Quando eu era pequenino, no tempo do outro senhor – refiro-me àquele que caiu da cadeira e bateu a bota –, toda a gente conhecia o refrão regimental: «quem não for por nós é contra nós». É ainda muito frequente encontrar quem entoe esta requentada lengalenga na vida privada e até na vida académica, até aí nada de novo. Contudo, é preciso acordar do seu sono profundo outra recordação um pouco mais sangrenta: é que quem não era por «eles» (o regime) era automaticamente comunista. Isto, dito hoje assim singelamente, não parece coisa ruim – na mesma medida em que já não parece tão ruim ser-se lésbica, ou vegan, ou ateu, cada um é como entende e já não se extrai daí mal ao mundo, como antigamente. Mas naqueles tempos dava direito a 1) ficar com fama de comer criancinhas ao pequeno-almoço, o que não é nada simpático, e 2) ir apanhar uns sopapos nas costelas numa sala da António Maria Cardoso (que é o passadismo equivalente às actuais salas do SEF) ou 3) bater com os costados no Tarrafal ou nos trabalhos forçados do Ultramar, ou, 4) na hipótese menos maligna, perder o emprego e nunca mais poder ser funcionário público ou professor.
Por conseguinte, antes de expandir uma opinião discordante, antes mesmo de se atrever a pensá-la, uma pessoa deitava sérias contas à vida – e na esmagadora maioria dos casos acabava caladinha e alinhava com a maioria, toda ela muito caladinha, e se necessário fosse até marchava de braço em riste.
Para a generalidade das pessoas, mesmo antes de terem sido inventados os computadores pessoais e a inteligência artificial, estas contas não eram difíceis de deitar; o cálculo era automático, instantâneo, o resultado infalível: cala-te e está caladinho (uma expressão coloquial muito comum na minha rua, nessa época, e que subentendia a ameaça do sopapo).
Havia, evidentemente há sempre e não só nos filmes de Hollywood, uns raros heróis e heroínas que ousavam dizer a sua opinião e por consequência iam bater com os costados nos tais sítios, se fossem pobres, ou nos meios intelectuais de Paris, se fossem abastados.
Escusado seria dizer que foi com grande alívio que quase todas as pessoas da minha geração viram tão negros tempos sumir nas brumas do passado. Estou a falar de pessoas que se calhar até protestam hoje ligeiramente contra certos excessos em sentido contrário – por exemplo, desbocar tudo o que vem à cabeça nas redes sociais e nas mesas redondas da TV, por mais disparatado e deslustrante que possa ser, ou até masturbar-se em directo e ao vivo na Internet, alcançando assim fabulosos níveis de audiência –, mas sempre com a consciência de que, mal por mal, antes isto do que aquilo.
Sem perigo de contágio: o bloco de visitas aos presos políticos no Forte de Peniche |
É em estado de choque e coberto de suores frios que assisto à guerra e à sanha levada a cabo pelas instituições oficiais e pelos mais destacados comentadores da nossa praça contra toda e qualquer pessoa que discorde do plano geral de combate ao covid-19, do estado de excepção, das medidas extremas de confinamento e recolher obrigatório, do jogo viciado entre os poderes públicos e a indústria farmacêutica, do reforço da dívida privada e pública à sombra do covid-19, ao ponto de reporem na ordem do dia o velho refrão.
Contudo, a similitude dos tempos, velhos e novos, não é tão evidente assim, porque o refrão assumiu uma variante em rima branca: «quem não for por nós é negacionista»; e mais: os negacionistas comem velhinhos ao jantar.
O desvario do desvio autoritário é tão agudo, que vemos respeitáveis antropólogos, sociólogos, politólogos, enfim toda a sorte de doutorólogos, defenderem coisas que ninguém em estado de isenção poderia admitir, a não ser sob ameaça de Tarrafal:
que o expoente do contágio viral tem sede nas famílias [sendo no entanto do conhecimento geral que a família média em Portugal é composta por 2,5 pessoas; sendo 23 % dos agregados compostos por celibatários/as; e consistindo 25 % dos restantes em parelhas sem filhos; ou seja, 48 % dos agregados familiares são compostos, no máximo dos máximos, por duas pessoas (não necessariamente casadas ou amancebadas ou dormindo no mesmo quarto, porque os chamados agregados familiares evoluíram bastante desde os tempos do tal senhor que usava botas de elástico e caiu da cadeira); ou seja, fazendo as contas por alto, a maioria da população e das reuniões familiares alargadas, ainda que o perigo de contágio esteja sempre presente, pois claro, não pode matematicamente representar índices de contágio (o famoso R) iguais ou superiores a um, por mais malabarismos que o primeiro-ministro faça com os números; e se, ainda assim, quisermos acreditar nesses malabarismos, então a conclusão lógica seria impedir terminantemente o regresso diário ao lar e hospedar os trabalhadores em tendas individuais à porta do local de trabalho, deixando os filhos entregues aos cuidados da Mocidade Portuguesa];
que o vírus adormece nos transportes públicos, nas fábricas e nos supermercados, não constituindo aí perigo alarmante;
que nas horas de lazer é que o R é o diabo, pois o vírus bebe uns copos e quer logo fornicar toda a gente, sem distinção de género nem pausa para beber água;
que quando as pessoas se encontram nas horas de ócio, é sempre para fazerem festas e bacanais com pelo menos 100 pessoas todas à molhada, incluindo cães, burros e morcegos, e portanto é preciso retirar-lhes coercivamente o ócio e restringi-las ao negócio;
que, se reduzirmos a vida a dois tempos – trabalho e clausura – vamos sentir-nos todos muito mais felizes e seguros;
etc.
Este chorrilho de dislates, passados nove meses de acautelado silêncio, despertou do seu torpor meia dúzia de candidatos a heróis, os tais que não são por «nós». Isto, por sua vez, veio despertar os vendavais da indignação regimental e arregimentada, fazendo soar o grito de alarme: negacionistas!
Esta semana a caça macartista ao negacionista encetou hostilidades com um bombo de festa chamado Raquel Varela – que aliás já tem lugar cativo na secção de tímpanos. Levou nas trombas, sofreu chacota, porque ousou dizer que não é por «nós»; e também, vamos lá, porque, como é seu hábito, escreveu uma crónica às três pancadas e com uma ou outra frase de infelicíssimo recorte, mesmo a pedi-las para ser acusada de comer velhinhos à ceia.
Eu, por mim, também não estou com «nós». E digo mais: se é para morrer, antes morrer de covid que morrer de «nós». Seria portanto candidato a perseguição inquisitorial pelos verdugos de serviço nas redes sociais e nos media. Só que, não tendo página de Facebook, não posso ser açoitado em público; não tendo emprego, não mo podem amputar; e permanecendo na clandestinidade desde 25 de novembro de 1975, tornei-me intocável, indeportável e incandidatável a herói.
Posso em compensação, daqui da minha lura secreta, apelar a uma acção cívica sem contraditório possível, estilo greve geral: proponho que todos quantos não sejam por «nós» saiam à rua, à mesma hora e no mesmo dia (com as devidas cautelas, pois claro). Ainda que apenas uma humilde minoria de um décimo da população responda ao apelo, sempre quero ver como lidam as autoridades públicas com um milhão de casos de desobediência civil dispersos no espaço público. Salvo, evidentemente, se esse espaço público se chamar Tianamen.
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