04/04/23

Os autarcas fora-da-lei

 

fora-da-lei
(by ToniCzech via Pixabay)

Antes de discutirmos o que de bom e de mau existe no actual plano político do Governo para a habitação, temos de relembrar que ele não cria nada de novo; limita-se a pôr em prática a Lei de Bases da Habitação (LBH)[1], aprovada em 2019 e entretanto deixada em banho-maria.


Vários dirigentes partidários e presidentes de câmara têm afirmado que o disciplinamento da proliferação selvagem do alojamento local não deve ser feito e que o projecto de penalização (fiscal, instrumental ou coerciva) das habitações devolutas é impraticável. Os dirigentes partidários podem dizer todos os disparates que quiserem, mas os responsáveis autárquicos, não. Ao produzirem tais afirmações, estão a dizer com toda a clareza e com o maior desplante que se recusam a cumprir a lei. Sujeitam-se, um dia, a ser considerados fora-da-lei, julgados como qualquer vulgar bandoleiro e impugnados nos seus cargos.

Provavelmente o meu leitor já se viu confrontado com a seguinte afirmação desesperante, mas incontornável: o desconhecimento da lei não justifica o seu incumprimento. Em termos práticos: se eu der um tiro na cabeça do presidente da Câmara de Lisboa, não posso depois invocar o desconhecimento da protecção legal ao direito à vida e à integridade pessoal, para me safar desse crime. É exactamente o que se está a passar com o berreiro transmitido nos meios de comunicação social que coloca o direito à propriedade privada em oposição ao direito à habitação. As normas nacionais e internacionais são claras a esse respeito: o direito à propriedade privada não pode ofender qualquer outro direito fundamental, nomeadamente o direito à habitação.

Diz a LBH aprovada em 2019, no seu Artigo 28.2: «O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o dever de promover o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentivar o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada, em especial nas zonas de maior pressão urbanística». Provavelmente os proprietários que agora se consideram prejudicados ou ignoravam a lei (o que não é desculpa, como já vimos), ou pura e simplesmente tinham a esperança de que ela nunca viesse a ser aplicada. Azar o deles. Se não gostam da lei, tivessem protestado em momento oportuno, isto é, em 2019.

Os autarcas fora-da-lei não lesam apenas o interesse comum expresso na LBH. Ferem também uma quantidade de normas internacionais, situadas acima da lei nacional e subscritas pelo Estado português, designadamente a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia[2] e o Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC).[3] Arriscam-se, no limite, a serem um dia julgados por crimes contra a humanidade.

Como afirma Catarina Santos Botelho, «É importante ressalvar que os direitos sociais são direitos fundamentais, não são menos importantes que os “outros”, nem hierarquicamente inferiores.»[4]


Os equívocos acerca da propriedade privada

A propriedade privada, ainda que beneficie de um estatuto sacrossanto nas sociedades capitalistas, não está acima dos demais princípios fundamentais. Tem de se articular com eles e respeitá-los. Sucede que o direito a uma habitação decente e proporcionada às necessidades do agregado familiar é um direito fundamental, à luz de todas as normas nacionais e internacionais, já para não falar da razão e do bom-senso humanitário.

Mas além disso há que distinguir entre os bens que são propriedade individual e não afectam o bem comum (caso dos instrumentos de trabalho do trabalhador independente, da casa onde ele mora, das instalações do merceeiro onde apenas ele e a família trabalham), e a propriedade de meios de produção, isto é, um tipo de propriedade que serve exclusivamente para explorar o trabalho alheio. Há que distinguir entre a propriedade dos bens comuns (a terra, o ar, o sol, a água, o mar) e os bens de exclusivo interesse privado (a minha roupa, a habitação onde vivo com a minha família, os meus instrumentos pessoais de trabalho, etc.).

A confusão criada pelas correntes liberais, metendo tudo isso no mesmo saco, é aparentemente taralhouca, mas de facto visa criar o pânico na população: ai jesus, que me vão tirar o que é meu! Sucede que ninguém propôs tirar coisa alguma fosse a quem fosse. A casa onde vivemos, e os bens que nela habitam, não são, nem nunca foram consideradas capital, em nenhum tratado de economia política (pelo menos nos tratados de esquerda, que são os que eu conheço, já quanto aos outros não ponho as mãos no fogo).

 

Onde param as verdadeiras soluções para a crise da habitação?

