produção a outras pequenas empresas. O fraccionamento empresarial, quando feito ao arrepio da lógica produtiva, é em si mesmo desmobilizador.
13 Embora a maioria dos instrumentos digitais de colaboração aqui visados permita a transmissão textual, visual e auditiva, por razões práticas essa capacidade não é integralmente usada no dia-a-dia dos colectivos de activistas – e ainda que o fosse, continuaria a ter eficácia reduzida, em comparação com os encontros presenciais.
14 O primeiro sentido etimológico da palavra virtual designava uma força masculina latente (viril, donde virilhas e virilidade), vista como um potencial que podia vir a tornar-se efectivo (exercício do acto) ou não. A proximidade morfológica entre os termos latinos vir (=varão) e vis (=força) facilitou a evolução semântica: o termo virtude, na cultura ocidental e cristã, passou a designar as «boas» qualidades morais. Neste artigo, o termo virtual é despejado das suas conotações morais, designando simplesmente um potencial disponível, ainda que não efectivado. Efectivo, por seu turno, vem de facere (=fazer) e designa uma realização em acto, um potencial cumprido. Os hologramas são talvez o exemplo mais correntemente dado para explicar o que é uma coisa virtual; retomando o exemplo etimológico: o holograma de um macho existe no mundo real, podemos vê-lo, mas não pode efectivar a sua proposta de virilidade. Ainda que o holograma seja uma coisa muito luminosa, o exemplo não me parece brilhante, porque o mesmo se pode dizer do retrato de Mona Lisa e de todas as obras de arte clássica em geral, com excepção das artes performativas.
15 Parece-me claro, na minha experiência pessoal, que quando, para preparar acções de rua, substituímos o telemóvel, o WhatsApp, o correio Google e quejandos por meios de comunicação seguros, a polícia deixa de chegar ao local combinado antes de nós. Face à sofisticação panóptica do Estado moderno, os movimentos sociais têm de reinventar sofisticados procedimentos de segurança, como nos tempos da resistência antifascista.
14 O primeiro sentido etimológico da palavra virtual designava uma força masculina latente (viril, donde virilhas e virilidade), vista como um potencial que podia vir a tornar-se efectivo (exercício do acto) ou não. A proximidade morfológica entre os termos latinos vir (=varão) e vis (=força) facilitou a evolução semântica: o termo virtude, na cultura ocidental e cristã, passou a designar as «boas» qualidades morais. Neste artigo, o termo virtual é despejado das suas conotações morais, designando simplesmente um potencial disponível, ainda que não efectivado. Efectivo, por seu turno, vem de facere (=fazer) e designa uma realização em acto, um potencial cumprido. Os hologramas são talvez o exemplo mais correntemente dado para explicar o que é uma coisa virtual; retomando o exemplo etimológico: o holograma de um macho existe no mundo real, podemos vê-lo, mas não pode efectivar a sua proposta de virilidade. Ainda que o holograma seja uma coisa muito luminosa, o exemplo não me parece brilhante, porque o mesmo se pode dizer do retrato de Mona Lisa e de todas as obras de arte clássica em geral, com excepção das artes performativas.
15 Parece-me claro, na minha experiência pessoal, que quando, para preparar acções de rua, substituímos o telemóvel, o WhatsApp, o correio Google e quejandos por meios de comunicação seguros, a polícia deixa de chegar ao local combinado antes de nós. Face à sofisticação panóptica do Estado moderno, os movimentos sociais têm de reinventar sofisticados procedimentos de segurança, como nos tempos da resistência antifascista.
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