24/06/20

Estatuária pública, racismo e falência ideológica

(foto expresso.pt)

Neste mês de junho de 2020, o racismo e a estatuária pública entraram na agenda política. As declarações da esquerda parlamentar sobre estes temas, coincidindo nas declarações da direita mais assanhada, tiveram para mim um efeito arrepiante.


«O racismo é um fantasma»

No Parlamento, André Ventura afirmou que «o racismo estrutural é um fantasma que não existe em Portugal». E em resposta à manifestação anti-racista de 6 de junho, que classificou de «vergonha nacional», convoca uma manifestação sob o lema «os portugueses não são racistas» e «quem quer direitos tem de ter deveres».

Os escritos e declarações de André Ventura nunca esconderam o seu racismo e a sua xenofobia. Contudo, poderiam implicar a ilegalização do partido de Ventura. Ora, como existe de facto racismo estrutural em Portugal, o deputado de extrema-direita optou pela habilidosa manobra de negar a existência do que existe, no preciso momento em que se manifesta.

Tão-pouco surpreende que este neofascista ache que os direitos podem ser condicionados ou objecto de troca – cumpra um dever, ganhe dois direitos? – ou que uns podem anular os outros. Assim, por exemplo, quem não pagasse impostos perderia os direitos cívicos e o direito a ajudas económicas do Estado, o que atiraria para o degredo a esmagadora maioria dos administradores e accionistas das grandes empresas, os escritórios de consultores e advogados de negócios, já para não falar da totalidade das instituições bancárias com departamentos especializados em colocação de capitais em paraísos fiscais.

Quanto à afirmação de que em Portugal «não existe racismo estrutural», já foram apresentados mais que suficientes testemunhos e provas a contrario, tanto pelos directamente afectados, como por cientistas sociais como Miguel Vale de Almeida (RTP-3, telejornal 360º, e também nas redes sociais). Passo a palavra a quem já o disse melhor do que eu.

Se de André Ventura não nos vem surpresa, já o mesmo não se pode dizer de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, que afirmou [TSF, 6/06/2020]: «a maioria do povo português não é racista, estruturalmente». Isto, vindo da boca do porta-voz de um partido que em tempos idos defendeu o fim do colonialismo e do fascismo, é de arrepiar. Jerónimo de Sousa pretende convencer-nos que, no curto espaço de 50 anos após os portugueses terem bombardeado populações africanas com napalm, terem jogado à bola com cabeças de pretos, terem praticado o desporto da caça ao preto por desfastio [ver, p. ex., Jorge de Sena, in Antigas e Novas Andanças do Demónio], terem ajudado militarmente vários regimes opressores em África, terem obliterado a memória das chacinas que fizeram, pretende Jerónimo de Sousa que, passados apenas 50 anos – menos de duas gerações –, tudo isso desapareceu por milagre e sem deixar rasto. É desconcertante ouvir da boca do secretário-geral do PCP os ecos da efabulação fascista: os Portugueses distinguir-se-iam pela mansidão, pelos bons costumes e pelo respeito e boa convivência inter-raciais.


«Não toleramos vandalismos»

Não menos irritante foi a unanimidade parlamentar acerca do alegado vandalismo praticado contra as estátuas públicas, com destaque para a do Padre António Vieira, no Largo da Misericórdia, em Lisboa. Foi chocante ouvir a porta-voz do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, afirmar que a intervenção sobre a estátua foi uma tentativa de «descredibilizar» o movimento anti-racista (!) [1]. Os restantes partidos de esquerda alinharam neste coro salazarento. E o pior de tudo é que nada os obrigava a comentar o acontecimento; podiam ter evitado, silenciado, rodeado, ou, inversamente, podiam ter louvado a iniciativa popular, tão rara nos dias que vão correndo, fosse ela boa ou má.

