29/03/24

A ultradireita em pratos limpos

 

Nos primeiros 18 dos 24 cantos da Ilíada, Aquiles amua e recusa-se a ir a jogo. Isso não impede bastos comentadores de o darem como herói e personagem central da Ilíada

Finalmente todo o campo progressista começou a tomar consciência da verdadeira dimensão da ultradireita em Portugal. Não por um esforço de análise racional, mas simplesmente porque as 50 cadeiras da bancada parlamentar do partido Chega, eleitas em 10-03-2024, lhe caíram em cima com a brutalidade inesperada de um piano lançado do 7º andar.

No entanto, apesar de ter começado a despertar para a realidade, não sei se podemos dizer que o campo progressista tenha tomado plena consciência dos acontecimentos. Em favor desta minha dúvida invoco pelo menos dois argumentos:

 

1) A introdução de símbolos da ditadura e do terrorismo de ultradireita nos mais altos órgãos do Estado, sem que isso tenha levado todo o campo progressista a armar um pé-de-vento no Parlamento e fora dele.
PSD + CDS + Chega elegeram Diogo Pacheco de Amorim para a vice-presidência da Assembleia da República (AR). Recordemos que o presidente da mesa da AR é a segunda figura do Estado e representa o país em caso de impedimento do Presidente da República; no impedimento de ambos, avança o vice-presidente, ou seja, devemos equiparar a carga simbólica da vice-presidência à da presidência. Recordemos também que Pacheco de Amorim é o fidedigno representante vivo do MDLP e do MIRN (vários outros fundadores e dirigentes destes movimentos já morreram), organizações terroristas de ultradireita responsáveis por uma intentona contra o regime democrático em 11/03/1975, pela morte de vários militantes progressistas e antifascistas, incluindo um padre, pelo espancamento e mutilação de vários negros, militantes de esquerda, sindicalistas e homossexuais, entre outras malfeitorias de que viriam a ser perdoados ostensivamente, caso contrário não andariam por aí à solta.
O que eu esperava de todo o campo democrata (de esquerda, centro e direita), mesmo sabendo-se que o conluio PSD+CDS+Chega reunia votos suficientes para fazer da eleição de Pacheco de Amorim um facto inelutável, seria um enorme pé-de-vento, dentro e fora da Assembleia, com manifestações de rua, artigos de opinião, intervenção profusa nas redes sociais, senão mesmo com lançamento de tomates e ovos podres à saída do Palácio de São Bento. Nada. A eleição do dito energúmeno singrou numa calmaria silenciosa. Por mais pacifista e democrata que eu seja, jamais poderei perdoar ao PSD a eleição do co-responsável pela morte, mutilação e espancamento de alguns amigos e conhecidos meus. Como termo de comparação, imaginem que a esquerda parlamentar propunha para a mesa da AR um ex-militante das FP25, por mais arrependido que ele fosse – não é difícil imaginar o escarcéu tremendo que a direita levantaria no país inteiro!

Diogo Pacheco de Amorim,
destacado ideólogo do Chega

Kaúlza de Arriaga,
fundador do MIRN
 2) A institucionalização da ultradireita legitimou e fez sair do armário todos os esqueletos que lá estavam guardados.
Será que a eleição de 50 deputados do Chega resulta de um voto de protesto ou de um voto de convicção? A esmagadora maioria dos comentadores, dos responsáveis políticos e do público em geral afirma que a maioria dos votos no Chega são votos de protesto. Isto é, os portugueses não gostariam do Chega, das suas figuras de proa, do seu programa de acção, mas achariam boa ideia votar nele como forma de protesto contra os outros partidos e o estado actual das coisas. Esta afirmação, por sua vez, implica duas outras presunções: 1) que os portugueses em geral seriam completamente idiotas; 2) que bastaria subir o nível de vida geral e resolver meia dúzia de problemas correntes, para que os votos no Chega se evaporassem como por magia. Acho ambas as presunções uma palermice inqualificável. Ainda que alguns portugueses mais ou menos tontos tenham votado no Chega como forma de protesto contra os outros partidos – alguns dos quais, diga-se de passagem, nunca se aproximaram, nem de perto nem de longe, das instituições de poder, sendo portanto igualmente elegíveis como representantes do protesto… –, basta sair à rua, frequentar os cafés, tascas e autocarros, ouvir as conversas que aí se desenrolam, para concluir que a maioria dos votantes no Chega deu-lhe a sua cruzinha por convicção, e não por protesto. Sim, é isso mesmo: existe uma larga camada da população portuguesa com uma cultura racista, xenófoba, misógina, homófoba, machista, colonialista, corrupta … Eles andavam por aí, embuçados, até ao dia em que a legalização do Chega e a sua projecção na comunicação e nas redes sociais legitimou a saída à luz do dia dessa vasta camada de portugueses que são como mortos-vivos remanescentes da idade das trevas, autênticas micoses salazaristas jamais erradicadas. Acho espantosa a teima dos referidos comentadores e políticos em negar esta realidade, em criar uma ficção, um mito (mais um!, na boa tradição salazarenta), segundo o qual aquele décimo da população portuguesa que votou Chega é muito boazinha, muito democraticazinha, muito progressistazinha, mas está chateada e por isso votou fora de si. Desculpem a indelicadeza, mas é preciso ser um bocadinho tonto para inventar semelhante treta.

