18/04/25

Borborismos sobre o ódio e a violência

(imagem sem data nem autor colhida em USFM)

As «civilizações ocidentais» levaram milénios a construir um conjunto de paradigmas sociais e políticos opostos à escravatura, ao ódio e à violência. Chamamos a isso progresso civilizacional. Esses paradigmas subvertem vários hábitos ancestrais de crueldade. Hoje, não se pode bater nos animais; não se pode bater nas mulheres; não se pode bater nas crianças. Regra geral, não se pode bater em ninguém, aproximando-nos assim (aparentemente) de uma sociedade mais pacífica e confortável.

Notemos, contudo, que a violência e o ódio tendem a andar de mão dada, de forma que os princípios éticos e legais de pacifismo não são absolutos, dependem da proximidade do Outro: não posso dar estalos no meu amante ou, de resto, em qualquer outra pessoa que me seja próxima (ao nível familiar, do bairro ou do país), mas o mesmo princípio não se aplica a quem não faz parte das minhas relações sociais directas ou indirectas: posso dar-lhes tiros, posso desenvolver um ódio de estimação que de seguida irá justificar o uso da violência contra, por exemplo, os russos e outros povos longínquos. Aliás, ao estabelecer-se um sentimento de ódio a certos grupos sociais ou povos, mesmo que no passado eles nos fossem próximos, cria-se um afastamento que permite o exercício da violência e da crueldade. Daí a facilidade com que a maioria dos actuais dirigentes europeus abraça projectos bélicos e arrasta toda a população europeia para a guerra – uma tendência que foi preparada e justificada por uma campanha prévia de afastamento, o qual por sua vez abriu caminho ao ódio em relação a terceiros.

Na realidade, os belos princípios humanistas e solidários à volta dos quais filosofamos desde a II Guerra Mundial estão carregados de contradições – não no plano dos princípios abstractos, mas sim no plano da prática quotidiana. Senão, vejamos.

Um dos aspectos da violência é o chamado «discurso de ódio», expresso em declarações públicas, panfletos, artigos de opinião, programas políticos e projectos de sociedade. Este é o aspecto social, normativo, do combate à violência-ódio. Quanto ao aspecto privado da violência-ódio, traduz-se em relações interpessoais desumanizadas: racismo, xenofobia, homofobia, misoginia (e, já agora, misandria, gerontofobia, etc.).

Comecemos por abordar o «discurso de ódio» (hate speech). Com o objectivo de prevenir e contrariar a sua expansão, a União Europeia assinou em Maio de 2016 um acordo com as maiores IT Companies (Information Technologies Companies) – Facebook, Microsoft, Twitter e YouTube –, para combater os discursos ilegais de incitamento ao ódio nas «redes sociais»; a estas empresas juntaram-se o Instagram, Snapchat e DailyMotion; em 2019 juntou-se a Jeuxvideo.co e o Tik-Toc anunciou a sua adesão em Setembro de 2020 (Sousa 2021, p. 4). Isto significa que a Comissão Europeia lavou daí as suas mãos e delegou em entidades privadas a tarefa de analisar, controlar, julgar e censurar os conteúdos publicados. As grandes IT Companies podem assim actuar a seu bel-prazer, à margem das instâncias judiciais. É o paraíso dos projectos liberais (ou dos seus descendentes neoliberais). Abre-se assim um precedente de policiamento privado, uma transferência da coisa pública para o domínio privado – uma opção política que, em teoria, está condenada a criar gritantes conflitos entre a iniciativa privada, o Estado e a liberdade de expressão (ou seja, os autores); e que, na prática, os tem criado de facto. Os juristas já escreveram milhares de páginas sobre o assunto, as experiências liberais do século XIX fracassaram e tiveram de ser substituídas por outros projectos de sociedade, mas nada disso conseguiu demover a Comissão Europeia.

