08/06/24

Levantai-vos do chão!

Resumo: a esquerda sofreu um grande trambolhão e só se levantará do chão se reinventar algo que já fez, num dos seus períodos dourados: criar instituições autónomas de ensino.

O trambolhão

Nos últimos 40 anos do panorama político português, a esquerda radical sofreu um trambolhão e viu minguar a sua presença nas instituições da democracia representativa – ainda que, quanto a mim, este não seja um aspecto especialmente grave para o bem-estar dos trabalhadores. Na irrequieta balança das relações de força, ao afundanço do prato da esquerda radical corresponde uma ascensão do prato da direita radical – incluindo o liberalismo puro e duro e os neofascistas.

Há um ou dois aspectos particulares dessa queda que gostaría de abordar: um directamente – a relação entre as organizações autónomas dos trabalhadores e o ensino –, outro indirectamente – o radicalismo (ou falta dele) no discurso e nas acções de transformação da sociedade.

 

Alguns antecedentes históricos, para o bem e para o mal

Para compreendermos o potencial de transformação social dos projectos de esquerda, temos de recorrer à memória histórica do movimento operário (termo que hoje pode hoje em dia parecer descabido, mas penso que o meu leitor não terá dificuldade em entender que me refiro ao movimento operário e rural em épocas passadas e à generalidade dos movimentos de trabalhadores em épocas presentes).

Em finais do século XIX encontramos regimes de trabalho muito similares aos que temos hoje: cargas horárias excessivas (mais-valia absoluta), trabalho à peça ou por subcontratação (a que se chama hoje eufemisticamente «empreendedorismo»), ausência de contratos colectivos, desaparecimento de numerosas regalias (férias pagas, períodos de descanso convencionados, limite das 40 horas semanais de trabalho, infantários, etc.), extensão do período de trabalho sem remuneração compensatória, sobreexploração e abuso das mulheres, rompimento dos períodos de trabalho convencionados, com a possibilidade de o patrão chamar ao trabalho a qualquer hora do dia, da noite e da semana, etc. Com a única excepção da exploração do trabalho infantil, encontramo-nos embarcados numa máquina do tempo que em substância nos fez regressar à época das relações de trabalho liberais do século XIX, ainda que se registem pequenas diferenças formais. Por isso a designação «neoliberalismo» encontrada para caracterizar a época actual é perfeitamente adequada.

A solução para transformar a sociedade, tornando-a mais justa e equitativa, continua a ser a mesmíssima do século XIX: a transformação radical das relações de trabalho. Também nesse aspecto nada mudou em relação à época liberal.

No essencial, o que mudou foi a visão dos próprios trabalhadores (e de grande parte das suas organizações) quanto às relações de trabalho: o trabalhador da época neoliberal tende muito mais a acreditar na possibilidade de conciliação dos seus interesses com os do patrão, do que os seus bisavós da época liberal – apesar de estes, na sua esmagadora maioria, serem analfabetos!

O que marca a grande diferença entre as duas épocas é a atitude das organizações autónomas dos operários de antanho, que em grande parte dos casos, graças à influência anarquista, não propunham objectivos meramente económicos, mas também políticos. Daí que os congressos sindicais, sem papas na língua, propusessem o fim do capitalismo e enveredassem por diversos tipos de intervenção na sociedade em geral (e não apenas nas relações directas de trabalho), às quais eles próprios chamavam «melhorias das classes trabalhadoras». Estas iniciativas, além de socorros mútuos, clínicas, etc., incluíam a instituição de escolas populares, bibliotecas populares e universidades populares.

O que aconteceu entretanto, no caso português? Em primeiro lugar, a única forma de derrotar a pujança crescente dos movimentos populares e do movimento sindical passou por uma derrota militar, seguida da instauração de uma ditadura que arrasou e manietou as organizações sindicais, bem como toda a espécie de movimentos populares autónomos, e dizimou as correntes anarquistas, que não estavam preparadas para resistir a um golpe desse género. Também não ajudou nada o facto de o PCP (Partido Comunista Português, criado em 1921) ter decidido usar como primeira forma de afirmação no terreno a renegação da expressão organizativa mais forte dos movimentos de trabalhadores no seu conjunto: a CGT (Confederação Geral do Trabalho, criada em 1919, sucessora da União Operária Nacional; a qual, por sua vez, também sofrera uma cisão resultante do confronto entre o radicalismo político do «sindicalismo revolucionário», que se propunha acabar com o capitalismo, e o Partido Socialista Português, que procurava conciliar patrões e empregados). Ao distanciar-se da CGT, o PCP forçosamente se distanciava também da UNIE (Universidade Nacional de Instrução e Educação, criada pelo movimento sindical).