Para quem não acompanhou a novela dos dois primeiros dias da nova AR, aqui vai um resumo: o PSD estabeleceu um entendimento tácito, de cavalheiros, com os outros partidos da direita, incluindo o Chega, de forma que as três bancadas de direita juntas, com maioria na AR, elegeriam o candidato a presidente do PSD e este, em contrapartida, votaria no vice-presidente proposto pelo Chega, fosse ele quem fosse, sem dizer pio, mesmo que fosse esse filho de um facho chamado Pacheco de Amorim. Porém, na manhã seguinte, um ou mais responsáveis da AD (PSD+CDS) vieram a público dizer, de forma bastante desastrada, que não, continuava a não haver nenhum acordo/aliança com o Chega, conforme tinham prometido. Ora André Ventura, presidente do Chega, que andava há semanas num assédio infrene ao poder (isto é, à caça de um tacho no governo), entrou em histeria. Num desatino exaltado, roeu a corda do referido acordo de cavalheiros e inviabilizou a eleição do presidente proposto pela AD, mergulhando a AR num impasse bastante assustador, visto que sem presidente e vogais, a AR não pode iniciar os seus trabalhos normais – a nova AR acabava de ser anulada por uma birra de André Ventura! Decorridas 24 horas, um novo entendimento entre PSD e PS desatou o impasse – e foi eleito o candidato da AD, a meias com um do PS, mais o energúmeno proposto pelo Chega.

Por regra, detesto o uso do psicologismo na análise política. Neste caso, porém, em desespero de causa, estou disposto a abrir uma excepção: ficámos a saber como se esturrica a popularidade de André Ventura junto de vastas camadas populares! O homem tem um defeito de carácter: não suporta ser contrariado, não sabe lidar com a frustração – desatina, desata a disparar histericamente em todas as direcções, faz chantagem emocional/política com toda a gente, presta-se a figuras tristes que lhe desnudam a máscara.
Aí está como combater a popularidade de André Ventura: contrariem-no a torto e a direito, mesmo quando não seria necessário, e o homem se enterrará por suas próprias mãos. Mesmo que ele, por um oportunismo qualquer, apresente uma excelente proposta de lei, chumbem-na (não há crise, a seguir podem apresentar a mesmíssima proposta em vosso nome, sem prejuízo para a população); se ele se mostrar disposto a votar favoravelmente uma proposta vossa, retirem-na, explicando que não querem os votos dele, e a seguir apresentem outra equivalente. Etc. Vão vê-lo a passar-se dos carretos, a vociferar histericamente no púlpito e fora dele, a revelar-se perante o povo português como um morgadinho a quem negaram a sobremesa.

Alguma coisa se ganhou com esses dois dias de crise parlamentar: está encontrada a fórmula para combater eficazmente o morgadinho da ultradireita.

Mas não deixa de me espantar que vários comentadores de televisão tenham afirmado que o político mais habilidoso da cena portuguesa, e em particular do Parlamento, é André Ventura, que a todos comeria as papas na cabeça. De facto, se todos os deputados fossem do calibre destes comentadores, Ventura a todos estriparia com uma mão atrás das costas. Felizmente, não se passa nada disso. Passa-se simplesmente que os omnipresentes comentadores dos canais televisivos são na sua maioria ... hum... incompetentes, sendo incapazes de ver os factos mais óbvios, como os acima descritos.



Fontes e referências:

«Pacheco Amorim, do Chega, eleito vice-presidente do Parlamento», RR, 27/03/2024.

«Das bombas de 75 a “vice” do Parlamento? Quem é e como pensa Diogo Pacheco de Amorim», Visão, 4/02/2022.

«O império de João Maria Bravo: da Escravatura à Guerra Colonial, das armas ao Chega», Setenta e Quatro, 26/07/2021.

«Quem é o ideólogo na sombra de André Ventura? Da direita armada ao programa do Chega!», Expresso, 15/12/2019.

«Movimento Democrático de Libertação De Portugal (MDLP)», Setenta e Quatro, s/d.

Maria João Babo, «Portugal à lei da bomba», Jornal de Negócios, 25/04/2017.


 

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