Qual a fonte de contradição entre o público e o privado, neste caso particular? As instituições públicas regem-se (pelo menos em teoria) por princípios e convenções universais. A chamada «iniciativa privada» e o «mercado», eufemismos que na realidade significam «o Capital», rege-se exclusivamente pelo princípio de maximização do lucro, com total desprezo pelos tais princípios universais – princípios humanistas e solidariedade universal, por um lado, e capital, por outro, são duas esferas que não encontram intersecção. Daí que possamos apostar com toda a certeza que a tensão entre as instituições públicas e as polícias privadas jamais terá solução. A linha normativa seguida pelas autoridades europeias para combater, ou fazer de conta que combate, o cibercrime e as expressões de violência-ódio nas redes sociais não tem qualquer hipótese de vingar, enquanto insistir em passar para as mãos da «iniciativa privada» (o Capital) a responsabilidade de criar mecanismos de justiça e punição.

Por outro lado, a prática tem demonstrado que a opção de entregar aos privados o «policiamento» das redes sociais agrava os conhecidos malefícios do império do «politicamente correcto». Como mostra a história recente de páginas apagadas sem apelo nem agravo pelas empresas privadas, rapidamente nos vemos perante casos de censura «justificados» por uma correcção política cega.

Nos EUA e na Grã-Bretanha, por exemplo, os processos em tribunal relacionados com o discurso de ódio remontam pelo menos ao início do século XX. Aí, os tribunais tiveram de decidir por diversas vezes em relação ao comportamento não só de membros do Ku Klux Klan (o caso mais óbvio), mas também de activistas – o caso menos divulgado, envolvendo por regra o silenciamento e a punição de anarquistas ou revolucionários, sindicalistas ou filósofos que advogaram a luta contra o Estado ou a ordem estabelecida (Sousa 2021).

Logo à partida encontramos na luta contra o hate speech um óbice: embora algumas normas legais definam e condenem certas consequências objectivas do discurso de ódio em relação a terceiros – nomeadamente a negação de liberdades e direitos, a violência física, o genocídio, etc. –, em lado algum encontramos uma definição de «ódio» minimamente útil do ponto de vista científico e jurídico. Não é de espantar, pois trata-se de um terreno de areias movediças, como se torna claro assim que olhamos para o primeiro aspecto a ter em conta: a etimologia da palavra.

La palabra latina odium no significa necesariamente «conducta detestable», aunque alguna vez fue usada secundariamente con el valor de conducta odiosa, que genera odio en los demás (por ejemplo por el comediógrafo Terencio). Su sentido general en sus centenares de apariciones em [sic] la literatura latina es aversión fuerte, fuerte sentimiento de rechazo hacia algo o alguien, em definitiva, odio. Significa exactamente lo mismo que significaba en latín. Y el verbo enojar viene exactamente del latín inodiāre (irritar vivamente, provocar un odio hacia alguien), un prefijado latino de odiāre (odiar). (Helena, s/d)

A este sentido de «repulsa profunda» vieram somar-se no Ocidente as definições de cariz cristão (não me refiro ao cristianismo primitivo), que associam o «ódio» à «paixão», baralhando ainda mais a questão – até porque, na mentalidade cristã, paixão é sinónimo de sofrimento, de patologia, e remete frequentemente para o pecado.

Pondo de lado essa coisa detestável que é a mentalidade cristã moderna, o problema reside numa questão muito simples: o ódio é um sentimento (no sentido comum de impulso/sensação alheia à razão); ora, não é possível legislar sobre sentimentos – querer legislar sobre o ódio equivale a tentar legislar sobre o apetite e o amor (definido este último por alguns autores como a antítese do ódio). Daí que, quando tentamos explicar as razões dos nossos ódios a outrem, falhamos redondamente – a não ser que o nosso interlocutor comungue do mesmo ódio, mas nesse caso o que entra em jogo é a empatia, que é outro sentimento, e não a razão.