A longo prazo, só existe uma forma de garantir a execução do direito à habitação: através de um plano de habitação social (ou seja, casas do domínio público ou cooperativo) – seja ele aplicado pelo Estado ou por associações com apoio logístico e financeiro do Estado. Pedir aos investidores privados (neste caso, os especuladores imobiliários) que cuidem do interesse público é uma anedota engraçada (faz lembrar aquele livro de Fernando Pessoa, «O Banqueiro Anarquista», não é?), mas não passa disso mesmo: uma anedota.

Contudo, a curto prazo, coloca-se uma questão premente: há milhares de agregados familiares que estão sem casa, ou à beira de ficar sem casa, ou que vivem em condições indignas. Não podemos dizer-lhes, enquanto eles estão com os filhos a passar frio na rua: tenham paciência, a gente vai montar aqui um belo plano de apoio à habitação e daqui a 20 anos o vosso problema está resolvido.

Para uma situação emergente, pedem-se soluções urgentes. E como é o bem-estar e a saúde de muitos milhares de pessoas que está em jogo, quem dispõe de recursos excedentes (nomeadamente casas) tem de ser chamado a contribuir para o bem comum, pelo menos até a situação estar resolvida.

Se durante a pandemia de covid-19 todo o país aceitou os maiores sacrifícios (sabe-se lá em proveito de quem), não se entende agora esta recusa de um sector minoritário, privilegiado, em acudir a vastas camadas da sociedade desprotegidas que se encontram em sofrimento.

E menos ainda se compreende a atitude bandoleira de uns quantos autarcas dispostos a fazerem a sua própria lei à margem da lei.

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Notas:

1 Lei de Bases da Habitação:

Artigo 3.º: «1 - O Estado é o garante do direito à habitação. (…) 6 - O Estado promove o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentiva o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada.»

Artigo 5.º: «1 - A habitação que se encontre, injustificada e continuadamente, durante o prazo definido na lei, sem uso habitacional efetivo, por motivo imputável ao proprietário, é considerada devoluta. 2 - Os proprietários de habitações devolutas estão sujeitos às sanções previstas na lei através do recurso aos instrumentos adequados.»

Artigo 7.º: «1 - Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar. 2 - Incumbe ao Estado estabelecer a criação de um sistema de acesso à habitação com renda compatível com o rendimento familiar.»

Artigo 13.º: «(…) 4 - O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento (…)»

Artigo 26.º: «A política de habitação compreende os seguintes tipos de instrumentos: a) Medidas de promoção e gestão da habitação pública; b) Medidas tributárias e política fiscal; c) Medidas de apoio financeiro e subsidiação; d) Medidas legislativas e de regulação.»

Artigo 28.º: «1 - É dever do Estado, regiões autónomas e autarquias locais atualizar anualmente o inventário do respetivo património com aptidão para uso habitacional.

Artigo 29.º: «1 - A política fiscal, em matéria de habitação: (…) f) Penaliza as habitações devolutas, nos termos da lei. 2 - Os municípios podem, nos termos da lei, fixar taxas diferenciadas dos impostos, cujo nível de tributação lhes esteja cometido, em função do uso habitacional efetivo.

Artigo 33.º: «1 - Incumbe ao Estado assegurar o funcionamento eficiente e transparente do mercado habitacional, de modo a garantir a equilibrada concorrência, a contrariar as formas de organização monopolistas e a reprimir os abusos de posição dominante e outras práticas lesivas do interesse geral. 2 - O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais têm o dever de promover o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade pública e incentivar o uso efetivo de habitações devolutas de propriedade privada, em especial nas zonas de maior pressão urbanística.»

2 Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, Artigo 34.3. – «A fim de lutar contra a exclusão social e a pobreza, a União reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes, de acordo com o direito da União e com as legislações e práticas nacionais.»

3 Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (PIDESC), Artigo 11.1 – «Os Estados-Signatários no presente Pacto reconhecem o direito de toda a pessoa a um nível de vida adequado para si e sua família, incluindo alimentação, vestuário e habitação adequados e a uma melhoria contínua das suas condições de vida. Os Estados-Signatários tomarão medidas apropriadas para assegurar a efectividade deste direito (...)».

4 Catarina Santos Botelho (constitucionalista da Universidade Católica Portuguesa), «“Os direitos sociais são socialistas” e outros 6 equívocos do Estado Social», Observador, 10/03/2018.

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