Os representantes do Estado, da Igreja e da caridade institucionalizada, na inauguração da estátua (foto CML)

Relembremos, antes do mais, que as estátuas públicas nunca são representações pessoais, com excepção de alguns bustos. São elementos simbólicos – denotam ideias ou celebram regimes ou as acções desses regimes. É lastimável que toda a esquerda parlamentar se tenha feito de burra, tentando convencer-nos que a estátua de Vieira está ali apenas para representar o próprio. Ora, se a estátua pretendesse celebrar o génio oratório e literário de Vieira, certamente o representaria segurando uma pena, não uma cruz erguida ao alto, qual espada apontada contra o mundo. Se pretendesse evocar os padecimentos a que a Inquisição o submeteu e celebrar a liberdade de espírito, representá-lo-ia agrilhoado a um símbolo da Inquisição. Se pretendesse celebrar a oratória de Vieira contra a escravatura ou a perseguição aos judeus, tê-lo-ia representado rodeado destes, em proporções iguais, e não com pretinhos ou indiozinhos ou judeuzinhos acocorados a seus pés, como cãezinhos obedientes e agradecidos. Aquela estátua do Padre António Vieira simboliza de forma expedita um juízo de valor positivo acerca da acção catequizadora dos Portugueses por esse mundo fora, chamando-lhe «acção civilizadora». Esta acção foi acompanhada de canhões e espadas – e não apenas de cruzes – e da ideia, bem explícita naquela estátua, de que a cultura e as crenças dos índios eram menores e menos civilizadas, como menores são as figuras aos pés do Padre. Foi por isso, atrevo-me eu a adivinhar, que a estátua foi «vandalizada».


Mas … espera aí … Em que consistiu o «vandalismo»? Em derrubar a estátua? Em mutilá-la? Em «desfigurá-la», como dizem alguns jornais? Não. Resumiu-se a pintar um coração em cada uma das crianças acocoradas aos pés do Padre e em manchá-lo a ele, Padre, de sangue. O «vandalismo», afinal, limitou-se a somar dois símbolos ao simbolismo preexistente, numa tentativa de corrigir o significado de uma estátua que, obviamente, é ofensiva para qualquer ex-colonizado que tenha de passar por ela todos os dias. E foi à conta disto que se mandou a polícia judiciária dar caça ao homem (ou mulher).

Relembremos ainda o seguinte: quando os vândalos (sobretudo turistas, nos últimos tempos), sem qualquer motivação política ou preocupação social e apenas por divertimento pessoal, mutilam estátuas e mijam à nossa porta, não vemos a polícia judiciária ser chamada a dar caça ao homem. Quando a indústria do turismo, hotelaria e imobiliário destroem séculos de arquitectura de interiores, em vasta escala, dando terminante fim ao património cultural e arquitectónico do país, os nossos deputados não gritam unanimemente «aqui-del-rei, agarra que é vândalo!». O som típico de Lisboa deixou de ser o zunido da Ponte 25 de Abril; passou a ser o metralhar das britadeiras e martelos pneumáticos, na sua destruição cega de colunas-mestras e ornatos em pedra. No entanto não vemos o Parlamento levantar-se a uma só voz para gritar «agarra que é vândalo!».

O comportamento dos partidos à esquerda do PS, nos últimos anos, tem sido preocupante – tudo indica que estão desorientados e falidos das ideias anticapitalistas que era suposto defenderem; tudo indica que já não fazem a mínima ideia de qual seja o papel do Estado (e portanto da estatuária pública) na manutenção da ordem capitalista. Com estas novas declarações desastrosas (além de outras fora do âmbito proposto neste artigo), tudo indica que se encontrem em grave défice de autonomia política. Deixaram de defender «causas fracturantes» para passarem a militar «causas fracturadas». A extrema-direita agradece...

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Notas:
[1] Alguns leitores encontraram dificuldades no entendimento deste meu espanto lacónico, por isso acrescento em  25/06/2020 a seguinte nota:
As pinturas impostas à estátua de Vieira não descredibilizam o movimento anti-racista e anticolonial. Pelo contrário, ao intervir activamente no domínio público, credibilizam-no. Descredibilizam, isso sim, os poderes públicos que, dizendo-se democratas, inclusivos e anticolonialistas, mandaram erguer aquela estátua. Só alguém obsessivamente ocupado em defender os poderes públicos (vulgo: a autoridade) pode inverter a ordem dos factores e afirmar que uma intervenção anticolonial feita por mão cívica fere o movimento popular!

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