Por regra, numa sociedade liberal (ou neoliberal, que vai dar no mesmo), admite-se que um patrão imponha aos empregados que sustenham os seus estados de alma, a urgência de urinar, de saciar a sede, o impulso para socializar com os colegas, de forma a cumprirem certas metas de produção delineadas em abstracto por alguém que não o próprio trabalhador. O eufemismo para designar isto é em muitos casos «cumprir metas individuais», ainda que devesse ser absolutamente óbvio que essas metas não pertencem aos trabalhadores, mas sim aos patrões. É o privilégio patronal nas sociedades capitalistas, que não iremos aqui discutir.

Não faz qualquer sentido propor que o Estado legisle sobre os estados de alma. Dentro da esfera privada ligada ao Capital é aceite um conjunto de comportamentos que ferem profundamente os princípios civilizacionais a que estamos habituados na esfera pública – proibir as pessoas de ir à casa de banho ou de se levantarem da secretária para irem beber um copo de água é o supra-sumo da crueldade, como é fácil de reconhecer assim que saímos o portão da fábrica. Nitidamente vivemos numa sociedade que funciona a duas velocidades.

O conflito entre a esfera pública e a esfera privada não é novidade, encontramo-lo desde cedo nas sociedades ditas «primitivas». O que há de novo aqui é que não se trata de toda a esfera privada: não vemos com bons olhos que um marido exerça violência sobre a esposa (ou vice-versa), mas estamos acostumados a deixar passar a violência soft (isto é, não física) sobre os empregados – até porque, na esmagadora maioria dos casos, o exercício da violência soft é muito difícil de provar juridicamente, a não ser que os colegas do trabalhador visado estejam dispostos a perder o emprego para testemunharem em seu favor; e, mesmo assim, sabe-se lá se o juiz aceitará isso como prova com valor jurídico …

Por outro lado, embora não seja possível regular os sentimentos, é possível legislar sobre algumas expressões efectivas desses sentimentos – isto é, sobre os actos por eles provocados objectivamente. Exemplo: é completamente impossível impedir que eu me apaixone pela minha irmã, mas se for do conhecimento geral que tivemos relações sexuais (mutuamente consentidas, claro está), podemos ser punidos por isso. (Nota: em Portugal o incesto não é proibido nem punido por lei. Se porventura houver punição, ela é social, com afastamento e discriminação por parte da comunidade, não sendo as suas consequências de modo algum mais leves do que a pena de prisão, pois podem destruir a vida inteira das pessoas perseguidas. Do mesmo modo, não temos leis contra as relações homossexuais, ao contrário de certos Estados norte-americanos, por exemplo, mas a pressão exercida pelos vizinhos, especialmente em ambientes provincianos, pode destruir as vidas das pessoas em causa.)

Quais são então os casos admissíveis de repressão punitiva do ódio? São tipicamente aqueles em que incito publicamente ao ódio (seja lá o que for que isso quer dizer) ou diminuo as liberdades, garantias e direitos de terceiros (liberdade de trabalhar, de circular, de conviver, de exprimir ideias, etc.).

Entretanto, para complicar mais as coisas, o «senso comum» (ou a «correcção política», se preferem) extrapolou a suposta filosofia inerente à legislação, alargando a caça ao ódio até limites que, se não fossem dramáticos, seriam simplesmente ridículos. Tentemos fugir às abstracções e baixemos à terra: suponhamos que eu procuro novos trabalhadores para minha empresa. Suponhamos ainda que entre os candidatos se apresenta um negro, e que eu odeio negros. Do ponto de vista legal, se eu recusar a admissão desse trabalhador e ele apresentar queixa junto das autoridades, provavelmente posso ser punido e obrigado a admiti-lo no quadro da empresa. À primeira vista esta coacção é virtuosa, pois a minha atitude implica um acto ilegal de discriminação e violência (expressa na negação do direito ao trabalho). O problema aqui é o seguinte: na prática, no mundo real, ao ser obrigado a admitir esse trabalhador, eu vou ter de conviver diariamente com uma pessoa que me causa repugnância e talvez mesmo raiva. É uma situação insustentável, que irá causar desconforto a ambos. Pior: sendo eu hierarquicamente superior, é muito possível que não o trate com a mesma cortesia e respeito que dedico aos restantes trabalhadores e que procure sub-repticiamente prejudicá-lo, caso não seja capaz de conter racionalmente o meu ódio. Tudo farei para que ele se vá embora por vontade própria, quando já não consegue aguentar mais a pressão.