Com a repressão levada a cabo pela ditadura, desaparece a maior parte das escolas operárias e sindicais, das bibliotecas e de todos os outros esforços anarco-sindicalistas para criar uma educação e uma pedagogia autónomas que «elevassem» as classes trabalhadoras e lhes fornecessem uma consciência da sua situação. Os últimos resistentes encontram-se ainda hoje simbolizados na Sociedade de Instrução e Beneficência A Voz do Operário, criada em finais do século XIX.

Em suma, no nosso entender a grande questão que se põe hoje é esta: poderão as massas exploradas adquirir uma verdadeira consciência da sua situação em que vivem, e actuar de forma eficaz sobre ela, se não lhes for fornecido um aparelho educativo e uma estratégia pedagógica autónoma, sustentada e gerida pelos próprios trabalhadores? Poderá a esquerda radical reerguer-se alguma vez do chão, se não fizer um esforço nesse sentido?

 

A evolução das escolas populares no primeiro quartel do século XX

As escolas populares (fossem elas associativas, ou operárias, ou sindicais), começaram por ser nocturnas e dirigidas a adultos, por razões óbvias – no início do século XX, cerca de 75 % da população com mais de 7 anos de idade ainda era analfabeta. Mais tarde passaram a ser também diurnas e dirigidas aos filhos dos operários. Mas o facto mais importante a assinalar, nessa primeira fase, foi a tomada de consciência, por parte dos sindicalistas revolucionários, de que não seria possível obter progressos económicos, políticos e culturais duradouros sem trabalhar pela «elevação» das classes trabalhadoras. Daí o aparecimento de escolas sindicais, em especial nos sectores dos metalúrgicos, construção civil, indústria bélica, trabalhadores do mar, do tabaco, da cortiça, das empregadas domésticas, dos serviços e das escolas.

Ainda segundo António Candeias, entre 1917 e 1925 houve 41 escolas sindicais recenseadas, sendo 29 da responsabilidade dos sindicatos operários urbanos. A macrocefalia do país manifesta-se no facto de haver em Lisboa 25 escolas sindicais. Se a isto juntarmos o número de escolas da Voz do Operário ou as escolas por ela controladas, teremos em Lisboa cerca de 100 escolas directa ou indirectamente ligadas ao movimento operário. Ora, segundo o Anuário Estatístico de 1909-1910, existiam em Lisboa 79 escolas oficiais; mesmo tendo em conta que nos anos 1920 as escolas oficiais devem ter aumentado bastante em número, a relação entre escolas oficiais e escolas operárias não deixa de ser impressionante.

Inicialmente as escolas populares foram feitas à imagem do ensino oficial. Porém, à medida que o debate se foi aprofundando, nasceu a consciência de que era necessário recorrer a modelos pedagógicos diferentes dos oficiais.

«A escola de hoje mais se assemelha a uma caserna que a uma instituição encarregada de fornecer à sociedade homens livres e úteis» [in O Metalúrgico, n.º 25, 1904]. «(…) a nós cérebros libertos da instrução dogmática cabe-nos o dever não de pedir ao Estado que remodele a instrução, o que ele nunca fará, mas de criarmos escolas (…) fundadas na moderna pedagogia (…) Um esforço pois, que o interesse é nosso e dos nossos filhos» [id., ibid.]. O congresso da CGT discute e aprova em 1922, na Covilhã, uma tese em que os sindicalistas se propõem criar «em cada indivíduo, um valor e consciência sociais, uma capacidade técnica e administrativa de gestão» que lhe «eleve a mentalidade», isto é que o eduque «económica, familiar, artística, científica, moral e juridicamente», com a finalidade entre outras de «organizar simultânea e concumitantemente [sic] a sociedade futura (...)» [colhido em António Candeias, «As Escolas Operárias Portuguesas do Primeiro Quarto do Século XX», in Análise Psicológica, (1987), 3 (V): 327-362].


