05/08/23

Desandem daqui, emplastros

 

Puppy, de Jeff Koons, 2010 [CC BY-SA 4.0]

As pessoas mal informadas, ainda que bem-formadas, pensam que Portugal vive um sufoco agónico, uma espécie de hipérbole troikiana de miséria e drama, com salários inferiores às rendas de casa, reformas minúsculas que não cobrem despesas de farmácia, dietas farináceas de austero pão e esparguete, serviços públicos em colapso, mães solteiras que, por terem ficado sem casa, perdem os filhos sabe-se lá para quem e por mor de que negócios, e um primeiro-ministro que anuncia hoje um aumento de 15 euros nas pensões de velhice e na semana seguinte, pela calada, as reduz a 65 % do que eram.

04/04/23

Os autarcas fora-da-lei

 

fora-da-lei
(by ToniCzech via Pixabay)

Antes de discutirmos o que de bom e de mau existe no actual plano político do Governo para a habitação, temos de relembrar que ele não cria nada de novo; limita-se a pôr em prática a Lei de Bases da Habitação (LBH)[1], aprovada em 2019 e entretanto deixada em banho-maria.

05/02/23

O grau zero da consciência

 


Pasmei quando, há dias, ouvi uma representante da associação nacional de pais dizer na televisão que a luta dos professores estava a prejudicar as crianças, o direito dos pais ao trabalho e a missão da escola pública. Tive de usar o comando da televisão para ouvir várias vezes, não fosse eu ter entendido mal.

08/09/22

In facebuko veritas

 https://outraspalavras.net/wp-content/uploads/2017/01/16409219_10210009845895400_1354376722_o.jpg

Apesar de não ter uma página no Facebook, não paro de ser diariamente bombardeado com notícias do dito. Chegam-me elas a casa envoltas em longas e enfadonhas recitações, pressurosamente entregues por amigos e conhecidos, quais marçanos ou moços de fretes das transnacionais.

Uma das coisas que nunca deixará de me surpreender no Facebook é a sua capacidade inebriante e viciante, de alguma forma comparável à do álcool. Porém, ao contrário do álcool, o Facebook, que eu saiba, não provoca morte por cirrose, mas antes uma espécie de loucura carregada de disfuncionalidades, no que se assemelha ao álcool. O efeito inebriante (do Facebook e do álcool) leva o utente a baixar os seus escudos e espartilhos comportamentais, a mostrar-se tal qual é – «in vino veritas».

Para que fique claro e para evitar ofensas desnecessárias: conheço gente que usa do álcool (ou do Facebook) com civilidade, conta, peso e medida. Contudo, por regra, o utente do Facebook acaba por tornar-se um autêntico diabo da Tasmânia: ofende o seu semelhante a torto e a direito; torna-se trauliteiro, intolerante, chauvinista, ameaça de morte. Grande parte dos posts publicados no Facebook exsudam ódio enraivecido à humanidade em geral e às opiniões adversas em particular.

Apelando às teses de Ivan Illich, diria eu que o Facebook se tornou um exemplo perfeito dos efeitos mais nefastos da industrialização (neste caso a indústria das «redes sociais») quando esta excede as barreiras naturais que deviam contê-la e se substitui à afabilidade [1]. Reformulando, por palavras minhas, que me perdoe Illich: se o Homem (europeu) era a medida de todas as coisas nas sociedades pré-capitalistas, a indústria (global) passou a ser a medida de todas as coisas nas sociedades capitalistas – sendo o Facebook um exemplo óbvio de industrialização das relações humanas e das redes sociais.

Igualmente surpreendente é o facto de os modernos instrumentos industriais de comunicação social terem feito perder de vista um facto que costumava pairar sobre a cabeça de qualquer pessoa que empunhasse uma pena, nem que fosse um semianalfabeto lavrando um recado escrito: aquilo que nós escrevemos e assinamos hoje, permanece para toda a eternidade, ainda além da nossa morte, e por fim, desfeita a carne e carcomidos os ossos, é a única coisa pela qual poderemos um dia ser avaliados. Esta consciência parece morta, o que não deixa de ser óptimo para o despudor.