Por conseguinte, sucede que a lei, embora se dê ares de não legislar sobre sentimentos, mas apenas sobre actos objectivos resultantes da expressão sentimental, vive à margem da realidade vivida.

Cada um de nós faz parte de uma geração em plena transição – os nossos pais achavam perfeitamente natural a discriminação racial e a tortura animal, achavam que «entre marido e mulher não metas a colher», e assim por diante; nós pelo contrário, tentamos combater tudo isso; mas será que, ao nível individual, conseguimos e agimos em conformidade, apesar de termos sido sentimentalmente educados no ódio e na violência? Quando estive várias semanas internado num hospital, reparei que as enfermeiras desse hospital eram inexcedíveis no cuidado e no carinho com que tratavam todos os pacientes, sem distinção. Contudo, reparei um dia que me tratavam por «senhor», mas ao negro da cama ao meu lado, um senhor de cabelos brancos, tratavam-no por «tu». Mais tarde, reparei que também nos transportes públicos e noutros lugares eu sou um «senhor», mas os negros e negras que lá entram são «tu». Não há dúvida: ainda que inconscientemente, existem diferentes esferas de relacionamento social. Abreviando: existem diferenças, praticadas mesmo da parte de quem defende que «somos todos iguais». Enfim, não é fácil nem rápida a transição. Por outras palavras: é compreensível (e até recomendável) que se façam campanhas educativas contra o ódio racial, mas em numerosas situações do dia-a-dia é completamente disparatado punir as pessoas que sentem ódio racial, a não ser quando procedam a agressões objectivas.

Chegados a este ponto, porém, damos de caras com outro problema bicudo. Se olharmos para as sociedades que os europeus designam «primitivas», encontramos em muitas delas três liberdades/direitos fundamentais (Graeber, 2020), das quais, com o correr dos séculos, derivaram todas as outras:

  • a liberdade de deslocação (aceite em todas as sociedades «primitivas»); implica, como condição necessária, a obrigação de cortesia, solidariedade, acolhimento e cuidado por parte de todos os anfitriões por onde eu passe no decurso da minha deslocação;

  • o direito de desobediência (aceite em grande parte das sociedades «primitivas»), o que põe em causa as hierarquias, mesmo quando elas parecem existir;

  • o direito de promover a transformação social, ou, dito de outra maneira, o direito de apresentar propostas (igualmente aceite em muitas sociedades «primitivas»), ainda que depois ninguém me siga.

Quanto à liberdade de deslocação, a UE aparenta ser sua amiga. Prova disso é a liberdade de viajarmos (nós, europeus) dentro do espaço europeu, quase sem controle do Estado. Mas, se olharmos para a forma como a UE pune os imigrantes provenientes de fora do espaço europeu, vemos que a situação se vai agravando, chegando ao extremo de promover autênticos crimes de morte contra os migrantes. Neste caso, mais uma vez, assistimos a uma campanha prévia de ódio que justifica o confinamento dos imigrantes ao fundo do mar ou a campos de concentração.

