05/08/23

Desandem daqui, emplastros

 

Puppy, de Jeff Koons, 2010 [CC BY-SA 4.0]

As pessoas mal informadas, ainda que bem-formadas, pensam que Portugal vive um sufoco agónico, uma espécie de hipérbole troikiana de miséria e drama, com salários inferiores às rendas de casa, reformas minúsculas que não cobrem despesas de farmácia, dietas farináceas de austero pão e esparguete, serviços públicos em colapso, mães solteiras que, por terem ficado sem casa, perdem os filhos sabe-se lá para quem e por mor de que negócios, e um primeiro-ministro que anuncia hoje um aumento de 15 euros nas pensões de velhice e na semana seguinte, pela calada, as reduz a 65 % do que eram.

A quem nutra semelhantes ideias, aconselhamos que sintonize os canais de televisão portugueses, 24 horas por dia, e assim se desengane. Nesta semana das Jornadas Mundiais da Juventude [Católica] (JMJ), descobrirá que a única coisa que existe no rectângulo lusitano é um maravilhoso rosário de rituais católicos, Papa e futebol, exactamente como no tempo do saudoso Salazar, com hossanas e orgasmos colectivos – e até múltiplos, aleluia! – ao longo do dia, perante as titilantes imagens do Papa. A realidade não corresponde, de forma alguma, à catastrófica imagem pintada no primeiro parágrafo deste texto. A realidade é, muito pelo contrário, vivida en rose, e a merda não existe em parte alguma, nem sequer na retrete, como diria Milan Kundera a propósito do kitsch. Vejam a televisão e confiram, sff.

Note-se, porém, em abono da verdade: o que se passa na cidade de Lisboa não é uma peregrinação da juventude cristã, como insistem em afirmar os repórteres de televisão, mas sim uma colónia de férias da juventude tout court, a expensas dos contribuintes portugueses. É fácil perceber isso quando, passeando pelas ruas, observamos a realidade real e encontramos pueris brebis ruminando litradas de sangria, gente a urinar à nossa porta, alcateias de 30 a 40 jovens dos 8 aos 18 anos sentados nas carruagens de Metro, sem darem lugar a velhos, inválidos ou grávidas. Note-se que, tirando estes minúsculos pormenores negativos, aquilo é tudo gente muito cordata, muito cristã, muito devota, que adora entoar cânticos melados. E de resto todas essas impudências podem ser redimidas ao preço de três ave-marias modicíssimas.

Entretanto, em vários lugares de Lisboa, os miseráveis que dormiam em tendas, nas arcadas de certas avenidas, levaram uma corrida em pêlo gratuitamente servida pelas forças policiais, a fim de não mancharem a imagem da cidade (como quando Salazar proibiu o pé descalço na capital). Para quem vive noutro planeta, como acontece com o presidente da Câmara, Carlos Moedas (neste caso, o planeta Bimbo, ou Bimbi, ou Bambi, confira-se o passaporte respectivo), convém esclarecer o seguinte: os referidos sem-abrigo não são, na maior parte dos casos, uns gandulos apostados em viver à margem da sociedade ou «à custa dela» (se assim fosse, poderiam ser equiparados a capitalistas imobiliários e perdoados); são pessoas que trabalham na cidade, umas migrantes, outras nem tanto, cujo salário não atinge os mínimos para pagar uma casa. Infelizmente, o facto de a polícia os ter (novamente) desalojado não fez com que desaparecessem – muitos deles foram dormir para os bancos da avenida ao lado. Mais valia ter resolvido o assunto de uma vez por todas, cremando-os por atacadoisso sim, seria uma solução final.

Tea Pavillion, de Joana Vasconcelos, no Cafesjian Sculpture Garden [foto de a/d, CC BY-SA 4.0]
 

A questão da solução final releva uma questão central: se extraíram da minha introdução a disparatada ideia de que estou a zurzir no turismo como actividade fulcral da economia portuguesa, então peço perdão – exprimi-me muito mal. O turismo industrial, selvagem, em curso neste país, está óptimo. A expulsão dos moradores locais dos seus lares, das suas arcadas e dos seus bancos de jardim, para darem lugar a turistas e peregrinos, é uma coisa bestial, uma economia óptima. O que está mal não é as JMJ cortarem os fluxos pendulares da economia metropolitana de Lisboa, com o consequente refluxo das actividades produtivas, do bem-estar pessoal e social; nem os turistas virem mijar à nossa porta, sem deixarem um cartão com o seu endereço, para podermos retribuir a gentileza; nem a indústria do turismo substituir os nossos velhos restaurantes de tradição cultural portuguesa, para instalar hamburguerias, pizzarias e outras iguarias insípidas; nem o facto de perturbarem a nossa vida, o nosso trânsito, os nossos transportes diários, os nossos passeios públicos, e por aí fora. Isso seria ver o mundo de pernas para o ar.

Não, o que eu defendo é que nós é que estamos mal aqui, estamos a mais. É evidente a qualquer QI mediano que nós é que estamos a perturbar a vida dos turistas, coitados. Felizmente, uma mão-cheia de governantes, acolitados por uma turba de bimbos e parvónios, estão a tratar do assunto, expulsando-nos das nossas cidades, a fim de desimpedir o caminho do progresso aos respeitáveis turistas e finalmente permitir que toda a cultura urbana, essa coisa detestável, seja destruída, para dar lugar a uma omnipresente feira popular pimba permanente, com carrinhos de choque e barracas de farturas a 20 euros cada uma. Felizmente, desde que o Papa chegou, já temos garrafinhas de meio litro de água a 2-3 euros, como manda o progresso, especialmente quando chegamos aos 40 ºC de agosto.

Imagine-se: há ainda quem tenha a ideia bacoca de ir espairecer, no intervalo de descanso do trabalho, nos jardins de Lisboa, em busca do gorgolejo ameno dos fontanários e do chilreio dos pássaros, antes de retomar o labor diário. Que profundo disparate! O que é preciso é arrasar os canteiros de flores, como se fez no Jardim de São Pedro de Alcântara, abrir espaço às barracas de farturas, piña colada e música a 120 dB SPL (felizmente não existe em Portugal legislação sobre níveis cívicos de som, senão lá teríamos de modificar mais uma lei).

Infelizmente, após mais de uma década de avisos e demonstrações pacientemente repetidas por autoridades públicas e agentes imobiliários, há ainda meia dúzia de broncos que se julgam no direito de continuar a habitar a cidade. É preciso acabar com isto de uma vez por todas. É urgente aplicar-lhes uma solução final.

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