05/03/20

Quando imobiliário casa com sociopatia...


No decurso da semana finda, as autoridades públicas despejaram grande número de famílias residentes no Bairro Bensaúde (Olivais, Lisboa). No final desta operação, que ainda está em curso, espera-se que sejam desalojadas mais de 100 pessoas, na sua maioria menores, incluindo crianças com menos de um ano de idade. Os despejos têm sido acompanhadas pela destruição de bens pessoais. Não se registaram actos de resistência por parte dos moradores.

Estas famílias, vendo-se na rua, ao frio, ao vento e à chuva, sem acesso a uma alternativa de habitação, nem sequer a um abrigo provisório, fizeram o que qualquer homo sapiens teria feito: tentaram proteger-se a si e às suas crias, improvisando abrigos com lonas. A polícia foi enviada ao local (estamos a falar de polícia municipal e polícia de choque!) para desmontar os abrigos improvisados …

As autoridades públicas «justificam» o seu comportamento bárbaro com o facto de: 1) estas famílias terem ocupado as casas (que servem para fins sociais e estavam vagas); 2) existir uma decisão dos tribunais, datada de há vários anos, declarando a ilegalidade daquela ocupação. Note-se que algumas destas ocupações, segundo relato dos moradores, duram há 10 anos e os moradores tiveram de investir consideravelmente em obras, porque as entidades encarregadas de gerir as habitações sociais em causa nem as atribuíram a ninguém nem investiram na sua conservação e melhoria.

É importante sublinhar que estamos a falar da execução de uma decisão judicial com data vários anos anterior ao actual pico da crise de habitação e portanto totalmente desadequada à situação de emergência social hoje vivida.


O argumento de que «a lei é dura, mas é para cumprir» (dura lex sed lex), frequentemente apresentado pelas próprias autoridades, demonstra não só desumanidade e total ausência de empatia, mas também uma escandalosa ignorância dos mais básicos princípios do Estado de direito e da filosofia de direito. A questão é a seguinte: uma lei ou uma decisão judicial nunca devem ser executadas quando, para remediar um mal, causem outro mal ainda maior ou mais grave (tendo em conta a hierarquia dos direitos e garantias dos cidadãos). Para se perceber que a afirmação anterior não é meramente teórica ou ideologicamente enviesada, dou-vos um exemplo concreto, do domínio público: durante um período muito alongado (mais de 10 anos), os tribunais adoptaram a prática de arquivar os processos contra senhorios que não cuidavam de fazer as obras a que estavam obrigados por lei; a justificação apresentada nessa época para suspender a aplicação da lei foi a de que, sendo muito baixas as rendas recebidas por esses senhorios, resultaria injusto obrigá-los a suportar custos que poderiam exceder os seus rendimentos. Ora estes tribunais, que por razões humanitárias e conformes aos princípios elementares da filosofia do direito arquivaram os processos, são os mesmos que hoje em dia, sem olharem ao contexto social e pessoal, atiram famílias, mães monoparentais, crianças, idosos e deficientes para o meio da rua, como se tem visto abundantemente em Lisboa, Porto e noutras cidades. Estranho, não vos parece? O que levará os juízes e os poderes públicos a procederem de forma tão contraditória e desumana?

Sociopatia: Transtorno de personalidade caracterizado por um desprezo das obrigações sociais e falta de empatia para com os outros. (…) Existe uma tendência a culpar os outros ou a fornecer racionalizações plausíveis para explicar um comportamento que leva o sujeito a entrar em conflito com a sociedade. [Organização Mundial de Saúde (OMS), «Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID»]

Os tribunais, a Câmara Municipal de Lisboa (CML), a Gebalis (gestora dos «bairros habitacionais de construção municipal») e demais autoridades públicas encontram-se numa escalada patológica de negação da realidade social e de perda total de empatia com os mais fracos e desprotegidos. Mas como o psicologismo não tem valor político, talvez seja preferível apontar outra coisa:

Todas estas barbaridades a que temos assistido, apesar de aparentemente absurdas, tornam-se compreensíveis quando constatamos um conjunto reiterado de práticas administrativas que, de facto, caracterizam objectivamente as referidas instituições como mercenárias dos interesses do negócio imobiliário, da indústria do turismo e da privatização do património público, com desprezo total pela esmagadora maioria da população.