Quanto ao direito de desobediência … Embora se trate de um direito consagrado na Constituição portuguesa, a sua aplicação efectiva é muito limitada, quase nula, pois caso contrário significaria a derrocada do Estado, isto é, da sua natureza mais funda: a hierarquia, a normatividade e o monopólio da violência. Ora a normatividade extrema é uma característica profunda da UE: nunca, como hoje em dia, houve no espaço europeu tantas normas a espartilharem o comportamento individual. Não posso, como poderia numa sociedade «primitiva», responder a uma ordem do «chefe» de aldeia dizendo «toma juízo, não me chateies com ordens disparatadas», virar costas e ir embora.

Este último ponto levanta a questão da violência. Dentro da sociedade ocidental actual, não posso de facto desobedecer, sob pena de ser punido, isto é, de ser exercida sobre mim uma violência que é monopólio do Estado. Ninguém pode exercer justiça por suas próprias mãos, ninguém pode agredir terceiros. Só o Estado detém o direito de exercer a violência (em teoria… na prática, como vimos, a UE vende agora o exercício da violência às grandes empresas multinacionais). Se eu for injustiçado, perseguido, agredido ou discriminado, posso apenas (tirando os casos de vida ou morte) fazer queixa às autoridades, que se encarregarão (ou não) de exercer violência punitiva em meu nome. Esta norma era antigamente olhada com uma certa displicência: na prática, muitas vezes, as autoridades fechavam os olhos a uma carga de paulada aplicada por justíssima vingança, por exemplo. Hoje em dia, porém, o monopólio da violência por parte do Estado é absoluto: só o Estado pode exercer a violência (ou «emprestá-la» a empresas privadas). Ora, como já vimos, o ódio e a violência andam muitas vezes de mãos dadas.

Resumindo, não só exprimir ódio é coisa proibida aos indivíduos na nossa sociedade, mas até sentir ódio silencioso é, digamos, um pecado. Como é que isto se coaduna com a força invicta dos sentimentos? Não se coaduna. Se sentes ódio em relação a alguma coisa ou alguém, trata de engolir em seco e sofrer em silêncio. Existe uma tentativa (nitidamente absurda) de eliminar o sentimento de ódio da esfera pessoal – o ódio é agora mais um dos monopólios de Estado, como veremos adiante.

Quanto ao direito de apresentar propostas e promover a transformação social, também estamos conversados … Apenas posso, hoje em dia, apresentar propostas que se enquadrem estritamente no sistema social e político vigente. Mais precisamente, apenas posso apresentar propostas de gestão do sistema vigente. Ou seja, as propostas revolucionárias são muito mal vistas e até censuradas à partida nos meios de comunicação mainstream. Qualquer tentativa de promover uma transformação social radical passou a ser «politicamente incorrecta» e a provocar «nojo» (uma palavra etimologicamente aparentada a «ódio»).

Temos, portanto, que as três liberdades fundamentais primitivas são hoje em dia objecto de nojo ou punição.

Já que estamos nisto, permitam-me que declare aqui o meu ódio de estimação à UE (tal como ela é actualmente, claro está, pois em nada me repugna a ideia de solidariedade e cooperação entre povos). A UE trouxe consigo uma vaga brutal de intolerância e autoridade, expressas em milhares de normas desnecessárias e disfuncionais. Exemplos: a perseguição à «economia informal»; o IVA (o mais injusto dos impostos actuais, uma espécie de corveia multiplicada por mil); e até coisas tão mesquinhas como a proibição de servir o pudim flã em copinhos de metal.

No que diz respeito às expressões de ódio, a UE conseguiu fazer uma coisa inimaginável: lançar a privatização da ordem e da justiça, como já referi. Encontramo-nos na antecâmara da governação por empresas privadas, como já foi aventado no Fórum de Davos. Este acontecimento é coerente com o facto de a UE ser um exemplo acabado de negação da democracia, pois o único órgão de poder eleito (o Parlamento europeu) é na prática o que menos poder exerce. Somos governados por um conjunto de pessoas não eleitas, nem directa nem indirectamente, e achamos que quem está contra isso é maluco…

Traduzo o meu ódio à UE numa censura amarga, quando não raivosa, a todos os governantes não eleitos da UE e faço votos de que apanhem todos eles/elas uma caganeira vitalícia que os impeça de exercerem as suas funções. Devo por isso ser punido? Se sim, é lastimável. É um retrocesso civilizacional, a meu ver.

