20/05/24

Onde a disfuncionalidade roça a criminalidade

 

Imagem de um general disfuncional, criada por inteligência artificial @ Craiyon

Numa reportagem apresentada na rubrica «60 Minutos» da SIC, dia 19/05/2024, às 15:07, foi gravado um rol de afirmações aflitivas. Vale a pena comentá-las.

Antes, porém, comecemos por recordar o contexto: as forças militares israelitas, ao longo de seis meses, foram varrendo e concentrando no sudoeste de Gaza a população palestina que habitava ao longo de toda a Faixa. Concentração é aqui a palavra-chave: os palestinos estão agora devidamente amontoados e em condições de lhes ser aplicada a «solução final» – basta que a força aérea israelita faça cair sobre Rafah uma chuva de bombas e acaba-se o conflito israelo-palestino naquela zona, por eliminação total de um dos contendentes. Comparada esta «solução final» com a dos nazis na Alemanha de Hitler, não sei dizer qual das duas sai mais barata, mas esta parece-me bastante eficaz. De resto, enquanto os EUA fornecerem carradas de bombas, que importam os custos?

Mas regressemos à reportagem transmitida pela SIC. A dado momento, um general da força aérea israelita explica a ofensiva militar sionista em Rafah, o tal local onde as forças militares israelitas concentraram metodicamente a população palestina. Diz ele: trata-se de uma «operação muito específica (…) muito precisa, na parte leste de Rafah». Ao que a entrevistadora retruca com uma observação atónita: «Se o que diz é verdade, porque é que estamos a assistir ao que parece ser um bombardeamento indiscriminado?».

«Compreendo», diz o general, com um estranho ar sorumbático. «E lamento. Mas o que importa reter é que foi o Hamas que nos arrastou para este tipo de guerra.»

Esta tirada sobressaltou-me: é não só assustadora, mas também demencial em si mesma, vinda de um adulto. Assustadora, por se tratar de um adulto com o poder de carregar nuns botõezinhos vermelhos que disparam bombas atómicas. Demencial, porque, confrontada com a realidade histórica, a justificação apresentada para esta «solução final» é absurda, disfuncional.

Esta seria uma atitude «normal» (por assim dizer) em crianças entre os 4 e os 7 anos – a idade do pensamento mágico. Graças ao pensamento mágico, o carácter criminoso do acto torna-se necessário, justo e justificado.

Pode acontecer que duas crianças na idade do pensamento mágico se envolvam em diferendos agrestes e até em confronto físico violento por terem interesses momentaneamente divergentes, por ambas querem brincar sozinhas (o que já de si é estranho) com a única bola existente, ou pretenderem a posse única de um território escasso, etc. A resposta correcta dos adultos consiste em separá-los e explicar-lhes que existem outras maneiras de resolver os diferendos – sem recorrer à violência física ou emocional, que é sempre mais favorável ao mais forte mas não garante a resolução racional, funcional e a contento de todas as partes. É precisamente nesta idade que se adquire (ou jamais se adquire) a capacidade de gerir de forma funcional a frustração e os diferendos. É a idade, em geral, da aquisição da funcionalidade pessoal e social. Quem não tiver a oportunidade de fazer essa aprendizagem nessa idade, corre o risco de ficar toda a vida um general disfuncional, rodeado de botões vermelhos e espalhando a radioactividade em seu redor – ou, em bom português de antanho, tornar-se «um morgadinho».

Imagem de outro general disfuncional, criada por estupidez natural @ RVP
Separar duas crianças engalfinhadas por uma questão de lana-caprina exige por vezes uma certa força, caso elas ignorem o apelo dos adultos à calma, mas, tirando esse brevíssimo momento de ruptura, não faz qualquer sentido abordar a situação com o exercício de mais força. Advogar a funcionalidade e a superioridade do não exercício da força recorrendo à força é um contrasenso que, de facto, desde a guerra na Ucrânia vem separando os dois campos principais em confronto ideológico e programático – sendo o campo do contrasenso (a escalada da guerra) aquele que de momento parece ter mais força política no famoso Ocidente civilizado, nomeadamente entre a esmagadora maioria dos comentadores e políticos de centro e de direita portugueses e europeus. Isto diz muito acerca da idade mental e da disfuncionalidade social da «classe dirigente» actual. E é assustador.

Sem comentários:

Enviar um comentário