O grau de loucura patente nos despejos no Bairro Bensaúde ultrapassa os limites da simples burocracia kafkiana, para ascender sorrateiramente a proporções nazis. Isto torna-se perfeitamente claro e objectivo quando vemos elementos da autoridade pública trazerem à baila a origem étnica das pessoas despejadas. E no entanto trata-se de cidadãos portugueses, nascidos em Portugal (e ainda que não fossem, ia dar no mesmo), com vidas normais, sedentárias, ordeiras; e que beneficiam do direito sagrado a uma habitação, direito esse garantido pelas leis nacionais e internacionais. A etnia de cada um, se porventura ela existe, não é para aqui chamada.

Entretanto, os caceteiros da Net (também conhecidos pela carinhosa alcunha antropomórfica de trolls) acorreram imediatamente às redes sociais para fazerem comentários racistas acerca das famílias despejadas no Bairro Bensaúde, desviando assim as atenções da questão essencial: a ilegitimidade brutal dos actos praticados pelas autoridades públicas. Ora, como iriam os caceteiros, no espaço de poucas horas, adivinhar a origem étnica daquela população? De saber seguro não sei, mas é muito difícil arredar a suspeição de que alguém, dentro das instituições oficiais, lhes encomendou o recado.

Para não corrermos o risco de sermos injustos com os poderes públicos, convém fazer algumas perguntas:



NÃO!
Os moradores foram previamente avisados da execução de despejo?

NÃO!
Os moradores puderam recorrer da decisão executiva?

NÃO!
A CML falou com eles antes de enviar a polícia municipal?

NÃO!
A CML forneceu alternativa habitacional antes do despejo?

NÃO!
Uma vez executado o despejo, a CML prestou-se ao diálogo e deu mostras de querer encontrar uma solução habitacional para as famílias desalojadas?

NÃO!
O primeiro-ministro interveio para cumprir as promessas recentemente feitas em matéria de protecção do direito à habitação?

NÃO!
O Presidente foi lá dar beijinhos e oferecer os jardins do Palácio de Belém como local de acampamento, enquanto não se arranja casa para toda aquela gente?




É preciso fazer uma distinção entre legalidade (=conformidade com os preceitos da lei) e legitimidade (=conformidade com os direitos fundamentais, os princípios da representação democrática e o interesse colectivo).

As ocupações de casas devolutas são, no nosso país, ilegais – isto resulta da preocupação da lei com a protecção da propriedade privada dos meios de produção e dos meios de habitação (que não irei comentar aqui) e portanto … dura lex sed lex.

Mas, no ordenamento jurídico dos direitos individuais, económicos, políticos, sociais e culturais, a protecção do direito fundamental a uma habitação digna está acima do direito à propriedade privada. Por isso mesmo se chama direito fundamental.

A conjugação destes dois princípios resulta no seguinte: a ocupação de habitações vagas – que ainda por cima neste caso são património público –, feita por pessoas que carecem de abrigo e não têm meios para encontrar uma alternativa à ocupação, é legítima e mais forte do que qualquer outra consideração legal.

Conclusão: esta acção de despejo praticada por ordem ou com a complacência da CML, da Gebalis, do Governo, dos tribunais e da Polícia é ilegítima. Os poderes públicos estão a agir de forma ilegítima! Isto confere aos cidadãos o direito de contestarem e até de resistirem, se assim entenderem. Sim, isto também faz parte dos princípios fundadores da democracia! – a resistência contra todas as formas de tirania é sempre legítima. Se assim não fosse, seria ilegítima a própria fundação do regime democrático representativo e de direito, que, para se firmar, teve de violar a lei e a ordem autocrática preexistente.

Quanto aos membros dos poderes públicos que, no meio de toda esta história, aduziram argumentos ou comentários étnicos, deveriam ser demitidos, para não lançarem mácula num regime que jura a pés juntos que não contempla o racismo estrutural.

Apelo a todos os cidadãos de bem (os sociopatas estão dispensados) que acorram, caso esta comunidade lançada para o olho da rua decida apelar a acções de solidariedade.

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