A questão do ódio e da violência levanta ainda outro problema: como sucede com muitas outras atitudes hoje negativamente conotadas (por exemplo, o consumo de drogas), elas eram prática corrente em todas as sociedades «primitivas». A questão essencial, que marca a diferença em relação à época actual, é que essas práticas eram exercidas de forma ritual: tinham um lugar próprio, um tempo próprio e faziam parte da teia de relações que mantinha a coesão social. Embora o consumo de drogas (tal como o exercício da violência) tivesse lugar, ele era admissível apenas em situações rituais – isto é, em situações socialmente previstas e organizadas; era um comportamento indissoluvelmente ligado à coesão das relações sociais. Na actualidade, pelo contrário, a maioria dos nossos problemas com a droga (e com a violência) é gerada pelo facto de termos desritualizado e descalendarizado tudo, em benefício, nomeadamente, do prazer estritamente individual e do consumo desenfreado.

Curiosamente, com o aparecimento do Chega e o seu crescimento na Assembleia da República, as expressões de ódio passaram a ser ritualizadas – o veículo de ritualização, neste caso, é a própria Assembleia e os comportamentos da Polícia. Como é comum acontecer quando o ódio entra em cena, a sua animosidade é dirigida contra o Outro no exterior: os ciganos, os imigrantes, Cuba, Venezuela, os russos, etc. (não tenho notícia de que haja algum cigano, algum imigrante ou algum cubano no Parlamento; mulheres já vai havendo, mas cada vez que lá entra um/uma negra, levanta-se um pé-de-vento; e até um primeiro-ministro de vaga ascendência monhé deu origem a bastantes dichotes).

É muito difícil odiarmos as pessoas com quem convivemos de perto – a prazo, a tensão daí resultante é insuportável, impõe um afastamento ou uma reconciliação. O ódio dirige-se, de preferência, contra aquilo que não faz parte das nossas relações sociais directas.

Ao nível europeu, também o ódio contra certas entidades designadas pelos «sacerdotes» da UE passou a ser fomentado: ódio contra Putin, contra os artistas russos, contra o Islão, etc. Como o ódio vem associado à violência, inevitavelmente sucede o apelo directo ou indirecto à guerra. Apesar da guerra na Ucrânia, um olhar frio detecta facilmente que não existe nenhuma razão, nenhum indício para que os Europeus temam uma invasão russa. É absolutamente evidente que uma declaração russa de guerra à Europa equivaleria a um autêntico acto de suicídio da nação russa. No entanto, vemos os dirigentes europeus a agirem como se a guerra generalizada fosse um facto inevitável em curso. E vemos a população europeia, pouco a pouco, a alinhar nesse ódio. A que se deve este desvario? Por certo ao facto de o ódio ser um sentimento (por sinal contagioso, como o choro e o riso), não uma razão. Se assim não fosse, os dirigentes europeus pró-belicistas ver-se-iam a pregar no deserto, ninguém lhes daria crédito. O meu mais sentido desejo é que sigam caminho no comboio do Outono em Pequim, de Boris Vian, e que se afundem com ele nas areias do deserto, passando a fazer parte da arqueologia local.




Referências

Decisão-Quadro 2008/913/JAI do Conselho, de 28 de Novembro de 2008, relativa à luta por via do direito penal contra certas formas e manifestações de racismo e xenofobia.

João Gomes de Sousa. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio. CEJ, 5 de Fevereiro de 2021.

David Graeber. Dívida: os Primeiros 5000 anos, 2011.
O Princípio de Tudo: Uma Nova História da Humanidade, 2021. 

Helena, «Etimología de Odio», s/d.


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