Todos os regimes autoritários de pendor fascista têm dois tipos de tropas organizadas: uma tropa oficial que pode incluir vários tipos de polícias especializadas, sujeita a normas legais que na realidade estão constantemente a ser transgredidas, como se comprova historicamente; e uma tropa civil, informal, que actua como um grupo de arruaceiros sem lei nem grei.
Estas duas tropas actuam de forma combinada, de modo a instalar o medo e coarctar progressivamente todas as formas de liberdade (com uma excepção evidente: a liberdade de acção ultraliberal do grande capital).
O actual governo, apesar de espartilhado pelas regras de um regime que nada tem de fascista, conseguiu usar as suas polícias para começar a estabelecer uma ponte entre a acção policial e a brutalidade bronca dos grupos de fachos civis. No Algarve, no litoral Sudoeste, em várias regiões do Norte, os broncos viriatos armaram-se civilmente de varapaus para explicarem os seus pontos de vista xenófobos aos imigrantes. Na capital do reino, onde estão instalados os ministérios, os atributos, os símbolos e os intendentes do poder, é a polícia que se encarrega do assunto.
Os acontecimentos da passada semana (ver notícia na CNN, entre muitos outros media), consistiram na montagem de um cenário de guerra civil em pleno centro da capital, ao jeito do Líbano ou de Gaza: viam-se, em imagens abundantemente transmitidas – a divulgação abundante da demonstração da força policial faz parte da estratégia do medo –, dezenas de veículos da polícia e largas dezenas de polícias encapuçados, ostensivamente armados com armas de guerra, como se estivessem à espera de se depararem com uma selvática resistência armada até aos dentes, invadirem um pacato bairro de habitação onde há 1000 anos é costume morarem pessoas de origem africana e oriental, entre outras. A teatralidade do aparato policial instalado no Martim Moniz e Rua do Benformoso deu-nos imagens revoltantes e, lastimo dizê-lo, reveladoras de uma estupidez deplorável, que nunca julguei ser possível ver ao nível dos dirigentes políticos do país.
Durante mais de uma hora, centenas de cidadãos foram postos «de castigo», virados contra a parede. Esta imagem é-me muitíssimo familiar, porque eu próprio a vivi por diversas vezes, nos anos Oitenta-Noventa, no centro de Lisboa (Bairro Alto): fiquei detido, sem justificação nem culpa formada, durante várias horas, na rua; a seguir, numa carrinha da polícia (onde, com a repetição das rusgas e a lentidão do tempo aí passado, me habituei a fumar um charro de cannabis); e por fim fui levado e detido durante várias horas na esquadra da polícia, onde assisti a injúrias, tratamentos degradantes, espancamentos. Éramos arrebanhados na presunção de sermos culpados até prova em contrário (culpados de quê? – nunca viemos a saber). As autoridades chamavam a estas actividades «rusgas».
Para compreender plenamente o que acontecia ali, é preciso conhecer as circunstâncias históricas, sociais, económicas e culturais, sob pena de nos quedarmos bem longe da realidade. É absolutamente indispensável fazermos aqui um interlúdio para explicar essa coisa das «rusgas» e os seus antecedentes históricos.
O Bairro Alto era um lugar por onde passava grande parte das camadas intelectuais e artísticas de Lisboa; ali se perpetuava um estilo de vida cosmopolita, multicultural, efervescente e bastante contrário às boas regras da vidinha burguesa. A qualquer hora do dia, da noite ou da madrugada podíamos ter acesso a uma refeição completa de boa qualidade, tínhamos locais públicos de encontro e convívio, podíamos comprar um livro e discuti-lo à volta de uma mesa de café, etc. Este estado de coisas tornou-se uma dor de cabeça para o poder (primeiro o poder fascista, depois o seu sucessor), especialmente para o poder estúpido, aquele que não sabe lidar com as consequências a longo prazo dos actos de um governante inteligente.
Ora sucede que o Marquês de Pombal, sabendo que a classe mais perigosa (para os poderes instituídos) da sua época era a dos intelectuais e jornalistas, teve esta ideia genial: instalá-los todos juntos em qualquer parte, de forma a ser mais fácil vigiá-los e controlá-los em permanência. E assim nasceu o Bairro Alto pós-terramoto de 1755 – basta observarmos os nomes das ruas para verificarmos que todos os jornais da época foram ali sediados (com excepção dos anarquistas no século XIX). Assim se justifica a traça invulgar do bairro: com um mínimo de meios, é possível cercar os moradores, cortar os poucos pontos de acesso ao bairro e fazer demonstrações delimitadas de poder selvagem. Pois bem, é a isto que se chama «rusgas» (em brasileiro: batidas policiais ou blitz).
Ora, no Bairro Alto, onde se concentravam jornais matutinos, jornais vespertinos, semanários, editores, distribuidores, galerias de arte, pontos de encontro e debate, bibliotecas e hemerotecas, associações populares de todos os tipos, associações anarquistas e editoriais, etc., estavam criadas as condições para se consolidar o centro mais cosmopolita da capital e um dos mais problemáticos para o poder. Isso implicava também ser um bom mercado para certas actividades ilícitas que «justificavam» as rusgas. Neste contexto, o termo «rusga» deve ser entendido definitivamente como um acto de repressão em que não se prende ninguém por mais de uma noite nem se apreende nenhuma mercadoria ilícita realmente importante, mas fica o recado: «porta-te bem, senão levas no focinho».
Tudo isto para concluir no seguinte: regra geral, num país como Portugal, as rusgas nada têm a ver com o combate à ilegalidade ou à insegurança; são estratégias de combate ideológico – e por vezes até abaixo de ideológico: moral. As rusgas policiais promovidas por este governo de Luís de Montenegro – e as rusgas oficiosas promovidas pelo Chega e outros grupelhos nazis – são actos de «moralização» por via de acções violentas, e nisso muito semelham os actos terroristas dos grupelhos religiosos fundamentalistas. Há quem disfarce melhor e quem disfarce pior o carácter destas iniciativas. Carlos Moedas (presidente da Câmara de Lisboa), por exemplo, pertence obviamente à segunda categoria: é um acólito néscio das direitas duras, como se percebeu desde o primeiro dia da sua entrada na cena dos «crescidos».
As circunstâncias históricas, geográficas e sociais da Mouraria são diversas das do Bairro Alto. Chamei este exemplo à baila, porque os exemplos históricos são mais claros, menos «empoeirados» e mais fáceis de entender. Em ambos os casos, porém, estamos perante rusgas de índole moral. Evidentemente, todas as rusgas morais servem para atingir objectivos políticos – nunca a moral, no sentido corriqueiro da palavra, serviu para outra coisa, senão para alcançar fins políticos eximindo-se ao combate ideológico.
Isto permite-nos perceber com enorme clareza que Luís Montenegro e André Ventura, mesmo que jurem a pés juntos, durante meses a fio, que «com esse senhor jamais irei para a cama», são os dois grandes bispos da futura fascização do regime político português. São como dois amantes envergonhados e perseguidos. Pois bem, morram eles com pompa e circunstância shakespeareana e atafulhem os seus féretros as aberturas dos telejornais durante muitos dias.
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