29/12/24

Recensão: «A Revolta do Homem Branco», de Susanne Kaiser

Subtítulo: Incels, fundamentalistas e autoritários em luta por uma masculinidade política

Ed. Zigurate, 2024. Trad. de Helena Araújo.

Quando um amigo me falou de A Revolta do Homem Branco, de Susanne Kaiser, despertou-me a curiosidade. Corri a comprar o livro e iniciei sofregamente a sua leitura, fascinado pela menção de uma série de fenómenos e ideias de que eu jamais ouvira falar: incels, «masculinidade política», Qanon, Proud Boys, movimento Boogaloo, «guerreiro xamanista», etc.

Logo no início da Introdução (pp. 9 e ss.) a Autora apresenta-nos uma descrição do assalto ao Capitólio [sede do poder legislativo federal dos EUA] e do papel central desempenhado por esses «movimentos masculinistas» na dinâmica do assalto. A descrição torna-se ainda mais apimentada quando Susanne Kaiser afirma:

Não é por acaso que, de todos os espaços possíveis [do Capitólio], foi o gabinete da mais poderosa mulher americana em funções [Nancy Pelosi] que esteve no centro dos tumultos. (p. 10; sublinhado meu)

E foi aqui – logo na Introdução! – que as coisas ameaçaram descarrilar. Porque se nos dermos ao aborrecido mas muito esclarecedor trabalho de investigar os acontecimentos desse dia, consultando documentos e testemunhos originais, concluímos que os assaltantes se baralharam com a configuração labiríntica do Capitólio e, embora o seu objectivo primordial fosse dirigirem-se à sala dos Representantes, a fim de se apoderarem do cofre dos votos e conferirem a contagem, enganaram-se no caminho e foram parar … ao gabinete de Pelosi – enquanto o vice-presidente aproveitava o engano e fugia com o cofre debaixo do braço, frustrando o fito dos assaltantes. Por conseguinte, o «masculinismo» não esteve no centro dos acontecimentos e Pelosi não era o alvo primordial, ao contrário do que a Autora diz.

É muito duvidoso que um livro baseado numa tese científica possa cometer de boa-fé tamanho erro. E é uma pena que esta nódoa manche logo de início a tese de que os «movimentos masculinistas» desempenham um papel muito relevante na acção política de Donald Trump e da extrema-direita americana.

Ainda assim, o meu interesse pelas demais ideias expostas por Kaiser impediu-me dar por finda a leitura e arrumar o livro na mesma prateleira dos postulados e «dados» fraudulentos que a extrema-direita costuma servir-nos de bandeja, para tentar validar os seus raciocínios viciosos e baralhar o nosso pensamento.

Em termos gerais, e pondo de lado a complexidade terminológica adoptada, Susanne Kaiser aborda aquilo que no linguarejar europeu clássico se poderia chamar muito simplesmente a violenta reacção das correntes machistas/paternalistas/misóginas e outros aliados das correntes de extrema-direita contra os feminismos e as questões de género.

Estas tendências machistas e misóginas manifestam-se em todos os patamares quotidianos da nossa sociedade, mas ficamos desde as primeiras páginas do livro com a impressão que Susanne Kaiser pretende demonstrar a sua importância ao nível da política institucional e de massas – o que me pareceu um objectivo muitíssimo interessante. Contudo, mais uma vez, senti-me ludibriado pela forma como Susanne Kaiser expõe a questão nos primeiros capítulos. A extensa descrição pormenorizada (ao ponto de nos revolver as entranhas) dos massacres e dos manifestos de diversas correntes e figuras da cruzada misógina assassina transporta o leitor para uma discussão que, a meu ver, nada tem de político ou sociológico. O que salta à vista é a patologia mental de todas essas figuras tresloucadas que a dado momento das suas vidas decidem pegar em armas para massacrar as odiadas mulheres. Ainda por cima, a Autora deixa muito claro que esses loucos obedecem a um padrão: depois de realizarem o massacre, suicidam-se (excepto nos casos em que falham pateticamente o desígnio expresso de se suicidarem) – o que estabelece definitivamente a patologia da coisa.

Depois de ter deixado claro o carácter patológico desses personagens, a Autora dedica-se minuciosamente a expor e dissecar os argumentos pseudo-sociológicos, pseudoeconómicos e pseudopolíticos com que estes serial killers procuram justificar os seus actos. E por fim a própria Susanne Kaiser esforça-se por argumentar que sim, que o discurso desses assassinos misóginos nada tem de falacioso, que eles obedecem de facto a desígnios políticos (independentemente de serem ou não aproveitados por actores políticos de extrema direita). Ora, se quisermos ir por esse caminho, eu próprio posso apresentar o caso de diversos esquizóides que há vários anos se encontram em diálogo com extraterrestres ou outros inimigos imaginários e que à conta disso já mataram ou poderão vir a matar um montão de gente (ou pelo menos as mulheres e familiares mais próximos). Também estes esquizóides se declaram vítimas das relações de força entre eles próprios e os interesses dos seus inimigos – ou seja, dito por outras palavras, declaram-se vítimas da planificação política do Outro.