A situação educativa actual

Evoco o exemplo histórico do esforço educativo dos sindicatos do primeiro quartel do século XX, como intróito à defesa da tese de que, se os movimentos populares não procurarem criar as suas próprias escolas e a sua própria pedagogia, é muito duvidoso que voltem a obter significativas vitórias duradouras na luta por uma sociedade futura mais justa e equitativa. Mas esta evocação encerra um problema: embora as relações de trabalho se mantenham na substância tal qual eram há um século, muitos outros aspectos das relações sociais sofreram alterações profundas.

O primeiro aspecto a considerar é que os sindicalistas revolucionários de há um século tinham pela frente um problema que já não existe: como já referi, em 1911 cerca de 75 % da população portuguesa maior de 7 anos não sabia ler nem escrever.1 Pôr os trabalhadores a ler e a escrever, isto é, em condições de estudar e discutir a sua própria condição e comunicar internacionalmente entre si, como era a ambição anarquista, já era uma grande vitória.2 Hoje em dia o número de analfabetos é residual; resulta apenas da presença de restos das velhas gerações que, graças ao prolongamento da esperança de vida, ainda por cá andam. O problema coloca-se hoje mais ao nível da qualidade pedagógica, fazendo de modo que os futuros trabalhadores não sejam educados para amarem a exploração do trabalho, mas sim para dominarem a sua própria vida e saberem agir para a transformação social.

O segundo aspecto a considerar tem a ver com os meios de educação – ou, mais exactamente, com os meios através dos quais é transmitida uma visão do mundo e uma ética (incluindo a da disciplina do trabalho). Para a maioria da população do primeiro quartel do século XX (os tais 75 % analfabetos), esses meios provinham sobretudo do ambiente familiar e da Igreja. Actualmente os principais meios de educação hegemónicos são a escola controlada pelo Estado e os órgãos de comunicação – com a agravante de que, por motivos económicos, já não pode haver uma proliferação de publicações revolucionárias como havia dantes, e os periódicos e cadeias de difusão (incluindo as digitais) estão nas mãos de grandes empresas monopolistas.

Em certos países, como os EUA, a força do cinema e da televisão, que se constituem como autênticos manuais/aulas de moral, ética e estética, é brutal. Mas, em boa verdade, a força desses meios educativos está em toda a parte, só que salta muito mais à vista em culturas alheias, do que na nossa. Por exemplo, a televisão e os jornais portugueses mergulham-nos sub-repticiamente num ambiente de permanente julgamento de intenções e negação da realidade, estabelecendo assim um clima inquisitorial eivado de pensamento mágico3.

A situação actual dos meios de educação dificulta certas coisas e simplifica outras – por exemplo, a orientação pedagógica da escola oficial é muito mais fácil de criticar, mais normalizada e menos sujeita a variantes do que a educação transmitida por via familiar, que em muitos casos se tornou residual.

Contudo, a maior dificuldade talvez resida no facto de, ao longo de várias gerações, nos termos habituado a que todos estes aspectos da nossa vida (saúde, educação, etc.) sejam «naturalmente» organizados pelo Estado, a quem nos limitamos a pedir contas periódicas, segundo a lógica da democracia burguesa representativa. Durante sucessivas gerações habituadas a alcançarem vitórias parciais, esta solução parecia a melhor. De facto, embora no início do século XX já houvesse clínicas montadas e geridas directamente pelos trabalhadores, elas não bastavam para garantir o princípio do acesso universal e incondicional aos cuidados de saúde. Só com a passagem dessas instituições para as mãos do Estado foi possível concretizar o princípio do direito universal à saúde. O mesmo se passou com a educação: as escolas sindicais ou populares não tinham a capacidade de chegar a toda a população – o acesso universal à educação teve de passar pelo seu controle total às mãos do Estado.

Tudo isto é muito bonito, mas a contrapartida do acesso universal à saúde e à educação foi a perda de controle directo e absoluto das instituições em causa por parte dos trabalhadores. Ora, se o controle de uma estrutura estratégica, uma estrutura que exige grandes investimentos e é passível de diversas opções contraditórias entre si, não pertence directamente aos trabalhadores, então pertence a quem? Aos anjos não será, certamente, a não ser que acreditemos no pensamento mágico. Sobram os capitalistas (ou melhor, para evitar confusões na cabeça do leitor mais distraído: aqueles que exploram o trabalho alheio e detêm o capital para investir nessa exploração). Estão a ver a dificuldade? Nos anos bons, aqueles em que a relação de forças tende para o lado dos trabalhadores, os interesses específicos dos trabalhadores são acautelados, novos direitos e garantias são conquistados e o Estado é obrigado a aplicá-los. Nos anos maus, aqueles em que a relação de forças pende para o lado do Capital, os trabalhadores têm de dizer adeus às conquistas que tinham acabado de alcançar e vêem espezinhados os seus interesses. E se esses anos maus se alongarem por demasiado tempo, a memória das lutas e das conquistas corre o risco de perder-se e, na falta de uma pedagogia dedicada a mantê-la, os explorados e oprimidos têm de voltar à casa de partida.