Como se verificou recentemente a propósito da demissão da ministra da Saúde, Marta Temido, muitos utentes do Facebook divorciaram-se dos princípios e métodos que proclamavam, para casarem com o seu oposto – aí está, «in facebuko veritas». Para meu grande espanto, vejo pessoas que, apesar de se dizerem revolucionárias, desculpam a ministra, dizendo que ela não quereria levar o Serviço Nacional de Saúde (SNS) ao descalabro a que ele chegou. O facto de alguém dizer que um ministro ou uma ministra pode governar contra sua própria vontade já demonstra o grau de insanidade mental a que se pode chegar: tudo quanto foi objectivamente feito pelo Ministério da Saúde nos últimos 11 anos é agora apresentado por estes defensores da ministra como um fenómeno do Entroncamentoos efeitos objectivos da governação não coincidiriam com as intenções subjectivas dos governantes, de modo que estes, coitadinhos, não teriam culpa daquilo que fizeram … embora o tenham feito. Se isto não é esquizofrenia em acção, então não sei que seja.

As mesmíssimas pessoas que acusaram o governo de Passos Coelho de ataque intencional e aleivoso ao SNS, vêm agora, perante um governo do PS que há 7 anos (sete!) perpetua e reforça as políticas neoliberais do seu antecessor, afirmar que não, coitadinhos dos governantes (os actuais, não os anteriores), não era isso que eles queriam fazer.

O simples facto de passar da análise objectiva dos factos para o julgamento de intenções (boas ou más, consoante as preferências e amizades pessoais dos inquiridores) mostra a que ponto chegou o despojamento intelectual de tantos escrevinhadores facebookianos. Mostra também, desgraçadamente, a que arrepiantes extremos poderão eles um dia chegar, já que a substituição da análise objectiva da realidade pelo julgamento de intenções é apanágio das correntes políticas mais tenebrosas, desde os tempos do absolutismo, passando pelos tempos do fascismo, até aos tempos do neoliberalismo na sua fase actual.

 

31/03/22

O descontrole emocional e o Ministério da Verdade

 

Uma das coisas que me aflige desde março de 2020 é a perda de controle emocional exibida por tantos jornalistas e comentadores – umas vezes de forma muito evidente (quando ao vivo, onde não é possível disfarçar o tom de voz, a fácies e a postura), outras menos, quando expressa por escrito. Muitas figuras públicas têm feito tristes figuras, das quais parecem não se envergonhar, talvez por serem já escravas da sua própria disfunção emocional e comportamental.

Uma das características das emoções fortes é serem elas extremamente contagiosas. É muito difícil conviver com o riso, o choro, a raiva ou o ódio sem deles participar. Isto significa que uma campanha de intolerância/ódio, adornada de descontrole emocional, levada a cabo 24 horas por dia nos media, terá um inevitável efeito patológico na generalidade da população. Por outras palavras, está-se a gerar uma sociedade carregada de disfunções cognitivas e emocionais que necessitarão de várias gerações para serem desfeitas. É, do meu ponto de vista, um autêntico crime contra a humanidade.

05/03/21

Não acredito em índices de estupidez iguais ou superiores a 100 %

 

«O Anjo Exterminador», de Luis Buñuel, 1962 – a burguesia em confinamento perde as boas maneiras e revela os seus instintos mais primitivos


Por motivo de trabalho e boa dose de descuido, achei-me em Peniche durante alguns dias, sem peúgas. Por coincidência, o dono da casa onde estive alojado rompeu os chanatos, de modo que ficámos ambos de pé descalço.

Isto não constituiria problema em tempos normais, mas em tempo de confinamento à moda do Costa a situação tornou-se crítica: todo o comércio se encontrava encerrado, com raras excepções, não se lobrigando onde comprar este tipo de artigos de primeira necessidade. Pus-me então a cirandar pela cidade, à cata duma excepção salvadora, e eis que, numa ruela qualquer, encontro uma loja de cosméticos aberta. Por sinal, a porta ao lado era uma loja de roupa (fechada, evidentemente). Vimo-nos pois, eu e o meu hospedeiro, perante uma situação deveras criativa: andarmos pelas ruas de pé descalço, sim, mas impecavelmente maquilhado.

