«O Anjo Exterminador», de Luis Buñuel, 1962 – a burguesia em confinamento perde as boas maneiras e revela os seus instintos mais primitivos |
Por motivo de trabalho e boa dose de descuido, achei-me em Peniche durante alguns dias, sem peúgas. Por coincidência, o dono da casa onde estive alojado rompeu os chanatos, de modo que ficámos ambos de pé descalço.
Isto não constituiria problema em tempos normais, mas em tempo de confinamento à moda do Costa a situação tornou-se crítica: todo o comércio se encontrava encerrado, com raras excepções, não se lobrigando onde comprar este tipo de artigos de primeira necessidade. Pus-me então a cirandar pela cidade, à cata duma excepção salvadora, e eis que, numa ruela qualquer, encontro uma loja de cosméticos aberta. Por sinal, a porta ao lado era uma loja de roupa (fechada, evidentemente). Vimo-nos pois, eu e o meu hospedeiro, perante uma situação deveras criativa: andarmos pelas ruas de pé descalço, sim, mas impecavelmente maquilhado.
Passados dois dias, chegou-me a notícia de que às portas da cidade havia um «armazém chinês» aberto. Meti-me ao caminho esperançoso. Entro na loja e, feita a saudação da praxe, pergunto:
«Onde fica a secção de peúgas?»
«Olhe, eu até tenho peúgas, mas não posso vender-lhas.»
«Como não?»
«É proibido. Posso vender-lhe martelos, pregos, barbatanas para nadar, extensões eléctricas, bibelôs, mas peúgas não.»
«Como assim?»
«É para não fazer concorrência às lojas de roupa durante o confinamento, segundo dizem.»
«Mas as lojas de roupa estão fechadas! Não há concorrência possível com uma coisa que não existe!»
«Que quer que faça? Se lhe vendo uma peúga, fecham-me o negócio.»
Saí dali a matutar que, feitas as contas, este absurdo nem sequer era caso isolado. Não se trata de uma gafe governativa inopinada – entre outros exemplos, o mesmo se passa com as livrarias: estão encerradas, ficando as tabacarias, os supermercados e outros lugares onde era costume vender livros proibidos de o fazer, para… não concorrerem com uma entidade que não existe de momento!
Para minha grande surpresa, ao regressar a Lisboa encontro a livraria da FNAC aberta. Ou seja, a regra pode ter excepções, na condição de as ditas excepções terem peso económico suficiente para titerarem o governo. Claro como água.
Recapitulando: durante o pino do frio em Portugal (janeiro e fevereiro), o governo mandou encerrar todos os estabelecimentos onde seria possível adquirir meios de protecção contra o frio – esse frio que, como toda a gente sabe, todos os anos causa um número elevado de mortes. Foi precisamente no pino do frio que o governo entendeu proibir a aquisição de roupa, mantas, enfim, toda espécie de agasalhos. Em compensação, autorizou que se mantivessem abertas as lojas de electrodomésticos, o Lidl e outros lugares onde podemos comprar uma quantidade infinita de aquecedores eléctricos, para gáudio da EDP. Autoriza também que os estafetas – esse veículo universal de precariedade contagiosa – nos tragam peúgas compradas no éter da Amazon – mas quem são os malucos, pergunto eu, que compram roupa sem a ver, apalpar e provar?
O confinamento foi objectivamente definido pelas autoridades como um período em que há que trabalhar mas não folgar (permitam-me que não discuta aqui os méritos e deméritos, as provas científicas que sustentam ou arrasam esta opção). Neste período de recolhimento, ideal para a retoma dos hábitos de leitura, vai o governo e fecha as livrarias a sete chaves. Paradoxalmente, as tabacarias e outros lugares de comércio que se mantiveram abertos foram obrigadas a esconder os livros com que costumavam em tempos normais concorrer com as livrarias. Por outras palavras, objectivamente a medida governamental não consiste em encerrar das livrarias, mas sim em suspender a leitura, as galerias de arte e outras formas culturais. O resto é fogo de vista.
Entretanto, as ditas tabacarias continuam a vender quantidades abismais de jogos de azar, constituindo estes uma praga mental gravíssima e gerando aglomerações de pessoas à porta dos estabelecimentos de venda, todas a esfregarem freneticamente as raspadinhas, numa cena alucinante digna de figurar num filme de Buñuel.
Este e muitos outros absurdos poderiam levam-nos a pensar que até um orangotango seria capaz de gerir melhor as cautelas e recursos necessários em tempo de crise epidémica. Devemos então acreditar que somos governados por uma massa bruta de estupidez? Há quem pense assim. Eu, porém, penso que não é possível alguém atingir um índice de estupidez tão elevado; acredito que existe uma constante universal que impede a estupidez e o negrume de ultrapassarem um certo valor, tal como sucede com a velocidade da luz. A confirmar-se a minha tese, resta então, como única explicação possível, a existência secreta de um plano. Mas que plano? Isso, não vos sei dizer. O mais que posso observar, a olho nu, é que as grandes superfícies comerciais, os grandes distribuidores, as grandes farmacêuticas, a saúde privada, saem da crise na mó de cima; os pequenos agentes culturais e a grande parte dos trabalhadores saem de pé descalço.
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