Acresce que todos esses direitos universais foram firmados num Pacto Social que estabeleceu umas tréguas relativas na luta de classes (à saída da II Guerra Mundial na generalidade da Europa Ocidental; à saída do golpe militar de 25 de Novembro de 1976 no caso português). Ora sucede que esse pacto foi rasgado no dealbar da época neoliberal (a partir de 1973 no Chile, 1979 na Inglaterra, 1981 nos EUA, 1985 em Portugal). De então para cá, temos assistido ao lento desmantelamento de todas as estruturas firmadas no Pacto Social, as quais garantiam uma melhoria ou um relativo bem-estar dos trabalhadores nos países industrialmente mais avançados.

O que é realmente estranho, é que os trabalhadores e as suas organizações tenham resistido durante várias décadas, até hoje, a reconhecerem que o Pacto Social foi rasgado, dando lugar ao desregramento selvagem típico do liberalismo e do neoliberalismo. As classes populares parecem imersas num sonho sem qualquer respaldo na realidade – ou, melhor dizendo, vivem um pesadelo não reconhecido.

A nossa tese é que, pertencendo esta incapacidade de reconhecer a realidade ao foro cognitivo, a explicação para semelhante disfunção tem de residir nos vícios de formação/educação das classes trabalhadoras.

 

Conclusão

Não creio que as correntes de esquerda e os movimentos populares em geral possam algum dia voltar a levantar-se do chão de forma duradoura, se não regressarem de certa forma às suas origens. Isto significa, nomeadamente, começar a recriar «escolas populares» assentes, pelo menos em parte, noutras pedagogias, e capazes de criarem seres humanos inteiros, conscientes do mundo em que vivem e capazes de o transformar, e não de se conformarem a ele. Uma escola que, ao invés de perpetuar mitos, visões distorcidas da realidade e pensamentos mágicos, prepare as pessoas para entenderem o mundo físico e social que as rodeia, para se entenderem a si mesmas e para fundirem de forma feliz o pensamento e a acção.

É sem dúvida um plano que exige grande persistência e paciência, pois os seus possíveis efeitos poderão levar décadas a florescer. Mas é um plano que me parece indispensável para recuperar tudo quanto foi perdido e esquecido.


 

Referências

António Candeias, «Movimento Operário Português e Educação», in Análise Psicológica (1981), II(1):39-60.

António Candeias, «As Escolas Operárias Portuguesas do Primeiro Quarto do Século XX», in Análise Psicológica (1987), 3 (V): 327-362.

David Tavares & Manuel Pimenta, «O Ensino Não-Oficial na 1.ª República – “A Voz do Operário”», in Análise Psicológica (1987), 3 (V): 363-37.

António Candeias & Eduarda Simões, «Alfabetização e Escola em Portugal no Século XX: Censos Nacionais e Estudos de Caso», in Análise Psicológica (1999), 1 (XVII): 163-194.

Carmen Cavaco, «Analfabetismo em Portugal – Os Dados Estatísticos, as Políticas Públicas e os Analfabetos», in Revista Internacional de Educação de Jovens e Adultos, v. 01, n. 02, p. 17-31, jul./dez. 2018.


Notas

1 Rui Grácio, «Ensino Primário e Analfabetismo», in Dicionário de História de Portugal (dir. de Joel Serrão), Lisboa, vol. II, 1971, p. 51.

2 Recordemos que a proliferação de publicações operárias e anarquistas neste minúsculo país de analfabetos era assombrosa, quando comparada com os restantes países europeus.

3 Exemplo: tornou-se lugar-comum uma das máximas do recentemente criado partido Iniciativa Liberal: se baixarmos os impostos às empresas, elas irão aumentar os salários – eis o supra-sumo do pensamento mágico, contra o qual militam abundantes exemplos históricos. O mesmo se diga do princípio da dissuasão armamentista, segundo o qual, se nos armarmos todos até aos dentes, os nossos inimigos (?) hesitarão em fazer a guerra (e nós também?). Etc.

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