Passados dois dias, chegou-me a notícia de que às portas da cidade havia um «armazém chinês» aberto. Meti-me ao caminho esperançoso. Entro na loja e, feita a saudação da praxe, pergunto:

15/12/20

Tiro-liro-li, tiro-liro-ló, quem não for por nós é negacionista

 



Quando eu era pequenino, no tempo do outro senhor – refiro-me àquele que caiu da cadeira e bateu a bota –, toda a gente conhecia o refrão regimental: «quem não for por nós é contra nós». É ainda muito frequente encontrar quem entoe esta requentada lengalenga na vida privada e até na vida académica, até aí nada de novo. Contudo, é preciso acordar do seu sono profundo outra recordação um pouco mais sangrenta: é que quem não era por «eles» (o regime) era automaticamente comunista. Isto, dito hoje assim singelamente, não parece coisa ruim – na mesma medida em que já não parece tão ruim ser-se lésbica, ou vegan, ou ateu, cada um é como entende e já não se extrai daí mal ao mundo, como antigamente. Mas naqueles tempos dava direito a 1) ficar com fama de comer criancinhas ao pequeno-almoço, o que não é nada simpático, e 2) ir apanhar uns sopapos nas costelas numa sala da António Maria Cardoso (que é o passadismo equivalente às actuais salas do SEF) ou 3) bater com os costados no Tarrafal ou nos trabalhos forçados do Ultramar, ou, 4) na hipótese menos maligna, perder o emprego e nunca mais poder ser funcionário público ou professor.

Por conseguinte, antes de expandir uma opinião discordante, antes mesmo de se atrever a pensá-la, uma pessoa deitava sérias contas à vida – e na esmagadora maioria dos casos acabava caladinha e alinhava com a maioria, toda ela muito caladinha, e se necessário fosse até marchava de braço em riste.

Para a generalidade das pessoas, mesmo antes de terem sido inventados os computadores pessoais e a inteligência artificial, estas contas não eram difíceis de deitar; o cálculo era automático, instantâneo, o resultado infalível: cala-te e está caladinho (uma expressão coloquial muito comum na minha rua, nessa época, e que subentendia a ameaça do sopapo).

Havia, evidentemente há sempre e não só nos filmes de Hollywood, uns raros heróis e heroínas que ousavam dizer a sua opinião e por consequência iam bater com os costados nos tais sítios, se fossem pobres, ou nos meios intelectuais de Paris, se fossem abastados.

Escusado seria dizer que foi com grande alívio que quase todas as pessoas da minha geração viram tão negros tempos sumir nas brumas do passado. Estou a falar de pessoas que se calhar até protestam hoje ligeiramente contra certos excessos em sentido contrário – por exemplo, desbocar tudo o que vem à cabeça nas redes sociais e nas mesas redondas da TV, por mais disparatado e deslustrante que possa ser, ou até masturbar-se em directo e ao vivo na Internet, alcançando assim fabulosos níveis de audiência –, mas sempre com a consciência de que, mal por mal, antes isto do que aquilo. 

Sem perigo de contágio: o bloco de visitas aos presos políticos no Forte de Peniche


É em estado de choque e coberto de suores frios que assisto à guerra e à sanha levada a cabo pelas instituições oficiais e pelos mais destacados comentadores da nossa praça contra toda e qualquer pessoa que discorde do plano geral de combate ao covid-19, do estado de excepção, das medidas extremas de confinamento e recolher obrigatório, do jogo viciado entre os poderes públicos e a indústria farmacêutica, do reforço da dívida privada e pública à sombra do covid-19, ao ponto de reporem na ordem do dia o velho refrão.

Contudo, a similitude dos tempos, velhos e novos, não é tão evidente assim, porque o refrão assumiu uma variante em rima branca: «quem não for por nós é negacionista»; e mais: os negacionistas comem velhinhos ao jantar.