Como se tudo isso não bastasse, mais ou menos a meio do livro a coisa adensa-se: a Autora avança com a tese do «masculinismo político». Foi nesse instante que me apercebi de ter estado a ler durante uma centena de páginas uma quantidade de acrobacias intelectuais de alto risco – coisas como «masculinismo» e muitos outros conceitos centrais do livro não foram definidos em termos rigorosos e objectivos, ainda que mencionados passim. De modo que não só o âmbito da matéria em foco se torna fluido, como não sabemos do que estamos a falar; podemos dizer o que nos vier à cabeça a propósito de tudo e de nada, pois estaremos sempre certos. E assim a Autora pode rematar o Capítulo 9 (p. 118) com esta pérola: «são os próprios homens que […] transformam a masculinidade hegemónica em algo político [...]». Mas … espera aí … a «masculinidade hegemónica» (seja lá isso o que for) não devia ser, por definição, um fenómeno acima de tudo político? Ou, mais uma vez, andamos a patinar numa sopa psiquiátrico-política?

Não restam dúvidas de que personagens como Milei da Argentina, Trump dos EUA, Bolsonaro do Brasil, Natanyahu de Israel e tantos outros potenciais autocratas são autênticas criaturas de Frankenstein carentes de alguns parafusos na cabeça. Contudo, a meu ver, um livro sobre a acção e o pensamento dessas figuras deveria tomar uma decisão à partida: vamos falar das patologias mentais de cada um, ou das suas acções políticas, objectivas? É que a mistura das duas coisas pode conduzir-nos a uma bela açorda mental. Além disso, o que cada maluco decide fazer da sua vida (por mais dramático que isso possa ser para quem o rodeia) não tem qualquer interesse para debate político, embora possa constituir o suprassumo da batata para o Correio da Manhã.

Contudo, a partir do Capítulo 10 o livro encontra outro tom e dá-nos a ver um conjunto de acontecimentos históricos, políticos e literários da maior importância para a compreensão pontual dos estranhos tempos de revanchismo de extrema-direita que atravessamos. E isto basta para que eu aconselhe a sua leitura paciente.

Ficamos a saber, por exemplo, que a famosa expressão «ideologia de género» foi inventada pelo Vaticano (a propósito de outra coisa um pouco diferente) e que os think tanks de direita correram a usar e abusar dela, de tal modo que hoje em dia a expressão já não significa absolutamente nada. Tornou-se uma espécie de emblema ao peito que permite às diferentes correntes de pensamento e movimentos de direita reconhecerem-se entre si e agruparem-se na luta política.

A páginas 141, a Autora apresenta o que, em termos práticos, parece ser a tese mais importante do livro: «A ligação entre esta agressividade masculina e o pensamento da nova extrema-direita não é pura coincidência». Para justificar esta afirmação, apresenta-nos uma enorme quantidade de informação realmente útil. Isto inclui não só a descrição (sempre muito minuciosa e um pouco ao jeito de conversa de comadres) das principais correntes e teóricos ocidentais, mas também as quantidades massivas de financiamento que partem dos EUA para alimentar a ascensão da extrema-direita europeia.

No último capítulo a Autora acrescenta algumas observações finais e tenta fazer um balanço, mas com evidentes dificuldades. Socorre-se de citações de outros autores para afirmar que vivemos hoje uma situação semelhante à das duas primeiras décadas do século XX, a que chama «as décadas do desamparo», para significar o avanço inelutável da extrema-direita. Ora… recordemos que ela está a falar da época das revoluções aquém e além-mar, das greves massivas, da conquista do direito de voto para as mulheres em alguns países, enfim, de um dos períodos mais notáveis da história da luta dos oprimidos e desapossados! Este desnorte em matéria de história dos movimentos políticos desvenda a razão da dificuldade de Susanne Kaiser em fazer uma síntese e encontrar uma explicação para a actual cavalgada da extrema-direita e dos antifeminismos.

A concluir (p. 237), afirma que

Até à data, não foi encontrada qualquer explicação para o facto de a misoginia, em particular, ser parte integrante do retrocesso autoritário.

… não sei que lhe diga. É evidente que o livro é um monumental contentor de informação sobre alguns fenómenos sociais e políticos actuais (e isso basta para lhe conferir interesse e utilidade), flutuando porém num completo vazio histórico.

Por fim, não é possível esquecer a já referida nódoa inicial, que nos deixa uma pulga atrás da orelha a cada novo capítulo: poderemos nós confiar no enorme fluxo de informação que se segue à Introdução? Ou teremos nós de ir confirmar também tudo aquilo, como fizemos para a Introdução?

Finalmente, refiro a tradução de Helena Araújo e o cuidado de edição, que me pareceram excelentes.

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