O desvario do desvio autoritário é tão agudo, que vemos respeitáveis antropólogos, sociólogos, politólogos, enfim toda a sorte de doutorólogos, defenderem coisas que ninguém em estado de isenção poderia admitir, a não ser sob ameaça de Tarrafal:

que o expoente do contágio viral tem sede nas famílias [sendo no entanto do conhecimento geral que a família média em Portugal é composta por 2,5 pessoas; sendo 23 % dos agregados compostos por celibatários/as; e consistindo 25 % dos restantes em parelhas sem filhos; ou seja, 48 % dos agregados familiares são compostos, no máximo dos máximos, por duas pessoas (não necessariamente casadas ou amancebadas ou dormindo no mesmo quarto, porque os chamados agregados familiares evoluíram bastante desde os tempos do tal senhor que usava botas de elástico e caiu da cadeira); ou seja, fazendo as contas por alto, a maioria da população e das reuniões familiares alargadas, ainda que o perigo de contágio esteja sempre presente, pois claro, não pode matematicamente representar índices de contágio (o famoso R) iguais ou superiores a um, por mais malabarismos que o primeiro-ministro faça com os números; e se, ainda assim, quisermos acreditar nesses malabarismos, então a conclusão lógica seria impedir terminantemente o regresso diário ao lar e hospedar os trabalhadores em tendas individuais à porta do local de trabalho, deixando os filhos entregues aos cuidados da Mocidade Portuguesa];

que o vírus adormece nos transportes públicos, nas fábricas e nos supermercados, não constituindo aí perigo alarmante;

que nas horas de lazer é que o R é o diabo, pois o vírus bebe uns copos e quer logo fornicar toda a gente, sem distinção de género nem pausa para beber água;

que quando as pessoas se encontram nas horas de ócio, é sempre para fazerem festas e bacanais com pelo menos 100 pessoas todas à molhada, incluindo cães, burros e morcegos, e portanto é preciso retirar-lhes coercivamente o ócio e restringi-las ao negócio;

que, se reduzirmos a vida a dois tempos – trabalho e clausura – vamos sentir-nos todos muito mais felizes e seguros;

etc.


Este chorrilho de dislates, passados nove meses de acautelado silêncio, despertou do seu torpor meia dúzia de candidatos a heróis, os tais que não são por «nós». Isto, por sua vez, veio despertar os vendavais da indignação regimental e arregimentada, fazendo soar o grito de alarme: negacionistas! 

Esta semana a caça macartista ao negacionista encetou hostilidades com um bombo de festa chamado Raquel Varela – que aliás já tem lugar cativo na secção de tímpanos. Levou nas trombas, sofreu chacota, porque ousou dizer que não é por «nós»; e também, vamos lá, porque, como é seu hábito, escreveu uma crónica às três pancadas e com uma ou outra frase de infelicíssimo recorte, mesmo a pedi-las para ser acusada de comer velhinhos à ceia. 

Eu, por mim, também não estou com «nós». E digo mais: se é para morrer, antes morrer de covid que morrer de «nós». Seria portanto candidato a perseguição inquisitorial pelos verdugos de serviço nas redes sociais e nos media. Só que, não tendo página de Facebook, não posso ser açoitado em público; não tendo emprego, não mo podem amputar; e permanecendo na clandestinidade desde 25 de novembro de 1975, tornei-me intocável, indeportável e incandidatável a herói.

Posso em compensação, daqui da minha lura secreta, apelar a uma acção cívica sem contraditório possível, estilo greve geral: proponho que todos quantos não sejam por «nós» saiam à rua, à mesma hora e no mesmo dia (com as devidas cautelas, pois claro). Ainda que apenas uma humilde minoria de um décimo da população responda ao apelo, sempre quero ver como lidam as autoridades públicas com um milhão de casos de desobediência civil dispersos no espaço público. Salvo, evidentemente, se esse espaço público se chamar Tianamen.

24/06/20

Estatuária pública, racismo e falência ideológica

(foto expresso.pt)

Neste mês de junho de 2020, o racismo e a estatuária pública entraram na agenda política. As declarações da esquerda parlamentar sobre estes temas, coincidindo nas declarações da direita mais assanhada, tiveram para mim um efeito arrepiante.